Os poetas são homens que se recusam a utilizar a linguagem. Dado que é com e pela linguagem, concebida como uma espéie de instrumento que se pratica a busca da verdade, não é preciso imaginar que eles procurem descobrir o que é verdadeiro ou expô-lo. (...) Se o poeta conta, explica ou demonstra, a poesia torna-se prosaica; o poeta perdeu a partida.
(O que é a Literatura)
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António Sales (Torres Vedras, 1936)
LETRAS
De letras compõem-se as palavras, letras de muitas línguas muitos mundos. Sementes rituais de cores inebriantes, também ervas daninhas, amargas, soluçantes.
De letras grandes e pequenas fabricam-se as palavras, com pernas e sem pernas, gordas, magras, altas, baixas, todas elas, porém, prontas a marchar.
Umas redondas, meigas, esculpidas de beleza perdidas de paixão, arrebatadas. Letras obesas sebosas e servis, castradas de carácter pobres e imbecis.
Há letras de chorar e letras de sonhar, luminosas alegres de encantar, brilhantes como estrelas de mãos dadas a bailar.
Ai letras minhas queridas letras! Semeiam palavras orvalhadas de sol.
Miguel Torga
(São Martinho de Anta, Sabrosa, 1907 — Coimbra, 1995)
ARTE POÉTICA
Fecho os olhos e avanço. E começa o poema. Rodeiam-me os fantasmas Fugidios Dos versos que persigo. A regra é caminhar E chegar sem saber. De tal modo é cruzada A encruzilhada Onde o milagre pode acontecer.
Mas sendo, como é, de cabra-cega O jogo, E é um destino jogá-lo, É sempre incerto que o principio. Tacteio no vazio Da expressão, Vou seguindo Seguindo, E ganho quando sinto a salvação No próprio gosto de me ir iludindo.
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Natália Correia (Fajã de Baixo, São Miguel, 1923 — Lisboa, 1993)
A DEFESA DO POETA
Senhores jurados sou um poeta um multipétalo uivo um defeito e ando com uma camisa de vento ao contrário do esqueleto
Sou um vestíbulo do impossível um lápis de armazenado espanto e por fim com a paciência dos versos espero viver dentro de mim
Sou em código o azul de todos (curtido couro de cicatrizes) uma avaria cantante na maquineta dos felizes
Senhores banqueiros sois a cidade o vosso enfarte serei não há cidade sem o parque do sono que vos roubei
Senhores professores que pusestes a prémio minha rara edição de raptar-me em crianças que salvo do incêndio da vossa lição
Senhores tiranos que do baralho de em pó volverdes sois os reis sou um poeta jogo-me aos dados ganho as paisagens que não vereis
Senhores heróis até aos dentes puro exercício de ninguém minha cobardia é esperar-vos umas estrofes mais além
Senhores três quatro cinco e sete que medo vos pôs na ordem ? que pavor fechou o leque da vossa diferença enquanto homem ?
Senhores juízes que não molhais a pena na tinta da natureza não apedrejeis meu pássaro sem que ele cante minha defesa
Sou uma impudência a mesa posta de um verso onde o possa escrever ó subalimentados do sonho ! a poesia é para comer.
Num serão em casa de Amália Rodrigues, com a presença da anfitriã e de Vinicius de Moraes, David Mourão-Ferreira; José Carlos Ary dos Santos, Natália Correia decalmou "A defesa do poeta". Eis a gravação:
Às seis, chegam Manuel Simões, João Cabral de Melo Neto e Salvador Espriu.