coordenação Pedro Godinho
Recanto dum jardim público. Dous bancos, próprios do sítio, um dando frente ao público, em direcçom horizontal à embocadura, o outro em posiçom vertical a ela e num lateral.
Atrás do primeiro, quando menos, umha árvore em cujas pólas podam pousar as duas aves exóticas que aparecerám imediatamente.
Ave 1: | Onde é que nos encontramos? |
Ave 2: | Pois nom o sei. Nunca é fácil sabê-lo com certeza, tudo se vai uniformando tanto no mundo que todas as cidades parecem a mesma. Iguais avenidas, «scalestrix», «buildings». Que nojo! |
Ave 1: | Vamos dar outra revoada a ver se pesquisamos algo orientador. |
Ave 2: | Se déssemos coa Oficina de Turismo. |
Ave 1: | Impossível, nom podemos rasear o voo com tantas espingardas de ar comprimido em maos dos escolares. |
Partem as aves. Entram polo lateral vazio dona Claustófila e dona Reverenciana, ambas andam por umha idade mais que madura, ambas som atesadas, enxoitas e desluzidas como folha de bacalhau. Sentam-se no banco que dá frente ao público, tiram dos bolsos o novelo de lá e as longas agulhas de calcetar para continuar o labor encetado, parecem simular um jogo de esgrima a florete. Entra por onde antes elas o figérom o HOME, tamém maduro, roupas e chapeu amarfanhados, mal barbeado, tudo nel tem aspecto, se nom precisamente sujo, si desajeitado, esbaldragado. Porta um grande pára-águas sem enrolar e uns diários. Tenta sentar-se no sítio livre que deixam no extremo do banco as senhoras; mas para llo impedir correm-se elas rapidamente ocupando-o. Deixam, pois, livre o extremo oposto e ali dirige-se o HOME; mas novamente umha das mulheres apressura-se a ocupá-lo escorrendo o cu ao longo do assento. Fica agora livre o centro do banco. O HOME olha-o dubitativo e quando decide sentar-se as mulheres colocam as agulhas de ponta no sítio.
O HOME brinca ao sentir a punçada e esfrega as nádegas olhando em volta, repara no outro banco vazio, dirige-se a el, acomoda o guarda-chuva pendurado no espaldar e some-se na leitura dos diários. As mulheres, agora ajuntadas de novo, intercambiam gestos e olhadas como dizendo-se: «apanhou o merecido».
Começa a chover. O HOME abre o pára-águas. As senhoras guardam apressadas as calcetas nos bolsos. Hesitam em que fazer e correm a sentar-se umha a cada lado do HOME a coberto do grande guarda-chuva. O HOME olha umha e outra entre estranhado e burlom, depois vai fechando lentamente o pára-águas até que nom protege mais que a sua própria cabeça. As mulheres, vendo-se sem agarimo, erguem-se e fogem fora da cena em procura de refúgio, e vam dizendo: «Nom hai cortesia».
Retornam as aves a pousar no mesmo ramo.
Ave 1: | Averiguaste por onde é que voamos? |
Ave 2: | Parece ser que estamos sobre umha terra que chamam Noroeste, lim muitas alusons a esse ponto. |
Ave 1: | E onde vem caindo isso mais ou menos. |
Ave 2: | Polo Suroeste da Europa. |
Ave 1: | Como pode ser isso de que o Noroeste seja o Suroeste? |
Ave 2: | É segundo desde onde se olhar. |
Ave 1: | Parece contra-senso. |
Ave 2: | Pois tem o seu senso e como mandam os noroestistas nom permitem outro ponto de mira que o seu. |
Ave 1: | Hai ditadura |
Ave 2: | Nisso, si. E os suroestistas, os que contemplam o país desde a Europa, som postos fora da Lei. Parece que hai muito enguedelho. |
Ave 1: | Pois estamos boas! Se começam a tiros nom o vamos passar muito bem que digamos. |
Ave 2: | Antes nos imos embora, que já vai acalmando o chuveiro. |
O HOME fecha o pára-águas que volvera a abrir de todo em se indo as madamas que agora retornam em direcçom para o seu banco.
Dona Claustófila: | (Apalpando o assento). Está molhado. |
Dona Reverenciana: | (Apalpando igualmente). Está molhado. |
Permanecem em pé indecisas. O HOME oferece-lhes os diários, elas tomam-nos com vénia e sorriso de agradecimento. Cada umha lê em voz alta o título do que tomou: «A Liberdade», «A Democracia». Umha entrega-lho à outra apressadamente, como se lhe queimasse a mao. Repetem o intercámbio de mao a mao sempre como se de tiçom aceso ou ferro ardente se tratasse. Afinal, dona Claustófila em poder dos dous diários, vai-nos colocando estendidos no assento do banco.
Dona Reverenciana: | Para que fai isso dona Claustófila? Em riba disso nom me sento. |
Dona Claustófila: | (Cessando na tarefa). Nom lhe falta razom, dona Reverenciana. Desculpe. Nom resulta bom assento para senhoras da nossa casta. |
Dona Reverenciana: | Dos nossos princípios. |
Dona Claustófila: | Diga que nom é bom assento para ninguém. |
Dona Reverenciana: | (Heróica, lançando umha olhada desafiante para o HOME). Digo, claro que digo! Digo mui alto para que todos podam ouvir. |
Marcham a encostar-se no tronco da árvore e reanudam os seu labor de calceta. Entra um rapaz e umha rapaza colhidos da cintura. Vestimenta unissex. Sentam-se no banco coberto polos diários e começam a acarinhar-se: abraços, beijos. O HOME desentendido do entorno vai preparando o seu cachimbo. As mulheres, entre volta e volta de agulha, esguelham olhadas de indignaçom para os amantes.
