«Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Um governo tão aperfeiçoado não convém aos humanos», disse Jean-Jacques Rousseau. Na realidade, a democracia directa, quando da sua primeira formulação e enquanto participação de todos os cidadãos nas tarefas do Governo, só era concebível dentro das exíguas dimensões geográficas das cidades gregas onde o estatuto de cidadão era atribuído com parcimónia. Ao querer transpor para espaços maiores e com uma abrangência conceptual mais ampla, os senados, os parlamentos, foram a maneira que se encontrou para ultrapassar a impossibilidade de «estar o povo a reunir-se constantemente para tratar da coisa pública». Simbolicamente, o povo reunia-se todo, delegando em representantes a defesa dos seus interesses e pontos de vista.
Porém, também a respeito da solução do parlamentarismo (e referindo-se à experiência inglesa), Jean-Jacques Rousseau se pronunciou cepticamente: «O povo inglês, crê-se livre e bem se engana; só o é enquanto dura a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes são eleitos, é um escravo, não é coisa alguma» (…) «A ideia dos representantes é moderna; vem-nos do governo feudal» (…) «Nas antigas repúblicas, nunca o povo teve representantes; era uma palavra desconhecida» (…)» Logo que um povo se atribui representantes, deixa de ser livre; mais, deixa de ser.»
Estas considerações de Rousseau sobre o parlamentarismo permanecem completamente actuais. Nas democracias que temos, terminado o período eleitoral em que todas as promessas se fazem, em que se bate às portas, se apertam mãos e distribuem sorrisos, o deputado esquece-se que teoricamente só é Poder através do mandato dos seus eleitores, passando a ser um dócil peão que o secretário-geral do seu partido movimenta no tabuleiro político conforme melhor entende. E, no entanto, sente-se investido de uma indiscutível autoridade.
Um exemplo: Tito de Morais, no seu discurso do 25 de Abril de 84, afirmava que se a engenharia é matéria de engenheiros, a saúde da competência dos médicos e a Igreja da responsabilidade dos sacerdotes, a política, por sua parte, é assunto de que só os políticos se devem ocupar.» É uma enormidade, pois nega a essência da própria democracia, mas Tito de Morais apenas verbalizou o conceito que os políticos tinham (e continuam a ter) de representatividade. Esquecem-se de que, numa dimensão moral, logo que o partido que representam deixa de cumprir uma promessa eleitoral ou um pressuposto programático, o contrato com os seus eleitores prescreveu, que, numa perspectiva ética, deixaram de representar esses eleitores e o seu mandato deixou de ter sentido. Mas quem pensa, hoje em dia, em coisas tão incómodas e despropositadas como misturar política com ética e com moral?
Máximo Gorki disse que o importante é que o homem se vá afastando do animal. Talvez que, num futuro certamente distante, mercê da engenharia genética ou do que em seguida vier nessa área, os seres humanos se demarquem e distanciem da cadeia evolucionária animal e constituam, de certo modo, o povo de deuses que Rousseau considerava como único destinatário de uma verdadeira democracia. O saber e a informação generalizados podem ajudar a essa mutação. Mas enquanto não somos deuses, estaremos condenados a escolher entre totalitarismos assumidos e democracias onde os partidos e a classe política substituem com eficaz hipocrisia a despótica, inflexível e omnipresente autoridade do Grande Irmão?
Todos viram em 1984, a genial ficção de George Orwell uma clara alusão aos perigos de uma ditadura estalinista se estender a todo o Mundo. O XX Congresso do PCUS começou a diluir esta ameaça e em 1989, com a queda do muro de Berlim, o «socialismo real» entrava em colapso total. Orwell, que era indubitavelmente um democrata, não podia prever que um pesadelo do Big Brother a uma escala planetária nos podia também chegar através daquilo a que no pós-guerra se chamava o «mundo livre». Que a globalização da repressão nos podia vir daí. Que a opressão nos podia chegar por via democrática.
Num outro livro anterior (1945), Animal Farm, Orwell explicara já como se traem revoluções, como se subvertem ideais em nome desses mesmos ideais. Todos viram, como disse, nas ficções orwellianas críticas ao estalinismo; creio que não as podemos interpretar de forma tão estrita – o espírito democrático veiculado pelo neo-liberalismo é, em si, uma traição à democracia. Transforma a liberdade numa alavanca para manter todas as iniquidades que tornaram necessária a implantação da democracia. A «democracia», na versão neo-liberal, concedendo todas a liberdades, começou paulatinamente a destruir a Liberdade.
