António Gomes MarquesI
Aquando da polémica provocada pelo projecto da Constituição Europeia muito se falou do esquecimento a que tinha sido votada a influência do catolicismo, influência essa que não seremos nós a negar; no entanto, o mundo moderno e o seu desenvolvimento científico, que viria tornar possíveis as sociedades industriais, se muito devem ao catolicismo, não podem esquecer a dívida ao mundo antigo e ao mundo muçulmano. As influências clássicas, nomeadamente da filosofia grega, ficaram a dever-se aos árabes, não fossem as suas traduções e muitos dos filósofos clássicos continuariam no desconhecimento de todos nós; para além dos árabes, foi fundamental a influência dos muçulmanos e dos judeus. A Espanha dos séculos VII e VIII é o espelho da civilização muçulmana de que, facilmente, se encontram hoje vestígios bem marcantes. Se falarmos de Portugal, basta-nos visitar Beja, Mértola, Silves, Faro, …
No final do século VIII assiste-se à assumpção do Islamismo como um complexo político-religioso, considerando o poder político como fundamental para a consolidação na Terra da vontade de Deus. Os juristas e os teólogos muçulmanos vão desenvolver um direito assente numa sociedade teocrática em que o valor do Estado só se mede pela maior ou menor devoção à religião revelada, segundo esse direito o Estado tem de ser um mero servidor da religião muçulmana, dividindo o mundo «entre o dar-al-islam, o povo que vivia sobre a regra muçulmana, e o dar-el-arb, as terras dos poderosos campos de batalha não convertidos» ((Heer, Friedrich – O Mundo Medieval, Editora Arcádia, Lisboa, 1968, trad. de Maria Ondina). Os territórios conquistados e sob a influência muçulmana são vastos, mas uma sociedade fechada como queriam os juristas e os teólogos muçulmanos não é necessariamente uma sociedade imune a influências dos povos dos territórios conquistados, tendo sido «possível aos judeus e aos cristãos subirem alto nos estados muçulmanos, por vezes até ao cume, ao serviço do governo e da administração financeira» (Heer, F., pág. 248). Estas múltiplas influências deram origem à criação de muitas seitas com as mais variadas influências místicas, religiosas e filosóficas e às consequentes divisões numa sociedade que se queria una.
Diz-nos Adalberto Alves, com a sua habitual erudição no que a estes temas respeita: «Com a deterioração do Califado de Córdova, o Islão Peninsular perde força aglutinante, mostrando-se com nitidez as contraditórias pulsões que no seu seio se debatiam. Entre convertidos, árabes e berberes far-se-á a partilha de poder e território num generalizado ambiente de guerra civil (fitna). Daí surgem os turbulentos e, em geral, precários reinos partidários ou de Taifas (mulûk al-tawa’if) do primeiro período, destinados a uma efémera existência de sessenta e quatro anos, com início em 1031» .
Estas divisões acentuaram-se e no século XI as rivalidades entre os emires das Taifas sobrepunham-se à necessária unidade muçulmana, mas não impedia que nessas cortes houvesse uma grande tolerância religiosa a par com uma cultura abrilhantada por escritores e poetas, sendo alguns destes poetas os próprios governantes, como o emir da Taifa de Sevilha, Al-Mu’tamid ibn’Abbad (1069-1091), nascido em Beja. Nestas cortes eram frequentes as públicas polémicas entre teólogos do islamismo, do judaísmo e do cristianismo.
Das referidas Taifas, destaca-se a de Sevilha, cujo poder foi tomado por Hishâm II al-Mu’ayyad, fundando assim a dinastia abádida, cujos territórios foram sendo alargados à custa dos vizinhos e por acção do seu filho ‘Abbâd Abûal-Qâsim billâhi al-Mu’tadid. «A ambição expansionista cedo o leva à conquista sucessiva de Carmona, Jerez, Arcos, Niebla, Morón, Mértola, Serpa, Silves, Faro, Huelva e Ronda, transformando Sevilha na capital do mais extenso e poderoso reino Taifa» . Esta política vai ser prosseguida pelo filho deste, o nosso poeta al-Mu‘tamid, podendo afirmar-se que a ambição deste seria «a reunificação do território califal» (Alves, Adalberto).
