Manuela DegerineCapítulo XXVIILiberdade fundamental
Tinha reservado uma viagem a Paris no dia 12 de Dezembro – passei o dia todo a ver as horas. Agora estava a registar a bagagem. Agora estava a embarcar. Agora estava no Orlybus. Agora abria a porta de casa...
Encontro-me fora da minha vida. De diversos pontos de vista. Fui roubada duas vezes num mês (uma na rua da Palma, no dia 20 de Outubro; outra em Queluz, no dia 22 de Novembro) e isto, mesmo em Portugal, parece excessivo.
Os polícias:
- Ah, se já foi assaltada, sabe que não pode trazer nada de valor...
Então neste país não se pode andar com o necessário? Eu, em Paris, durante tantos anos, nunca me interroguei: será que posso levar isto? Trouxe sempre o que me apetecia – equilibrava o peso e a necessidade. Nunca fui roubada. (E também não conheço ninguém que o fosse.)
O meu irmão, a propósito de tudo e de nada, exclama:
- Para seres atacada?! Não queres duas sem três.
Os meus amigos:
- Usas chapéus, roupas caras: chamas a atenção. Os ladrões correm todos atrás de ti.
Está visto que a culpa é minha. Alicio os ladrões. Até os que não eram, passam por mim: não resistem. Se eu continuasse a viver em Paris, os ladrões lisboetas andavam todos a trabalhar.
Então, para não serem atacados na rua, os portugueses estão condenados às calças de ganga sujas? Ou, para se poderem vestir a preceito, vêem-se confinados: dentro do carro, dentro de edifícios? Como no Brasil?
O Estado português não me garante a liberdade de poder circular pela cidade onde nasci e vivo. Ou a liberdade de ser quem sou.
Acabo por transigir: compro uma gabardina cor de burro quando foge, modelo saco de batatas. É o meu tapa-elegâncias. O meu uniforme português. Começo a compreender as mulheres que, nos países islâmicos, usam burkas para terem paz.
Não gosto do que a Minha Terra tem feito de mim.
Manuela Degerine nasceu em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica na Universidade Clássica de Lisboa. Foi professora em Queluz e em Macau; ensina agora o português num liceu de Paris. A sua obra literária consiste quase exclusivamente na criação ficcional, tendo merecido, por parte da críitica literária, um excelente acolhimento. Os romances por ela publicados são: A curva do O , Lisboa, 1991, Jardins de Queluz, Lisboa, 1994; A Dúvida e o Riso, Lisboa, Uma Gota de Orvalho, Lisboa, Difel, O Peixe Sol, Lisboa, 2002.
