Carlos Loures
Herbert George Wells, nasceu em 1866 em Bromley, Inglaterra, e morreu em 1946, em Londres. «The Time Machine», publicado em 1895, foi um dos seus primeiros romances e um dos seus maiores êxitos. Mas teve outros, como por exemplo «The Invisible Man» (1897). De 1898 é «The War of the Worlds», a famosa «Guerra dos Mundos» que, pela mão de Orson Welles, que a transformou em peça radiofónica, pôs em 1938, a América em pânico, pensando que os marcianos estavam a invadir a Terra (hei-de contar esta história). Ideia que o Mário-Henrique Leiria, o António José Forte e outros manos do Gelo aproveitaram para a sua «Operação Papagaio».
Como muitos sabem, a história original conta como «o viajante no tempo» (the Time Traveller) inventa uma máquina capaz de se mover também na quarta dimensão. E lá vai ele parar, nem mais nem menos, do que ao ano 802 701 a um mundo estranho, uma espécie de Eden, mas com um inconveniente - os Elois, uma raça de gente boa e vegetariana, serve de alimento aos malvados Morlocks, carnívoros o mais possível (que se escondem em subterrâneos). "A Máquina do Tempo", de H.G. Wells, converteu-se num dos arquétipos da chamada ficção distópica (o inverso de utópica), de que "1984", de George Orwell´constitui o principal exemplo.
Ora bem. H.G. Wells, se bem que jovem escritor estreante, era tudo menos inocente – a época vitoriana em que o livro é escrito era fértil em «elois», que trabalhavam literalmente como escravos a partir dos cinco anos de idade, para alimentar os «morlocks» que se pavoneavam por Londres e não só, porque a desenfreada exploração a que a Revolução Industrial deu lugar, foi o «caldo de civilização» em que Karl Marx, de colaboração com Engels, escreveu em 1848 o seu «Manifesto Comunista», tal era a densidade da injustiça social vivida na Europa.
Mas Wells escusava de ter ido tão longe no tempo – andando pouco mais de um século para a frente, encontraria, sem se mover no espaço, morlocks e elois, ali mesmo em Londres. E ele bem o sabia. Se quisesse deslocar-se um pouco para Sul, sobretudo se viesse durante a primeira década do século XXI, encontraria por aqui exemplares bastante interessantes dessas duas espécies de humanóides.
Elois, trabalhando, pagando impostos, devorados por insaciáveis Morlocks espalhados pelo Governo, administração pública, sindicatos, conselhos de administração...
Morlocks e Elois nunca faltaram por aí.
Carlos LouresJá leram ou ouviram falar na «Máquina do tempo», um romance cujo autor, Herbert George Wells, nasceu em 1866 em Bromley, Inglaterra, e morreu em 1946, em Londres. «The Time Machine», publicado em 1895, foi um dos seus primeiros romances e um dos seus maiores êxitos. Mas teve outros, como por exemplo «The War of the Worlds» (1898), a famosa «Guerra dos Mundos». Orson Welles, que a transformou em peça radiofónica, pôs em 1938, a América em pânico, pensando que os marcianos estavam a invadir a Terra. Ideia que o Mário-Henrique Leiria, o António José Forte e outros manos do Gelo aproveitaram para a «Operação Papagaio» de que o Fernando Correia da Silva e eu já aqui falámos. A história conta como «o viajante no tempo» inventa uma máquina que se move na quarta dimensão. E lá vai ele parar ao ano 802 701, a uma espécie de Eden, mas com um inconveniente - os Elois, uma raça de gente boa e vegetariana, serve de alimento aos malvados Morlocks, carnívoros o mais possível (que se escondem em subterrâneos).