A falta de unidade entre as várias Taifas – Sevilha, Córdova, Málaga, Valência e Saragoça -, aliada à tolerância religiosa que nesses reinos se vivia, permitiu a entrada em cena dos Almorávidas, vindos do Sara, o deserto africano, que acabaram por impor a sua ortodoxia religiosa, considerando-se os únicos fiéis seguidores de Maomé. Contra os emires das Taifas, os quais, ao permitir tal tolerância religiosa, esquecendo que «não há outro deus senão Alá e (que) Maomé é o seu profeta», se tornam infiéis e merecedores de castigo.
Conquistado Marrocos, o caminho agora apontava para a destruição dos infiéis emires das Taifas, que não deixavam de se digladiar entre si e que viviam fazendo acordos com os cristãos, pagando-lhes mesmo tributos, o que indignava os ortodoxos muçulmanos.
Com a guerra fratricida, o luxo da corte e o pagamento dos referidos tributos não restava outra hipótese senão aumentar impostos, tornando a população cada vez menos predisposta a defender o reino, obrigando o Estado a contratar cada vez mais mercenários, levando o rei Afonso VI de Castela a não se contentar apenas com os tributos e a aumentar as suas exigências com vista ao domínio dos territórios das Taifas, o que obriga al-Mu’tamid a pedir auxílio ao emir dos Almorávidas, auxílio que viria a ser concedido mais do que uma vez e que abriria caminho à conquista dos territórios das Taifas pelos Almorávidas, conquista esta que, em meados do século XII , cairia nas mãos dos Almóadas, berberes do Alto Atlas. Mas este período já ultrapassa o tempo do nosso poeta, é a ele que nos interessa agora regressar.
Fazendo fé no pouco que se conhece do tempo das Taifas e, sobretudo, na poesia e nas cartas de al-Mu’tamid, este sempre terá pensado que o caminho a seguir não seria a guerra fratricida, mas sim o combate aos cruzados e a Afonso VI de Castela, unindo portanto os reinos das Taifas nesta luta comum, mas a sua prática foi seguir o caminho que tinha sido o do seu avô e o do seu pai, com os resultados referidos. Na carta em que pede auxílio ao emir dos Almorávidas, escreve o poeta, a dado passo: «Nós, Árabes, neste Andalus vemos o nosso povo em ruínas, as nossas populações desunidas e as nossas genealogias abastardadas pela renúncia aos princípios da nossa santa religião. Não passamos de facções, sem laços de solidariedade e sem união. », o que mostra bem a consciência de ter escolhido o caminho errado e que não era o que queria na sua juventude, como testemunha, claramente, a sua poesia.
No combate final contra os Almorávidas perde vários dos seus filhos e acaba partindo para o exílio com o que resta da família, incluindo a sua bem-amada ‘Itimad, a escrava que terá conhecido nas margens do Arade (outros dirão nas margens do Guadalquivir). Os restos mortais de al-Mu’tamid repousam num Mausoléu em Aghmât, perto de Marráquexe.
II
Chegado é agora o momento de justificar o título deste texto. Falemos então de Ana Cristina Silva, a escritora brilhante que recentemente mais me tem espantado e encantado.
Depois de As Fogueiras da Inquisição, onde trata de três gerações de uma família judaica portuguesa na sociedade do nosso século XVI, desde o reinado de D. Manuel I até à dinastia filipina, onde as fontes insertas nas várias histórias da Inquisição e sobre os Judeus em Portugal, nomeadamente a Inquisição de Évora, de António Borges Coelho, são as balizas históricas para o mundo criado por Ana Cristina Silva, de que a autora é profundamente respeitadora; depois de A Dama Negra da Ilha dos Escravos, onde, contando a história da fidalga D. Simoa Godinha, a mulata oriunda de uma família rica de S. Tomé, a romancista fala não só da vida em S. Tomé, mas também da sociedade lisboeta do século XVI, vem agora Ana Cristina Silva falar-nos do Emir-Poeta al-Mu’tamid e da complexa sociedade peninsular do século XI, em que ele viveu, cujo título completo é Crónica do Rei-Poeta Al–Mu’ tamid. Todos estes livros foram editados pela Editorial Presença (passe a publicidade gratuita).
