Quarta-feira, 20 de Abril de 2011

"Little Galiza", por Carlos Loures

 

 

 

 

 


 

 

 

No século XIX e no princípio do XX nem todas as casas de Lisboa tinham água corrente. Trabalho penoso que os portugueses não o queriam fazer, o dos “aguadeiros”; os galegos aproveitaram para criar aquilo a que chamaríamos hoje um «nicho de mercado». Aquilino Ribeiro em Lápides Partidas (1945), refere um galego, do Porriño, que escreve à mulher: «A terra é boa, a xente é tola, a auga é deles e nòs vendemoslla». Aliás, na literatura portuguesa da primeira metade do século XX, os galegos eram parte integrante da paisagem humana, principalmente em Lisboa. Eduardo Noronha, em Memórias de um galego, tem uma personagem que diz «Os portugueses vão para o Brasil, nós vamos para Portugal, é mais perto, melhor caminho e ganha-se mais dinheiro». Entre muitos outros, Fernando Assis Pacheco pertencente a uma família oriunda da Galiza e José Saramago, escreveram sobre galegos. Uma lista de referências literárias a tão simpática gente, não cabe nas características deste texto por demasiado extensa e já existe um bom trabalho, o de Rodrigues Vaz, Os Galegos nas Letras Portuguesas, (Pangeia Editora, Lisboa, 2008)

 

Nasci em plena Baixa de Lisboa e, desde que me lembro, sempre encontrei galegos por perto. E as minhas primeiras recordações remontam a um tempo em que as feridas da Guerra Civil de Espanha ainda sangravam naqueles anos quarenta e, portanto, ainda havia imigração galega, pese embora a pobreza que grassava aqui por Portugal. A presença desses imigrantes era notória. Na minha rua, a dos Douradores, quase todos os restaurantes eram de galegos. Aniversário, dia festivo ou por qualquer extravagância naqueles tempos de economia apertada, lá íamos, eu e os meus pais, até à Antiga Casa Pessoa, ao Bessa, ao Guimarães. Por vezes saíamos da nossa rua e íamos até ao João do Grão. Éramos amavelmente atendidos por empregados com a característica pronúncia. Nunca considerámos os galegos como estrangeiros. Faziam parte da cidade, lisboetas como todos os outros. Mas ali, a Baixa, sobretudo as ruas mais modestas – Madalena, Fanqueiros, Douradores, Correeiros, Sapateiros… - concentravam comércios (tascos restaurantes – em casas de andares superiores, em quartos e partes de casa alugados viviam famílias galegas. Era uma pequena Galiza, a «little Galiza», como diriam os norte-americanos.

 

Na escola primária tive diversos colegas galegos ou galegos de segunda geração e no Ateneu, onde estudei, também os meus dois melhores amigos eram, em graus diferentes, descendentes de galegos. O José González, filho de galegos, ambos do Porriño e que terão vindo já adultos e casados. O José já aqui nasceu. Gente bem colocada, com uma excelente alfaiataria. O Jaime Camecelha, que, mais do que um amigo, foi para mim como um irmão, (faleceu em 2003) era descendente bastante mais remoto de uma família galega vinda, salvo erro, de Pontevedra para Portugal há muito tempo, talvez nos anos negros do século XIX. Era neto de Alfredo Camecelha, o primeiro atleta a ganhar uma prova para o Benfica (depois transferiu-se para o Sporting). Num torneio realizado em 1909, lançou o peso e fez também parte da equipa de luta de tracção nesse mesmo torneio. Ainda o conheci, na casa onde o Jaime vivia com os pais e irmãos, numa festa de aniversário por meados dos anos 50, tocando viola e cantando. Nascido em 1880, teria cerca de 75 anos, conservando uma grande jovialidade. Já nascera em Lisboa. Seu pai, sim, era um imigrante, nascido no Porriño. Penso escrever uma pequena biografia deste atleta. No grupo do café Gelo, havia um poeta galego de 2ª geração – o José Carlos González que colaborou no nº 2 da revista “Pirâmide”, de que já aqui falei. Era um bom poeta, com uma linguagem surrealista ou surrealizante.

 

 

publicado por João Machado às 21:00
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Quinta-feira, 23 de Dezembro de 2010

Um galego em Coimbra



(Foto de José Magalhães)
  No texto anterior falámos de futricas. Eis, descrito pela pena do inesquecível Fernando Assis Pacheco, um futrica especial - Benito Prada. 



Fernando Assis Pacheco





Viver em Coimbra não era o mesmo que viver noutro ponto que fosse do universo mais geral, como Benito Prada se apercebeu sem que lho explicassem, mas demorando anos a destrinçar todos os matizes dessa diferença.