Os governos democratas, ligados a interesses económicos e por eles patrocinados, começam a configurar inamovíveis estruturas oligárquicas. O axioma de Henry Ford ganha força – podemos escolher os governantes que quisermos desde que escolhamos gente corrupta ou que convive com a corrupção, vendo-a, os que não são corruptos activos, como um mal necessário. Se defendemos castigos exemplares para criminosos, aqui del rei, as toneladas de peso do politicamente correcto e do pensamento único caem-nos em cima.
Pode servir de ilustração ao que digo o exemplo de Saint-Just, um jovem membro da Convenção de 1792, que no meio do turbilhão revolucionário, votou pela execução de Luís XVI e foi eleito membro do Comité de Salvação Pública em 1793.
No meio daqueles senhores, odiado pelos girondinos e hostilizado pelo seu próprio partido, o dos montanheses – manteve sempre a sua intransigência – a sua utopia era a criar uma democracia de artífices, camponeses, pequenos proprietários, de gente fiel ao espírito da República.
Para ele a Liberdade não era cada um fazer o que lhe apetecesse. A Liberdade era a maior das tiranias, aquela que não permitia licenciosidades. Chamaram-lhe o "arcanjo do Terror". Em Julho de 1794 foi guilhotinado. A defesa intransigente dos princípios não compensa.
A tão celebrada «mudança de mentalidades» tantas vezes evocada por quem quer manter nas mãos de minorias as rédeas do poder, é uma falácia. Claro que as mentalidades mudam e se adaptam à realidade – mas é isso um bem? Nem sempre. Importante era mudar a natureza humana e evitar que, sob ditaduras ou sob democracias plenas o desfecho seja sempre igual – o triunfo dos porcos.
Reli recentemente uma nova edição portuguesa de O Contrato Social (Du contrat social ou essai sur la forme de la République), a obra de Jean-Jacques Rousseau, agora com uma interessante introdução de João Lopes Alves. Esta edição não se refere à versão definitiva do texto, publicada em Amesterdão, em 1762, mas sim a uma primeira abordagem do tema, que não é a que melhor conhecemos, por ser a mais divulgada. .Aliás, a edição de Amesterdão tinha um subtítulo diferente – Du contrat social, ou Principes du droit politique. A leitura desta edição conduziu-me à releitura da de Amesterdão que, por sua vez, me levou a uma reflexão sobre a natureza da nossa democracia. O que ressalta da minha leitura de Rousseau são as reservas que ele tinha para com um regime que iria, sobretudo a partir de 1789, nos dois séculos seguintes constituir a principal esperança dos oprimidos.
Talvez pareça um exagero comparar a democracia que temos ao fascismo que tivemos. De certo modo, é-o. É, sobretudo, uma maneira provocatória de exprimir o sentimento de revolta que me assalta ao ver que este sistema democrático, teoricamente emanado da vontade popular, expresso no voto livre dos cidadãos, nos proporciona uma sociedade tão tacanha e uma classe política tão ou mais corrupta do que a do antigo regime salazarista. É um exagero assumido, com o qual procuro chamar a atenção para aquilo que na prática se manteve inalterável – a injustiça social, as grandes assimetrias culturais (embora a iliteracia – quase um eufemismo para analfabetismo - seja agora protegida por diplomas). O poder, o verdadeiro poder, está nas mãos dos grandes grupos económicos, tal como durante o período da ditadura. Mas agora esta situação é sancionada pelo voto livre dos cidadãos ao elegerem os seus representantes no Parlamento e o chefe de Estado. Quanto a mim, é uma diferença pouco mais do que formal.
Há liberdade uma total de expressão, mas a televisão e o marketing político das grandes máquinas partidárias do chamado «bloco central» se encarregam, através de insidiosos opinion makers, de unificar o pensamento. E sem o aparato repressivo dos Goebbels e dos António Ferro, com a disseminação do «politicamente correcto» aí temos o pensamento único, um instrumento fundamental do neo-liberalismo. Porque o pensamento único , apresentado como pedra angular do sistema, impõe como verdade absoluta e indiscutível o primado do económico sobre o sociopolítico. Já vi jovens economistas rindo-se de argumentos de natureza moral e política. O politicamente correcto, que abriu caminho ao pensamento único, impõe uma total independência da economia. A economia tem de ser apolítica, dizem com o ar de quem diz o que é óbvio. Outros pilares do sistema – o realismo (as coisas são como são) e o pragmatismo (para se solucionar um problema de natureza económica, a ideologia política tem de ser erradicada).