Há, nestas obras, uma característica comum: a pobreza dos dados históricos para a construção das vidas que a autora nos dá a conhecer, particularmente nas duas últimas, o que dá à ficcionista uma grande liberdade de criação. Mas uma outra característica não pode deixar de se realçar: Ana Cristina Silva faz questão de respeitar a História. Tudo o que escrevemos na parte I deste texto poderia encontrar-se na obra da escritora com um pouco de imaginação, imaginação essa que está sempre presente em todos os historiadores.
Há ainda uma característica, em nossa opinião verdadeiramente fundamental nesta autora, que é a riqueza psicológica das personagens, de todas as personagens, principais ou secundárias, que cria nas suas ficções, não sendo naturalmente despiciendo a influência que nessa criação tem a profissão da autora, pois, para além de doutorada em Psicologia da Educação e de especializada na área da aprendizagem da leitura e da escrita, Ana Cristina é docente universitária das cadeiras de Psicologia da Comunicação e da Linguagem e de Seminário de Estágio no Instituo Superior de Psicologia Aplicada.
Dito isto, não se assuste o leitor; Ana Cristina Silva não procura a chamada linguagem erudita. Conhecedora das técnicas, sinto-a como senhora de uma profunda cultura humanista, tomando a expressão cultura humanista como significando o não reconhecimento de nenhum valor superior ao ser humano. Cria as suas personagens numa linguagem simples, acessível a todos os leitores, competência que só está ao alcance dos grandes escritores e Ana Cristina Silva, na minha modesta opinião, é uma grande escritora. Veja-se a forma como trata quer os momentos de intimidade das suas personagens e/ou as suas reflexões pessoais, quer os momentos dessas mesmas personagens em acção, como, por exemplo, o combate das massas guerreiras no confronto final com os Almorávidas e a acção individual do emir-poeta nesse mesmo confronto, a forma como expressa os sentimentos de cada um. Os sentimentos contraditórios do povo para com o seu emir são também exemplares, mostrando-nos ser essa uma das razões por que o fim de al-Mu’tamid não poderia ser outro: morrer no exílio, longe do luxo em que foi criado, mas rodeado do amor dos que sempre o amaram verdadeiramente, como a sua mulher preferida, a sua rainha ‘Itimad, falhada que foi a sua tentativa de morrer em combate. É de pessoas que sentimos vivas que a autora nos fala. É a história em movimento dialéctico, cheia das contradições com que temos de construir o futuro.
Lembro a apresentação que do livro fez o Prof. Adalberto Alves, em Vila Franca-de-Xira, e termino como ele terminou: «Obrigado Ana Cristina por esta Crónica do Rei-Poeta Al–Mu´tamid .
António Gomes MarquesI - Época histórica"A acção desta peça decorre durante o primeiro quartel do século X, ..." , assim inicia António Macedo
O Osso de Mafoma, representada na Malaposta em Outubro de 1990.
Aceitando a tradicional divisão da História por épocas, concluímos que é na Época Medieval que decorre a acção da peça. Ora, hoje ainda, há quem considere a palavra medieval como sinónimo de algo contrário ao progresso, apesar dos muitos estudos sobre tal época, já traduzidos para português e em Portugal publicados, nos demonstrarem o quão errónea é tal opinião. Se lermos, por exemplo, um texto de autor anónimo, Jeu d'Adam, representado numa igreja na segunda metade do século XII e que nos fala do feminismo, do antifeminismo, do casamento e da sexualidade, e, se desconhecermos o facto de se tratar de um texto de tal época, julgaremos, facilmente, estar perante uma obra nossa contemporânea. É apenas um exemplo já que, em História, não se tiram conclusões com base num só texto.
