Quarta-feira, 9 de Fevereiro de 2011

Viagem - por ethel Feldman

 

Entre partir e chegar - sentar. Apertada na poltrona cada vez mais estreita, coloco o cinto de segurança. Ao meu lado: ninguém. Da janela veojo o branco que se perde na escuridão.


Trago comigo dois livros. O passageiro do banco de trás joga. Na fila ao lado um casal discute.


Tento dormir mas o queixo encontra o peito e sufoco. Coloco um joelho para cima e fico entalada. Tento ler um livro. Fico com sono.


Tranquilo, viaja de olhos fechados. Um sorriso na face acompanha o homem sereno. Parece um poema contínuo. Sem fim. Contagia meu corpo.

Endireito as costas. Pouso as mãos nas minhas coxas. Deixo-me estar. Devagar, escuto o ar que respiro. Meigo é o tempo que agora me abraça.

Descoberta que emociona.

Uma lágrima dança na minha boca, como se fosse eu o horizonte deste caminho novo.

Fecho os olhos. Sem pressa, sorrio.

Ao meu lado adormece o poema inacabado:


Dormi o sono dos justos, sem nunca ter acordado. Encontrei o sonho. Repousei os demónios.
Intervalo de tempo. Passado o engano, na fronteira do indizível encontro o silêncio. Aqui, onde o mar e o rio se unem e separam. Salgado e doce, dentro e fora, a mesma água. Repouso sem adormecer.

publicado por Carlos Loures às 10:00

editado por Luis Moreira às 01:48
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Segunda-feira, 17 de Janeiro de 2011

José Eduardo Agualusa - O Homem da Luz

Coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

 

 

Quem conta um conto...

 

 

 

Nicolau Alicerces Peshkov tinha uma ca­beça enorme, ou talvez o corpo fosse mirrado para ela, o certo é que parecia colocada por en­gano num físico alheio. O cabelo, o que restava, era daninho e ruivo e o rosto coberto de sardas. O nome improvável, a fisionomia ainda mais extraordinária, tudo isso se devia à passagem pelas terras altas do Huambo de um russo extraviado, um russo branco, que nos seus delírios alcoóli­cos se vangloriava de ter servido Nicolau II como oficial de cavalaria. Além do nome e das sardas Nicolau Alicerces Peshkov herdara do pai a paixão pelo cinema e uma velha máquina de pro­jectar. Foi precisamente o nome, as sardas, a máquina de projectar, digamos pois, a herança russa, que quase o levou a enfrentar um pelotão de fuzilamento.

 

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

Antes disso havia passado dois dias e uma noite escondido dentro de uma caixa de peixe se­co. Acordara sobressaltado com o latido dos ti­ros. Não sabia onde estava. Isso acontecia-lhe sempre. Sentou-se na cama e procurou lembrar-se, enquanto o tiroteio crescia lá fora: chegara ao entardecer, pedalando na sua velha bicicleta, alu­gara um quarto na pensão de um português, des­pedira o miúdo James, que tinha família na vila, e fora-se deitar. O quarto era pequeno. Uma cama de ferro com uma tábua por cima e sem colchão. Um lençol, limpo mas muito usado, puído, a cobrir a tábua. Um penico de esmalte. Nas pare­des alguém pintara um anjo azul. Era um bom desenho, aquele. O anjo olhava-o de frente, olha­va para alguma coisa que não estava ali, com o mesmo alheamento luminoso e sem esperança de Marlene Dietrich.

 