Os princípios da nossa democracia, mercê do realismo, do pragmatismo e da perspectiva do pensamento único, obedece já não a princípios – obedece às lei e aos interesses do mercado. A verdade é que esta tese do carácter apolítico que as medidas económicas devem ter é aceite por muita gente que se considera de esquerda. «Porque» (já ouvi este argumento) «se a minha vida depende do êxito de uma cirurgia, interessa-me a perícia do cirurgião, não o seu credo político». Naturalmente que esta apoliticidade das medidas económicas são expressão de um credo político – o neoliberalismo.
Nós, os cidadãos eleitores, aceitamos princípios inaceitáveis e aceitamos anormalidades como coisas normais – as liberdades impedindo a Liberdade de florescer. Pode dizer-se tudo, fazer-se tudo. Um exemplo recente pedófilos, em seguida ao julgamento em que foram considerados culpados e condenados, vieram às televisões dar uma conferência de imprensa. Dirão – é a Liberdade. Pois é – uma liberdade que põe em pé de igualdade criminosos e cidadãos eméritos. O sistema dá liberdade ao povo de escolher porque tem mecanismos que controlam o eleitorado, que induzem o voto. Como alguém que deixa à solta um cão potencialmente perigoso, mas amestrado e, portanto, inofensivo.
Então a democracia foi aviltada, pervertida?
Poderá dizer-se que a democracia começou mal, que já no seu berço da Antiga Grécia continha os estigmas que iria transportar ao longo de dois milénios e meio e que iriam chegar quase intactos até aos nossos dias. Com efeito, a democracia ateniense não abrangia nem os escravos nem as mulheres, não impondo também uma divisão equitativa da riqueza entre os cidadãos. No rescaldo da grande fogueira de 1789, a escravatura foi sendo abolida na maioria dos países europeus, embora quase nunca em obediência a um límpido sentimento de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
As mulheres, ainda que, sobretudo nas últimas décadas, tenham avançado muito na sua luta de libertação, continuam, mesmo quando a letra da lei lhes confere todas os direitos e garantias outorgados aos cidadãos em geral, a ser consideradas cidadãs de segunda. Sobre a divisão da riqueza no ocidental paraíso das democracias parlamentares, é melhor nem falarmos. Democracia – autoridade do povo; de que povo? Nunca, em parte alguma, a não ser no território imaginário das utopias, se ouviu falar de democracia integral – sempre os governos supostamente democráticos se deixaram manchar por desigualdades sociais ou de género, por segregações étnicas, por marginalizações inomináveis. Quando mesmo, não serviram de capa ou ornamento a terríveis tiranias. Será que a verdadeira democracia é inatingível?
Voltemos a Jean-Jacques Rousseau. Será que ele tinha razão quando disse: «Se formos a considerar o termo na acepção mais rigorosa, nunca houve verdadeira democracia, nem nunca existirá.» (…) «Seria inconcebível estar o povo a reunir constantemente para tratar da coisa pública». (…) «Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Um governo tão aperfeiçoado não convém aos humanos».
Um povo de deuses? A democracia só poderá ser atingida por um povo de deuses?
(Continua)
A queda do Governo de José Sócrates parece não ter incomodado ninguém. A morte do executivo era crónica há muito anunciada. Várias forças se mancomunaram – O PR que assistiu ao naufrágio sem sequer esboçar o gesto de atirar uma bóia. Os partidos da oposição desde logo –O PSD e o CDS sequiosos do poleiro de onde poderão gerir corrupções e negociatas que censuraram ao finado gabinete, o PCP e o BE que, vendem a alma ao diabo para ter mais um deputado nos seus pequenos grupos parlamentares. Até a gente do PS parece satisfeita – há quem diga que o Partido ganhará as eleições. Afinal sempre há mortes felizes.
Este tipo de democracia é disfuncional. E tanto assim penso que nem sequer perderei muito tempo a analisar o que se passou e o que se vai passar. Este episódio da queda do Governo de José Sócrates põe a nu toda a disfuncionalidade do sistema, com PCP e BE votando ao lado do partido que continua a tradição da União Nacional e da sua excrescência dita democrata-cristã. Como podem partidos que se reivindicam de posições de esquerda votar para fazer cair um Governo mau, sabendo que a alternativa é ainda pior?
Que explicações precisariam de dar aos seus militantes se estes tivessem capacidade para as pedir? Vamos todos pagar o preço destas tácticas ao serviço de interesses inconfessáveis? Fuga para a frente? Estratégia de «quanto pior, melhor»? Como podem ajudar uma cáfila de estúpidos sequiosos de poder e negociatas sujas a trepar para o poleiro?