H.G. Wells, se bem que jovem escritor estreante, era tudo menos inocente – a época vitoriana em que o livro é escrito era fértil em «elois», que trabalhavam literalmente como escravos a partir dos cinco anos de idade, para alimentar os «morlocks» que se pavoneavam por Londres e não só, porque a desenfreada exploração a que a Revolução Industrial deu lugar, foi o «caldo de civilização» em que Karl Marx, de colaboração com Engels, escreveu em 1848 o seu «Manifesto Comunista», tal era a densidade da injustiça social vivida na Europa. Mas Wells escusava de ter ido tão longe no tempo – andando pouco mais de um século para a frente, encontraria morlocks e elois, ali mesmo em Londres. Se quisesse deslocar-se um pouco para Sul, sobretudo se viesse durante a primeira década do século XXI, encontraria por aqui exemplares bastante interessantes dessas duas espécies de humanóides.
Mas ouçam esta descrição de uma ida ao futuro feita por quem fez essa viagem: «O Futuro é tão antigo como o Passado. E ao caminharmos para o Futuro é o Passado que conquistamos», disse António Maria Lisboa (1928-1953), o grande poeta surrealista que morreu com 25 anos. Sabendo eu como gostaria que fosse o Futuro, ignoro como irá ser. O Presente, salvo raras excepções, é mesquinho. Não me apetece falar destas coisas, da gente da política. Serão pessoas, mas não são personalidades e, muito menos, personagens. Falar deles é dar-lhes uma espessura que não têm nem merecem ter.
Não sei o que dizer mais sobre isto que estamos a viver. No Passado, que envolve algumas décadas vividas por mim, procurando bem, como quem anda no sótão das arrumações, lá vou encontrando factos, personalidades e personagens, ou seja, gente de que merece a pena falar. Por isso talvez viaje mais até ao passado, não por ser passadista, mas pela razão dada pelo António Maria Lisboa. Pondo-a do avesso, fica assim: – «o Passado é tão novo como o Futuro. E ao caminharmos para o Passado é o Futuro que conquistamos» – ou que, neste caso, compreendemos. De acordo? Não? Não faz mal – porque o mesmo poeta também dizia «que tudo é e não é alternadamente». O que, a ser verdade – e é - pode ser utilizado como saída de emergência para qualquer situação – TUDO É E NÃO É ALTERNADAMENTE! – já viram?.
Nos anos 60, os famosos anos 60, eu era muito jovem no princípio da década e, obviamente, menos jovem no seu final, mas ainda bastante novo. Em Portugal, e não só, mas em Portugal foi, de facto, uma década terrível, vínhamos do «terramoto Delgado» de 1958 e, logo em 1961, aconteceram tantas coisas que, para um país onde nos queixávamos que não acontecia nada, foi demasiado: o assalto ao Santa Maria, o início da Guerra Colonial, a invasão do Estado da Índia pela União Indiana, o assalto ao quartel de Beja no último dia do ano… E, depois nunca mais parou – sucessivas crises nas universidades, emigração clandestina, greves, o recrudescimento da guerra, que alastrou por três frentes, sucessivas vagas de prisões, porque com os reveses o regime tornava-se cada vez mais susceptível, temeroso e rancoroso.
Dito assim, isto ganha um ritmo épico, mas para quem estava mergulhado naquela realidade era sentido como um tormento, pois éramos obrigados a fazer a guerra e era uma guerra que muitos de nós sabiam ser suja, contra povos que queriam legitimamente ser livres, e éramos presos e torturados e vivíamos todas as vicissitudes duma situação mesquinha, cinzenta, que nada tinha de épica ou de elevada. Éramos vítimas de uma besta estúpida, de uma ditadura liderada por um velho tacanho e sem coração que actuava em nome de valores cediços, apodrecidos, com o cheiro enjoativo das sacristias velhas.