O seu estatuto de pequeno comerciante, agravada pela curta experiência na mestra de Ventosela, fazia dele um futrica, ou seja não-escolar, com o acesso gravemente condicionado ao círculo da ilustração.

Neste, se é permitido o excurso, cabiam os licenciados pelas várias faculdades, os estudantes, os sacerdotes e bem assim os militares a partir de oficial subalterno. No entanto podia ser cooptado um simples funcionário público ou, com liberalidade talvez excessiva, mesmo um empregado de balcão ou similar – o que se usava menos -, desde que tivesse feito um ou dois anos de liceu e as tertúlias dos cafés, rubicões severos, resolvessem admiti-lo. Dava-se também o caso de alguém bem posicionado nas câmaras do saber arrastar à soga um próximo parente sem grandes estudos nem dinheiro sonante; esse depois de analisado pelo júri da cidade letrada, se passasse com aproveitamento todos os graus de iniciação e ajustasse o nó da gravata ao modelo em voga, era recebido como igual pelos ilustrados.

Um bom apelido, melhor ainda se dobrado, tornava mais fácil esta operação, dada a sensibilidade do burgo à componente aristocrática. Aliás os aristocratas, na sua maior parte já sem bens de raiz e muitos deles roçando a pobreza envergonhada, vivendo a glória postiça de terem um avô citado, ainda que sob o estigma da bastardia, num cronicão dos frades crúzios, eram como universitários congénitos.



Ao lado, e bem entendido por cima, estavam os titulares das grandes fortunas, que o lente Maia Júnior exemplificava, mas não de todo, dado ser mestre laureado de Propedêutica Médica e não necessitar de mais atributos para declarar-se, como era, um excelso doutor. O benfeitor da Giraldiya não queria saber destas minudências, tendo até um dito para sacudir a prosápia dos ilustrados: "Posso bem com a Universidade, as baratas das estantes é que me enervam."


Livrava-se igualmente do entediante xadrez político da época tal e qual se livrara o pai, fechando o portão na cara aos chefes dos partidos com a desculpa das eleições fazerem perder as amizades. Politica e ilustração eram mundos concêntricos no mapa da I República.


Os estudantes pesavam desde há séculos na vida de Coimbra. Benito Prada gastou ainda mais tempo a interpretar esse aparente mistério, que suportava com náusea nos dias de festa. Achava má educação que eles trouxessem para a rua os trastes velhos e toda a sorte de latas vazias, com que organizavam cortejos de um pretenso humor insuportável.


"Insuportável para si", discordou Jorge Ourives um sábado em que os festejos desaguaram nas Escadas de São Tiago. "Estão na idade de fazer estas coisas, e se averiguar um a um, são quase todos rapazinhos da província, criados em meio pequeno, chegam cá e julgam-se uns cães galgos. Só os ensinam mal num ponto: a detestar os futricas."


"Há um particular que você não sabe", disse então o galego. "Futrica também se usa na minha terra entre os afiadores, significa coisa sem valor. Se eu adivinhasse que era este desterro tinha pensado duas vezes."


"Antes de vir? Mas veio, e quer deitar raízes em Coimbra. Vingue-se, homem, vingue-se com a ferramenta que tem: faça um filho e mande-o tirar o curso mais caro da Universidade, e se não for suficiente faça-o reitor, faça-o administrador do concelho, faça-o ministro, ou como o Sidónio diz, secretário de Estado".


Benito estava em brasa:


"Olhe-me aquele rexelo a molhar as pessoas com o regador!"


"Pois não devia, não senhor" disse o ourives imperturbável, "mas quem sabe se do rexelo não vai sair um martinho. Ou o futuro cardeal patriarca."


O galego pretendia à viva força bater no engraçado. Viajara os seus anos jovens com uma carroça, um mulo e uma bolsa de dinheiro atada à cinta por dentro das calças, disfarçada com o colete; refreara até à indecência os motivos de diversão, e mesmo Do Céu não tinha sido mais do que um acaso proporcionado pelo Grego. O ourives apartou-o:


"Deixe regar o rapaz, que é para a gente ver se cresce!"


Semanas depois, sem o confessar, achou uma graça supina a outra festa em que os estudantes queimaram as fitas de seda com as cores das faculdades num penico de esmalte, embebedando-se exaltadamente. Populares juntaram-se ao grupo e capitanearam a música.

Havia um coxo com uma viola braguesa e uma mulher de preto que cantava os fados de César Magliano, bonitos de chorar. Benito trauteou uma muiñeira do San Bartolomé mas ninguém sabia o acompanhamento.




(in Trabalhos e Paixões de Benito Prada,  de Fernando Assis Pacheco, 4ª edição, Edições Asa, Lisboa, 1996, pp.108 a 111) 

publicado por Carlos Loures às 10:00
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