Isto nada tem a ver com democracia – é oportunismo puro e desonestidade declarada. Nesta crise, só o PSD foi coerente – vazio de ideias, como sempre (embora a manifestação da «Geração à rasca», capitalizando descontentamentos de vária origem e natureza, tenha demonstrado esperteza), querem o poder e provavelmente vão tê-lo, com a esquerda (soit-disant) servindo-lhe de degraus. E no dia seguinte à eleição, tudo começará de novo. É um mau reality show – seria para rir se não tivéssemos todos de pagar. Não tenho paciência para falar sobre isto.
Prefiro gastar o resto das mil palavras concedidas, citando de novo Jean-Jacques Rousseau em Du contrat social, ou Principes du droit politique. (Amesterdão, 1762): «Se formos a considerar o termo na acepção mais rigorosa, nunca houve verdadeira democracia, nem nunca existirá.» (…) «Seria inconcebível estar o povo a reunir constantemente para tratar da coisa pública». De facto, nunca, a não ser no território imaginário das utopias, se ouviu falar de democracia integral – sempre os governos supostamente democráticos se deixaram manchar por desigualdades sociais ou de género, por segregações étnicas, por marginalizações, servindo, por vezes de capa a terríveis tiranias.
Jean-Jacques Rousseau tinha razão, pois a democracia directa, enquanto participação de todos os cidadãos nas tarefas do Governo, só era concebível dentro das exíguas dimensões geográficas das cidades gregas onde o estatuto de cidadão era atribuído com parcimónia. Ao querer transpor para espaços maiores, os senados, os parlamentos, foram a maneira que se encontrou para ultrapassar a impossibilidade de «estar o povo a reunir-se constantemente para tratar da coisa pública».
Mas também sobre o parlamentarismo, Jean-Jacques Rousseau se pronunciou cepticamente: «O povo inglês, crê-se livre e bem se engana; só o é enquanto dura a eleição dos membros do Parlamento; assim que estes são eleitos, é um escravo, não é coisa alguma» (…) «A ideia dos representantes é moderna; vem-nos do governo feudal» (…) «Nas antigas repúblicas, nunca o povo teve representantes; era uma palavra desconhecida» (…)» Logo que um povo se atribui representantes, deixa de ser livre; mais, deixa de ser.» Considerações que permanecem actuais - findo o período eleitoral em que todas as promessas se fazem, o deputado esquece-se de que teoricamente só é Poder através do mandato dos seus eleitores, passando a ser um dócil peão que o secretário-geral do seu partido movimenta no tabuleiro político conforme melhor entende.
Vivemos num mundo que, exceptuando um ou outro avanço, podemos considerar pior, mais degradado, sobretudo em termos éticos. Pode dizer-se que vivemos numa versão empobrecida da democracia onde monstros do passado, tal como a miséria e a repressão, sobrevivem. Como dizia Saramago, «não progredimos, retrocedemos». E completava: «E cada vez se irá tornando mais absurdo falar de democracia se teimarmos no equívoco de a identificar unicamente com as suas expressões quantitativas e mecânicas que se chamam partidos, parlamentos e governos, sem atender ao seu conteúdo real e à utilização distorcida e abusiva que na maioria dos casos se vem fazendo do voto que os justificou e colocou no lugar que ocupam.» - (José Saramago, O Caderno, Lisboa, Março de 2009).
O sistema parlamentar é anacrónico e disfuncional, tal como o são os sindicatos e os partidos. Na era da informática, continuamos a usar instrumentos políticos que nos vêm da Revolução Francesa e do tempo da máquina a vapor. E neste labirinto de anacronismos e de aberrações, onde fica a Democracia? Ao sabor de interesses espúrios, de tácticas de alfurja. O que acaba de se passar em Portugal o que tem a ver com Democracia?
Gente rasteira, como esta que está espalhada por todo o leque partidário, não justifica que se perca tempo a aprofundar o estudo da «democracia» que temos e que se perde na espiral descendente de corrupção, clientelas, contas em offshores, em exibições mediáticas, em tudo o que constitui o circo a que diariamente assistimos (e pagamos). Como disse já, teremos de percorrer, com a imaginação e a audácia de quem necessita inventar o futuro, o caminho até uma Democracia luminosa, autêntica.
Começar por definir o que entendemos por Democracia, é um esforço que merece a pena que façamos. É o debate em que estou interessado. Vasculhar no lixo é tarefa que não me agrada.
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