O período que vai dos começos da Idade Média, coincidente com a queda de Roma em 395, ou seja, data da divisão do Império Romano em Império Romano do Ocidente e Império Romano do Oriente, até 476, data esta que marca o fim do Império Romano do Ocidente e se prolonga até 800, é caracterizado por um certo obscurantismo e mesmo por um regresso ao barbarismo. É o primeiro período da Idade Média, que termina com o chamado Renascimento Carolíngio no fim do século VIII, princípio do século IX, o qual dará origem a novo período de grandes desenvolvimentos, não só na literatura, mas também nas artes e na filosofia, que vai durar até ao fim do século XIII, passando pelo Renascimento do século XII, bem caracterizado por Jacques Le Goff no seu livro Os Intelectuais na Idade Média, que constitui, portanto, o segundo período da Época Medieval, a qual só terminará com a queda do Império Romano do Oriente em 1453 e com o despertar económico que faz adivinhar os tempos modernos e os descobrimentos, sob o grande impulso dos portugueses e também dos espanhóis.
II - CristianismoSe aquele primeiro período da Época Medieval deve algo aos gregos e romanos e também aos germânicos, influências que não devem ser esquecidas, é bom reter que o cristianismo constitui base bem mais importante em tal civilização.
Os historiadores do cristianismo consideram, no seu desenvolvimento histórico, três períodos: antiguidade (séculos I a V), vivendo nas estruturas do Império Romano; medieval (séculos V a XV) em íntimo convívio com as novas estruturas europeias, para as quais deu notável contributo e, por fim, séculos XVI a XX; período da sua expansão, quantas vezes violenta, e da sua universalização.
Do seu fundador, Jesus da Nazaré, pouco se sabe para além de ter nascido na Judeia, mais ou menos no início da nossa era (ou da era cristã), tendo sido crucificado cerca de trinta e três anos depois, no reinado de Tibério.
Terão sido as influências recebidas dos profetas hebreus e das doutrinas dos essénios ("espécie de ordem monástica com tendências ascéticas") que o levaram a pregar.
Jesus da Nazaré nada deixou escrito, nem tão pouco os seus discípulos anotaram fosse o que fosse das suas pregações. O mesmo não sucederá com Maomé.
Nestas doutrinas encontrou Jesus a ideia do Messias salvador, não pela destruição dos que se lhe opunham, mas pela regeneração da vida espiritual e também dos homens.
Provas de que tivesse acreditado haver nascido de uma virgem não existem. Parece, isso sim, ter acreditado ser um Profeta a quem Deus incumbiu de regenerar os homens.
As fontes para conhecermos os ensinamentos de Jesus da Nazaré são os livros do Novo Testamento: as epístolas de S. Paulo e os quatro evangelhos, de S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas e S. João, assim como os textos do Velho Testamento.
Quanto a S. Paulo, sabe-se que nunca viu o Pregador e, nos seus discursos, cerca de vinte anos depois da crucificação, nota-se a grande influência da filosofia grega, mas esta influência deve ser entendida mais como uma forma de S. Paulo se fazer entender pelos gregos, utilizando portanto os esquemas mentais a que os seus ouvintes estavam habituados. Repare-se neste extracto: "Atenienses, vejo como em tudo sois os homens mais religiosos. Ao visitar, de passagem, os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta epígrafe: Ao Deus desconhecido. É precisamente aquele que vós honrais sem o conhecer que eu vos venho anunciar. O Deus que fez o mundo e tudo o que ele contém, sendo o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos de homem. Também não é servido por mãos de homem, como se precisasse de alguma coisa, ele que dá a todos a vida, a respiração e tudo. Foi ele que, de um só homem, fez surgir o género humano e o espalhou por toda a face da terra, depois de determinar as épocas exactas e os limites do seu domínio; a fim de que os homens procurem a Deus, se é verdade que o procuram às apalpadelas e o encontram, tanto mais que não está longe de cada um de nós, porque é nele que vivemos, nos movemos e somos, como até alguns dos vossos poetas disseram: porque nós somos também da sua raça. Sendo, pois, da raça de Deus, não devemos pensar que a divindade seja semelhante ao ouro, à prata, à pedra, trabalhados pela arte e pelo génio do homem. Esquecendo os séculos de ignorância, Deus fez saber agora por toda a parte e a todos os homens que devem arrepender-se, porque ele fixou o dia em que há-de julgar o universo com toda a justiça pelo homem que designou para este fim, do qual nos deu a certeza universal ressuscitando-o dos mortos".
