No prefácio de A Poesia Lírica Cultista e Conceptista, já ontem referido aqui no VerbArte, o Prof. Hernâni Cidade, quase ao princípio, escreveu o que a seguir se transcreve, para termos mais um contributo para a questão do que é a poesia. Aqui vai, com a devida vénia. Não quer dizer, obviamente, que se subscreva tudo o que diz:
“Qualquer que seja a definição que da poesia se possa dar, estes dois traços hão-de caracterizá-la sempre:
1.º Ela é a expressão verbal de um estado de alma que, melancólico ou alegre, exuberante ou deprimido, de gravidade dramática ou de leveza risonha, é mais para ser sentido como fonte de prazer estético, do que para ser analisado como objecto de conhecimento racional;
2.º Porque assim é, em vez da ordenação e da clareza expressiva do discurso lógico, fará a poesia predominantemente uso dos símbolos, das imagens, da música verbal, que são os meios mais adequados a comunicar a emoção e o encantamento interior, irredutíveis à análise”.
João Machado
Este ano comemora-se o centenário do nascimento de vários vultos do neo-realismo. Umas terão mais destaque, como Alves Redol e Manuel da Fonseca, outras menos, como Políbio Gomes dos Santos e Afonso Ribeiro. Estas comemorações revestem-se da maior importância para a cultura portuguesa, e não apenas para os admiradores do neo-realismo. Convém recordar a propósito que o neo-realismo, na literatura, e na arte em geral, se afirmou como a expressão do primado do conteúdo sobre a forma, em oposição a outras correntes tidas como tendencialmente inócuas.
Sem querer, para já, entrar mais fundo nesta questão, há que recordar que este conflito entre forma e conteúdo vem na continuação de um diálogo permanente entre a vontade de fazer sentir, de dar a conhecer a outrem (aos leitores, aos espectadores, aos ouvintes) problemas, situações, sentimentos, e a procura da melhor maneira, da maneira mais agradável ou mais eficaz de o fazer. A reacção ocorrida no século XVII contra os estilos chamados de cultista ou culto, e de conceptista inscreve-se neste diálogo, por vezes francamente conflituoso. O professor Hernâni Cidade (1887-1975), no prefácio à colecção de poesias do século XVII, oriundas principalmente da “Fénix Renascida”, intitulada A Poesia Lírica Cultista e Conceptista, editada por Textos Literários, diz que o cultismo e o conceptismo são duas expressões de um conceito de poesia fundamentalmente idêntico, integrado no estilo da época barroca, que a reduz a uma actividade puramente lúdica. Mas na altura já havia quem discordasse deste conceito. Exemplo será a poesia, de que a seguir se transcreve uma parte, incluída naquela colecção, que terá sido composta por Diogo Camacho (Pegureiro do Parnaso):
Que o verso culto e claro
Sempre o julgava Apolo por mais raro;
Mas, porém, que não fosse
Tão claro que ficasse de água doce.
Não vês (dizia a Ninfa
Ao som da corrente e clara linfa)
Que o mundo é mais formoso
Quando se mostra o Sol mais luminoso?
Não vês que não deseja alguém a fonte,
Quando os enxurros tem que vêm do monte?
Porém, depois que clara, limpa e pura
Por entre as flores do jardim murmura,
Não há boca tão bela,
Que não queira molhar os lábios nela.
Quem quer fazer escura uma poesia
Tem mais amor à noite do que ao dia.
São lastimosas mágoas
Turbar as fontes e beber das águas.
Seja o conceito fundo,
Mas que possa entendê-lo todo o mundo;
Que não perde a beldade
O Sol, por ter mais luz e claridade.
Por escárnio somente ou zombaria
Se pode escurecer qualquer poesia.
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