Quarta-feira, 8 de Setembro de 2010

Maratona Poética - Vêm aí Horácio, Nuno Júdice e Jorge Luís Borges

Horácio
(Venúsia, 65 a.C. — Roma, 8 a.C.)

ARTE POÉTICA (ou A Espístola aos Pisões) - fragmentos

Tomai um assunto, vós que escreveis, proporcional às vossas forças. Avaliai longamente o que os ombros ferrenhamente recusam e o que podem. A quem escolheu conforme suas forças, nem a eloqüência o abandonará, nem a ordem clara. Consistirá a força e a beleza da ordem, ou estou enganado, em que o autor do poema anunciado diga agora as coisas que agora devem ser ditas, muitas outras adie e omita no momento, ame isso, despreze aquilo.


Delicado e cauto também ao juntar palavras, te expressarás distintamente se, por combinação engenhosa, uma palavra conhecida produzir uma nova. Se casualmente for necessário mostrar o oculto da coisas com revelações novas, e acontecer de se criar coisas nunca ouvidas pelos Cétegos cintudos, permissão será dada, se usada com reserva, e as palavras inventadas ainda novas terão crédito se, derivadas  com discrição, caírem de fonte grega. Concederá, pois, o romano a Cecílio e Plauto  o que foi proibido a Virgílio e Vário ? Eu, por que sou invejado, se poucas coisas posso obter, quando a linguagem de Catão e Ênio  enriqueceu a língua pátria e exibiu novos nomes de coisas?

Sempre foi e será permitido criar um nome assinalado com marca do presente. Como as florestas são transformadas por suas folhas com o passar dos anos, caindo as mais velhas, assim se perde a geração antiga das palavras e, como os jovens, florescem as nascidas há pouco e vingam.
 
________________________________________
   
Nuno Júdice
(Mexilhoeira Grande,  1949)


ARTE POÉTICA COM CITAÇÃO DE HÖLDERLIN


O poema lírico nasceu de uma roseira. Não
digo que fosse a rosa de cima, aquela que todos
olham, primeiro que tudo, pensando
em cortá-la para a levarem consigo. É
a rosa nem branca nem vermelha, a rosa pálida,
vestida com a substância da terra
a que toma a cor dos olhos de quem a fixa, por
acaso, e ela agarra, como se tivesse
mãos abstractas por dentro das suas folhas.
Colhi esse poema. Meti-o dentro de água,
como a rosa, para que flutuasse ao longo de um rio
de versos. O seu corpo, nu como o dessa mulher
que amei num sonho obscuro, bebeu a seiva
dos lagos, os veios subterrâneos das humidades
ancestrais, e abriu-se como o ventre da
própria flor. Levou atrás de si os meus olhos,
num barco tão fundo como a sua própria
morte.

Abracei esse poema. Estendi-o na areia
das margens, tapando a sua nudez com os ramos
de arbustos fluviais. Arranquei os botões
que nasciam dos seus seios, bebendo a sua cor
verde como os charcos coalhados do outono. Pedi-lhe
que me falasse, como se ele só ainda soubesse
as últimas palavras do amor.

(Metáfora contínua de um único sentimento).
_____________________________
    ________________


Jorge Luis Borges
(Buenos Aires, 1899 — Genebra, 1986)
 
ARTE POÉTICA


Mirar el río hecho de tiempo y agua
Y recordar que el tiempo es otro río,
Saber que nos perdemos como el río
Y que los rostros pasan como el agua.
Sentir que la vigilia es otro sueño
Que sueña no soñar y que la muerte
Que teme nuestra carne es esa muerte
De cada noche, que se llama sueño.
Ver en el día o en el año un símbolo
De los días del hombre y de sus años,
Convertir el ultraje de los años
En una música, un rumor y un símbolo,
Ver en la muerte el sueño, en el ocaso
Un triste oro, tal es la poesía
Que es inmortal y pobre. La poesía
Vuelve como la aurora y el ocaso.
A veces en las tardes una cara

Nos mira desde el fondo de un espejo;
El arte debe ser como ese espejo
Que nos revela nuestra propia cara.
Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
Lloró de amor al divisar su Itaca
Verde y humilde. El arte es esa Itaca
De verde eternidad, no de prodigios.
También es como el río interminable
Que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
Y es otro, como el río interminable.

Ouçamos o próprio Borges declamando este poema:



___________________________

Vêm aí, às cinco em ponto, António Sales, Miguel Torga e Natália Correia.
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publicado por Carlos Loures às 04:00
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Segunda-feira, 6 de Setembro de 2010

A Arte poética - A catacrese

Nota prévia: Aproximando-se a "Maratona Poética", temos vindo a publicar textos sobre poetas e sobre a poesia em geral. Este, de João Machado, é o primeiro que faz um levantamento das teses clássicas sobre a Arte Poética.

João Machado


Desde a antiguidade que se tenta enunciar regras para a arte poética. Mais do que evitar a proliferação de má poesia, procura-se assim descobrir o caminho que permita às pessoas comuns fazerem poesia. Na verdade, esta procura subentende o reconhecimento generalizado da importância da poesia para a vida dos homens. Mais concretamente, para a comunicação entre os homens. Numerosos poetas e pensadores deram o seu contributo neste campo, desde Aristóteles e Horácio Flaco, na antiguidade, até Boileau, Edgar Allan Poe e T. S. Eliot.. entre outros, mais recentemente.

O poeta francês Jean de Royére, simbolista, seguidor de Mallarmé, na introdução a Clartés sur la Poésie, livro de 1925, editado por Albert Messein, disse estar persuadido de que a poesia é uma repetição e uma catacrese, e que esta última é o elemento essencial, a figura fundamental, a alma da poesia. Ora bem, o que é a catacrese?

José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, explica que é um substantivo feminino, que vem do grego katakhrisis, pelo latim catachresis, e que é um tropo pelo qual se estende a significação de uma palavra a uma ideia que tem falta de termo próprio, como em “pernas da cadeira”. Por sua vez, Rocha Lima, professor brasileiro, na sua Gramática Normativa da Língua Portuguesa (página 490 da edição de 1967), refere que na figura catacrese ocorre o total esquecimento do sentido etimológico das palavras, e que é a última consequência de outra figura, a metáfora.

Rocha Lima recorda-nos ainda que a linguagem figurada, ou tropológica, assenta nas alterações de sentido das palavras, fundamentada no que chama a mais natural das leis psicológicas: a associação de ideias.

Talvez haja exagero na definição de poesia avançada por Royére. Mas é um facto que a poesia, como aliás a literatura em geral, contribui grandemente para a renovação e o enriquecimento da linguagem. A procura e a organização das palavras de modo a transmitir o melhor que possível uma mensagem a um auditório, integram o esforço constante do poeta. Outro aspecto do seu trabalho é, sem dúvida, procurar a musicalidade adequada à sua mensagem. Mas aquilo que o termo catacrese procura exprimir, forma sem dúvida uma base essencial para a arte poética.
publicado por Carlos Loures às 16:30
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