Apesar de tudo isto, os jovens daquela época encontravam espaço para a felicidade, para o amor, para a amizade, para a partilha fraterna do pouco que havia para partilhar. E sempre que podíamos viajávamos até ao Futuro, assim mesmo, com F maiúsculo. E como fazíamos isso? Reunindo-nos, com os cuidados que a situação exigia (e às vezes sem os tomar). Ouvíamos discos do Zeca, do Yves Montand, do Jacques Brel, do George Brassens, do Luís Cília, do Fanhais, o Jean Ferrat… Ouvíamos as gravações das Declarações de Havana, e havia um arrepio colectivo quando Fidel chegava ao fim da Segunda e dizia: «Porque esta gran humanidad ha dicho “basta” y há echado a andar. Y su marcha de gigantes, ya no se detendrá hasta conquistar la verdadera independencia, por la que ya han muerto más de una vez inútilmente. Ahora, en todo caso, los que mueran, morirán como los de Cuba, los de Playa Girón» – nesta altura Fidel era interrompido pela tempestade de aplausos de uma enorme multidão – «morirán por su única, irrenunciable independencia. Patria o Muerte! Venceremos!»
Já aqui descrevi, num texto a que chamei «Serões da Província», as reuniões sociais que se faziam nas casas dos antifascistas. Uma vez, em 1967, estávamos a ouvir a gravação em fita magnética de um apelo ao povo grego dito por Mikis Theodorakis, o cantor, compositor (autor da música de «Zorba») e político marxista que passara à clandestinidade quando do golpe militar de direita de 21 de Abril desse ano – um apelo ao seu povo. Alguns de nós tinham estudado grego no Complementar dos liceus ou na Faculdade. Mas mesmo os que haviam estudado o grego clássico, mal compreendiam uma ou outra palavra e depressa os que não compreendiam exigiram que cessasse a tentativa de tradução. A emoção que, de forma crescente, ia transparecendo da voz de Theodorakis, era tão forte que no fim da audição ficámos em silêncio e todos com lágrimas nos olhos. Porque no nosso coração havia certamente tradução para cada uma das palavras. Vivíamos sob uma ditadura e isso fazia-nos compreender a oratória de qualquer cidadão fugido à polícia política, á tortura e à morte, falasse ele que língua falasse. Theodorakis só podia estar a apelar a que os Gregos e as Gregas lutassem pela liberdade e pela democracia.
Por mero acaso, cerca de dez anos passados, fui encarregado de traduzir o «Diário de um Resistente», de Mikis Theodorakis (da edição francesa, que o meu grego apenas deu para ler as placas toponímicas de Atenas quando ali estive uns dias). E pude saber o que o famoso cantautor e político dissera e que naquela noite nos pusera a chorar. É um texto muito longo que começava por dizer que «O rei, oficiais traidores e magistrados perjuros, de colaboração com os imperialistas americanos, aboliram a democracia na Grécia.» E terminava. «No país onde a democracia nasceu, os tiranos estão votados à morte. Abaixo a ditadura monarco-fascista! Fora com o opressor estrangeiro! Abaixo o carrasco Collias! Viva o povo Grego! Viva a Grécia!». Tinham sido estes brados finais que nos tinham emocionado. E a nossa emocional tradução estava certa. Essas reuniões que iam fazendo pelas casas de diversos companheiros e companheiras, eram viagens ao futuro. Sonhávamos com a Liberdade e nunca ouvi alguém sonhar que ia ser ministro, ou deputado (embora alguns o tenham vindo a ser). Todos queríamos viver como cidadãos livres, num país livre. Era o único privilégio com que sonhávamos e era esse lugar que visitávamos quase todos os dias no Futuro – um país livre e democrático.
E cá estamos nós no futuro. Podendo, na realidade, dizer o que quisermos, associarmo-nos como entendermos, sindicalizarmo-nos ou não… Nesse plano o nosso sonho cumpriu-se. E a democracia? Não, aí o sonho superava a realidade. Temos um simulacro de democracia em que a nossa única participação consiste em votar. E, pelas razões que todos sobejamente conhecemos, temos o pesadelo da corrupção, da subordinação a centros de poder situados fora de Portugal, do desemprego, das arbitrariedades… O que sabemos. Não, não tenho saudades dos anos 60. Tenho saudades do Futuro com que sonhava nos anos 60, um Futuro que nada tem a ver com este presente.