No que aos Evangelhos respeita, é comum na História terem-se como dignas de crédito as suas pormenorizadas informações. O mais antigo parece ser o Evangelho de S. Marcos, escrito por volta dos anos 60 da nossa era.
Algumas diferenças podem ser encontradas nos quatro Evangelhos. Por exemplo, S. Mateus e S. Lucas falam-nos do nascimento de Jesus Cristo sem pecado, enquanto S. Marcos nada diz a esse respeito e S. João apresenta-O como Deus em forma humana.
Outras contradições poderiam ser apontadas. Não tiram, no entanto, valor aos Evangelhos como a melhor fonte de informação sobre as pregações de Jesus.
O essencial dos seus ensinamentos pode resumir-se no seguinte, que transcrevemos de E. McNall Burns:
" 1) A essência de piedade e o amor a Deus e ao próximo: «Amarás ao Senhor teu-Deus de todo o coração. Amarás ao próximo como a ti mesmo. Não há mais alto mandamento que estes.»
2) O perdão, a cordura e o amor aos inimigos são virtudes cardiais: «Ama teus inimigos... faz o bem a quem te odeia»; «... a quem quer que bata em tua face direita, oferece também a outra».
3) O meio-termo como fundamento da moralidade: «Tudo o que desejais que os homens façam por vós, fazei assim também por eles...».
4) Oposição ao ritualismo como base da religião: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado». (V. aqui a influência judaica – A. G. M.).
5) Condenação do egoísmo e de toda disputa sobre proveitos materiais: «Quem quiser salvar sua vida, perdê-la-á». «É mais fácil um camelo passar pelo buraco duma agulha, que um rico entrar no reino de Deus».
6) A fraternidade dos homens sob a benevolente paternidade de Deus: exemplificada na história do bom samaritano e em numerosas comparações da benevolência de Deus com a bondade de um pai extremoso"
Muitos dos seus seguidores não iriam aplicar à letra muitos dos seus ensinamentos e a principal causa do seu triunfo terá residido no facto de ter aproveitado ensinamentos de variadas religiões, em especial do judaísmo, do maniqueísmo e do zoroastrismo.
Disputas doutrinárias vão ser constantes e uma organização cristã vai nascendo. A influência dos místicos, no seguimento da vida apostólica, e da vida conventual são importantes, embora não tão fundamentais como a organização eclesiástica para a uniformidade do cristianismo.
III - Islamismo"O termo islão significa «submissão a Deus» e como tal designa essencialmente uma religião, aquela que foi pregada por Muhammad (ou Maomé), no início do século VII da nossa era, na Arábia e que se espalhou, de seguida, nos numerosos países conquistados pelos Árabes muçulmanos no decurso dos séculos VII e VIII" .
Maomé, fundador da nova religião, nasceu em Meca em 570. Órfão muito novo, de pai e mãe, torna-se aos vinte e quatro anos empregado de uma viúva rica, com quem vem a contrair matrimónio, sendo este desafogo económico o que vai permitir-lhe dedicar-se à difusão da sua religião.
A origem de Meca como cidade sagrada perde-se no tempo. Era ali que se encontrava a pedra preta sagrada enviada pelo céu, contida no relicário, Caaba, guardado pela tribo dos Kuraish, uma espécie de aristocratas.
A necessidade de uma nova religião para unir os povos árabes, perdidos em conflitos fratricidas, terá sido compreendida por Maomé. Impressionado pelo cristianismo e pelo judaísmo, começou por pregar contra as perniciosas condições sociais e morais do seu povo, que, a continuarem sem reforma, o levariam à destruição.
Apresentou-se como enviado de Deus. Meca foi pouco receptiva à sua mensagem. Resolve, então, dirigir-se com os seus companheiros à cidade de Iatribe, aproveitando-se das lutas entre as várias facções ali existentes, vindo a impor-se aos seus adversários. A esta deslocação de Meca para Iatribe chamam os maometanos Hégira, que, em árabe, quer dizer fuga. Os maometanos consideram esta data como o início da sua era.