Nicolau Alicerces Peshkov, a quem os mucubais chamavam o Homem da Luz, abriu a janela do seu quarto para se inteirar das razões da guerra. Espreitou para fora e viu que ao longo de toda a rua se agitava uma turba armada, mili­tares alguns, a maioria jovens civis com fitinhas vermelhas amarradas na cabeça. Um dos jovens apontou-o aos gritos e logo outro fez fogo na sua direcção. Nicolau ainda não sabia que guerra era aquela mas compreendeu que, qualquer que fosse, estava do lado errado — ele era o índio, ali, e não tinha sequer um javite (machadinha) para se defender. Saiu do quarto, em cuecas, en­trou pela cozinha, abriu uma porta e encontro um quintalão estreito, fechado ao fundo por um alto muro de adobe. Conseguiu saltar o muro, trepando por uma mangueira esquá­lida, que crescia ao lado, e achou-se num outro quintal, este mais ancho, mais desamparado, junto a uma barraca de pau a pique que parecia servir de arrecadação. Pensou em James Dean. O que faria o garoto naquela situação? Certa­mente saberia o que fazer, James era um espe­cialista em fugas. Viu um tanque de lavar roupa, com água até cima, coberto por uma lona. James Dean entraria para dentro do tanque, e ficaria ali, o tempo que fosse necessário, à espera que lhe nascessem escamas. Ele, porém, não cabia naquela prisão. O corpo até se encaixava mas não a cabeça. Estava neste desespero, podia ou­vir a turba a aproximar-se, quando deu com a caixa de peixe. O cheiro era pavoroso, um odor forte a mares putrefactos, mas tinha o espaço exacto para um homem agachado. Assim me­teu-se dentro da caixa e aguardou.

 

 

publicado por Carlos Loures às 14:00

editado por Luis Moreira às 14:19
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Terça-feira, 1 de Junho de 2010

Saldanha Sanches - um homem de coragem!



Uma maravilhosa exaltação do homem corajoso e íntegro que foi José Luis Saldanha Santos.Prestamos a nossa homenagem a um homem que sempre admiramos, muitas vezes, embora, em barreiras diferentes, mas comuns no essecial. São palavras de Maria José Morgado, no elogio fúnebre a seu marido:

"Zé Luis: começámos esta tua última viagem (tu gostavas de viagens) na cama 56 dos serviços de cirurgia 1 do Hospital de Santa Maria. Lia-te poesia e um dia parámos neste poema da Sophia de Mello Breyner:

”Apesar das ruínas e da morte,

Onde sempre acabou cada ilusão,

A Força dos teus sonhos é tão forte,

Que tudo renasce a exaltação

E nunca as minhas mãos ficam vazias”.

Assim foi.

No teu visionário e intenso mundo, a voracidade de um cancro traiçoeiro não te consumiu a alegria, a coragem, a liberdade. Entraste pela morte dentro de olhos abertos. O mundo que habitavas era rico de ideias, de sonhos, de projectos, de honradez e carinho. Percebemos o que ia acontecer quando no fundo do teu olhar sorridente brilhava uma estrela de tristeza. Quando te deixava ao fim do dia na cama 56 e te trazia no coração enquanto descia a Alameda da Cidade Universitária a respirar o teu ar da Universidade, das aulas e dos alunos que adoravas, do futuro em que acreditavas sempre.

Foste intolerável com a corrupção, com os cobardes e oportunistas. Não suportavas facilidades. Resististe à sordidez, à subserviência, à canalhice disfarçada de respeitabilidade e morreste como sempre viveste - livre.

Uma palavra para aqueles que te acompanharam nesta última viagem: para os melhores médicos do mundo, para as melhores equipas de enfermagem e de apoio, num exemplo de inexcedível dedicação ao serviço médico público. Vivi com emoção diária o carinho com que te cuidaram.

Uma palavra de gratidão sentida para o Professor Luis Costa e para o Paulo Costa. E para um velho amigo de sempre o Miguel.

Também para Laura e para o Jorge e para a minha mãe e toda a família que nunca te deixou. Por fim uma palavra para aqueles amigos que inventaram uma barricada contra a morte no serviço de cirurgia 1, cama 56, e te ajudaram a escrever, a pensar, a continuar a trabalhar: o João Gama, o João Pereira e senhor Albuquerque, cada um à sua maneira.

Suspiraste nos meus braços pela última vez cerca da 1,15 da madrugada do dia 14 de Maio. Vai faltar-me a tua mão a agarrar na minha enquanto passeávamos e conversávamos.

Provavelmente uma saudade ridícula, perante a força do exemplo e da obra que nos deixaste e me foi trazido por todos aqueles que te homenagearam – a quem deixo a tua eterna gratidão.

Tenham a coragem de continuar.

16.05.2010 - Maria José Morgado
publicado por Luis Moreira às 20:00
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