Dona Claustófila: | Está vendo, dona Reverenciana? |
Dona Reverenciana: | Nom há vergonha, dona Claustófila. De onde virá tanta despudícia? |
Dona Claustófila: | Nom o pergunte,que está claro: vem-lhes do assento. Nom deveríamos ter deixado esses papéis ali. |
Dona Reverenciana: | Certamente que nom é assento apropriado para a mocidade. |
Dona Claustófila: | Umha mocidade sã há de assentar sobre a obediência, sobre a disciplina. |
Dona Reverenciana: | Diga que si. |
Dona Claustófila: | Digo. |
Dona Reverenciana: | Em certo modo somos responsáveis. Sem intençom, claro é, mas proporcionamos-lhes assento para o escándalo. |
Dona Claustófila: | Por que deixaria eu ali estendidos esses diários? Que imprevisom! (Batendo no peito). Mea culpa! Mea culpa! |
Dona Reveranciana: | Ainda podemos fazer algo para impedir tanta perdiçom. |
Dona Claustófila: | Vamos sentar a rente deles que a nossa presença há de coibi-los. |
Venhem sentar umha em cada extremo do banco. Os rapazes, no centro, entregues a beijos e alouminhos, nem se inteiram. Dona Reverenciana carraspeia para se fazer notar. Sem resultado. Dona Claustófila carraspeia mais forte. Sem resultado. Ambas intercambiam gestos de estranheza, de escándalo, de indignaçom. A rapaza monta a cavalo no regaço do moço e joga-lhe cos cabelos, depois tira do peto um maço de cigarros e pede-lhe lume. El apalpa-se buscando e nom encontra. A rapaza descavalga e vai sentar-se ao lado do HOME em petiçom de lume. Fumam.
O rapaz estende os braços por trás das cabeças das senhoras e atraí-nas para si colhidas dos ombros. Deixam levar-se. O moço umha após outra beija-as nos beiços. Gargalhada da rapariga. As senhoras arroubadas, fecham os olhos de mao pousada nos joelhos do moço e vam-nas subindo pola coxa acima. O rapaz agita-se sentindo as cóxegas com um riso contido. As maos das senhoras esploram a barriga, o peito. Mais cóxegas e risos estremecidos. As maos descem corpo abaixo, chegam às virilhas. Grito do moço que se ergue dum brinco, colhe a moça por umha mao e sai correndo com ela.
Entra um vendedor de globos. O HOME compra um e prende-o no olho da lapela. Encosta-se no espaldar para o contemplar boiar no alto. As mulheres, encostadas umha à outra, em êxtase. Acordam e olham em torno.
Dona Claustófila: | Ai, dona Reverenciana! Sei que tivem um sonho! |
Dona Reverenciana: | Nom me diga. Tamém eu, dona Claustófila. |
Dona Claustófila: | Estávamos aqui nós as duas e vinha aquel home de em frente e assentava-se entre nós... |
Dona Reverenciana: | Si, si, era el; mas parecia mais novo. |
Dona Claustófila: | O diabo costuma fazer essas transformaçons. |
Dona Reverenciana: | E veja-o agora a fazer-se o inocente co seu globo igual que um meninho, como aquel que nunca rompeu um prato. |
Dona Çlaustófila: | Assi som as astúcias de Satanás. |
Dona Reverenciana: | Abraçava às duas e... |
Dona Claustófila: | (Espantada). Nom o diga, por favor, nom o diga! |
Dona Reverenciana: | Nunca tal me tinha acontecido. |
Dona Claustófila: | Fomos violadas sem a devida resistência. |
Dona Reverenciana: | Abandonou-nos o Anjo Custódio. |
Dona Claustófila: | (Pondo-se bruscamente em pé e assinalando acusadora os diários do assento). Olhe! Eis a causa. Veja onde estamos sentadas. |
Dona Reverenciana: | (Pom-se tamém rápida em pé). Esses diários! Eles fôrom a nossa perdiçom! Bem diziamos que nom fam assento conveniente. |
Dona Claustófila: | Estamos em pecado, dona Reverenciana. |
Dona Reveranciana: | Abrenúncio! Abrenúncio! |
Dona Claustófila: | Eu corro para casa a esfregar os lábios com água de Lourdes. |
Dona Reverenciana: | Se nom foi mais que um sonho! |
Dona Claustófila: | Ainda assi. |
Dona Reverenciana: | Pois eu nom sei se tenho água de Lourdes na casa; mas tratando-se dum sonho bastará com xabom comum. |
Dona Claustófila: | Há de bastar. Hai-nos agora com alto poder desinfectante. |
Vam-se, apressadas e cotorronas as senhoras. O HOME ceiva o globo que sobe e se perde no alto. Fim da anedota.
Vejam também a primeira parte dum vídeo-roteiro da AGAL sobre a Corunha galeguista de Jenaro Marinhas:
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