A vitória de Maomé vai permitir-lhe o regresso a Medina precisamente dois anos antes da sua morte, ocorrida em 632, ou seja, no 11.° ano da era muçulmana.
Após a sua vitória, em especial sobre os judeus, que só num ano perdem mais de 600, Maomé mudou o nome de Iatribe para Medina, a cidade do Profeta.
Em Meca, mata alguns dos seus adversários, destrói os seus ídolos mas preserva a Caaba. Meca é designada a cidade sagrada dos maometanos.
A vida religiosa dos seguidores de Maomé é ainda hoje baseada no Corão, livro sagrado, construído com base nas suas pregações e graças à memória dos seus discípulos. «Não há outro deus senão Alá e Maomé é o seu profeta», é uma profissão de fé do islamismo.
“Da sociedade islâmica dimanam regras religiosas, morais e jurídicas para serem cumpridas, em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso, o Soberano no Dia do Juízo Final, portanto o Temível, o que faz aplicar castigos terríveis e suplícios.
Quais as sanções específicas de ordem moral? Em primeiro lugar, o remorso, o arrependimento, o peso da consciência, ou melhor, o penoso exame de consciência. São estas as formas de garantia do cumprimento das regras, aliadas ao Juízo de Deus que tudo vê e que de tudo sabe.
As de ordem social são talvez bem mais amargas. Consoante o comportamento do Homem, haverá uma reacção por parte da Sociedade estabelecida. São a crítica e a condenação que o desrespeito à regra suscitou. É a opinião pública que se abre sobre a conduta a reprovar. São, enfim, muitas vezes, o banimento do Homem da Sociedade em que vivia, o seu exílio compulsivo, nunca esquecendo as contas que, de qualquer modo, ele terá de prestar, no fim, a Allâh.
Deparamos com sanções morais e jurídicas correspondendo às regras de natureza moral e jurídica e penas próprias de infracções a normas religiosas que dizem respeito à fé.
A ideia fundamental da religião a1corânica, neste caso, é a de que mais não vivemos do que uma mera vida transitória, passageira, mais ou menos longa, que não tem em si a extensão do seu valor. Só é medida, segundo valores eternos, à luz da ideia de uma vida extra terrena, em cujo limiar todos os homens serão julgados. Na base desse juízo, está o valor ético da própria existência do Homem; neste caso, a religião alcorânica é mais acessível à índole humana. Está mais de acordo com o comportamento dos homens do que a religião católica. Mas, em ambas, o remorso é, para o Crente, uma forma de sanção imediata e imperiosa. É o que se entende e se depreende de frases como esta: «A Vida Imediata é somente jogo e distracção. Se acreditarem e forem piedosos, Allâh dar-vos-á recompensas sem que vos retire os vossos bens.» (O Corão). Entendamos, pois, que tudo quanto nos foi dado é apenas uma provisão para a vida neste mundo, mas o que se acha junto de Deus é melhor e mais duradouro para os crentes, para os que se apoiam no seu Senhor - é o que depreendemos do «capítulo»: «Recompensa dos Crentes e dos Infiéis no Além». Mas como misericordioso que Deus se nos apresenta, com frequência, há também que contar com o perdão: aos crentes, fiéis e arrependidos a tempo e horas, o Senhor oferece compensações não só ultra terrenas mas também durante a vida. A sanção é, pois, uma forma de garantia daquilo que fica determinado numa regra" .
O Islamismo assume-se como um complexo político-religioso, afirmando que a vontade de Deus só se consolidará na Terra com o contributo do poder político: " Assistimos, então, aos juristas e teólogos muçulmanos elaborarem, baseados no fundamento da Revelação Divina, um direito completo, cheio de pormenores, o direito que assenta numa sociedade teocrática, na qual o Estado não tem valor a não ser como servidor da religião revelada. " . Não fez o cristianismo o mesmo? Hoje, o islamismo continua a afirmar o Estado como seu servidor, sendo nisso mais transparente do que o cristianismo.
Será esta uma questão polémica que não iremos tratar aqui.