Havia, com alguma frequência, uma voo militar entre Bissau e Lisboa, a fim de transportar os feridos e doentes mais graves que careciam de cuidados especiais. Estes voos levavam sempre um médico a acompanhar os pacientes. Esta missão redundava, por norma, numas férias de quinze dias a três semanas, na metrópole. Por isso eram sete cães a um osso. E os bafejados eram sempre os mesmos. Os sortudos que se encontravam em Bissau e os que conseguiam mais facilmente mexer os cordelinhos das influências. Logo que cheguei do mato, soube que iria haver um desses voos. Imediatamente fui falar com o major do Serviço de Saúde, o tal que fora a Bigene fazer a inspecção, e sem papas na língua atirei:
- Meu major, soube que vai haver um voo com doentes para Lisboa. Estive sempre no mato, mais de ano e meio. Aguardo neste momento o meu regresso a Portugal, faltando cerca de duas semanas. Não tenho, nesta altura, qualquer incumbência nem actividade. Por razões óbvias, penso que seria um acto de justiça nomearem-me para acompanhar este voo.
- Nem é tarde nem é cedo. É mesmo você quem vai.
O avião era um velho Skymaster, quadrimotor. Sem bancos ou cadeiras. Apenas dois bancos laterais, de couro, corridos, de uma ponta a outra do avião. Tínhamos pela frente uma viagem de catorze horas, com muitos doentes, alguns em macas. À entrada, umas gajas do movimento nacional feminino, todas sorridentes, ofereciam umas latas de leite e maços de cigarros todos furados do bicho. Lembro-me que ia quase teso e nem um tostão me entregaram para o que desse e viesse. Tinha uma farda toda esfarrapada e tive que pedir uns galões emprestados.
Já a noite ia alta quando o avião fez escala nas Canárias, no aeroporto militar espanhol. Depois de abastecido levantámos voo, e quando já estávamos a uma hora de Lisboa, o piloto chama-me e diz:
- Dr., não podemos aterrar em Lisboa por causa do nevoeiro. As hipóteses que temos são Madrid, Casablanca ou voltar para trás para as Canárias. O que é que diz?
- Boa pergunta, eu não percebo nada disto nem sou eu que mando nesta guerra, mas ir para Madrid ou Casablanca com este espectáculo é impensável.
Não sei as ordens que obtiveram ou se obtiveram algumas ordens, o que é certo é que o avião deu meia volta e voltou para as Canárias. Era já de madrugada quando aterrámos numa pista absolutamente deserta. Estava um frio de rachar, dentro e fora do avião. Os doentes tiritavam por todos os lados. Algum tempo depois vislumbra-se a chegada de um jeep e dele sai um rapaz da minha idade que se apresentou como António, o médico da base. Era traumatologista e deixou-me a impressão de que era muito bom tipo. A primeira coisa que me disse, com certo ar de lástima, quando viu a minha lastimável figura, foi a seguinte:”vocês ainda não acabaram com a merda dessa guerra?”
Faz hoje quarenta anos estava prestes a ser desencadeada a “ Operação MarVerde”, nome de código atribuído a uma operação militar planeada pelas Forças Armadas Portuguesas levada a cabo em 22 de Novembro de 1970. Em Portugal, o governo de Marcelo Caetano, prosseguindo a rota traçada por Salazar, e ao contrário do que dera a entender que faria, mantinha a Guerra Colonial nas três frentes africanas. Em Portugal, onde se acalentara a esperança numa abertura - falava-se numa «primavera marcelista» - o novo presidente do Conselho limitara-se a mudar o nome a algumas coisas – A PIDE passou a DGS, a União Nacionaltransformou-se naAcção Nacional Popular… cosmética, nada mais.
Os órgãos de comunicação, controlados e impedidos de contradizer os comunicados oficiais, davam-nos do conflito a imagem de algo sem importância – acção de grupos terroristas que, vindos do exterior, atacavam e fugiam. Nesta versão poucos acreditavam – se era uma coisa tão simples, por que durava há tanto tempo?
Claro que a verdade era diferente. Principalmente na Guiné, enfrentava-se tropa bem treinada e, em alguns casos, mais bem equipada do que a nossa que, inclusivamente, em algumas dos seus ataques fazia prisioneiros. Foi então que foi concebida a «Operação Mar Verde». O destino era Conakri, capital da República da Guiné, ex-colónia francesa, com três objectivos centrais – libertar os militares portugueses, destruir as lanchas do PAIGC, matar Sékou Touré,presidente da República.
A missão foi confiada ao comandante Alpoim Calvão e a um destacamento de fuzileiros especiais. Diga-se que a competência profissional do comandante e dos seus homens foi comprovada - à excepção da eliminação física de Sékou Touré, todos os objectivos foram alcançados – prisioneiros libertados, lanchas destruídas, a força aérea da Guiné-Conakri quase totalmente posta fora de combate. O palácio presidencial foi ocupado e Sékou Touré só escapou porque se ausentara do país. Neste pormenor, parece ter havido uma falha do serviço de informações. Sobre esta acção militar pouco falada fora do meio militar, há um livro de António Luís Marinhoque descreve os pormenores - Operação Mar Verde - um documento para a História (Lisboa, Temas e Debates, 2006).
Apesar deste revés, as forças do PAIGC continuaram a atacar e, nos últimos meses de guerra, as nossas forças já não se podiam movimentar, os fiat G-91 portugueses não conseguiam levantar voo, pois eram alvo imediato dos temíveis mísseis Strela. Em 1973, ano em que Amílcar Cabral foi assassinado em Conakri (por dissidentes do PAIGC), a independência foi unilateralmente proclamada em Madina do Boé, vindo a ser reconhecida pelo Governo Português após a Revolução de Abril.
O comandante Alpoim Calvão foi um dos homens de mão de Spínola e organizou ao Movimento Democrático de Libertação de Portugal, organização de extrema-direita que levou a cabo algumas operações terroristas. A ordem de operações da “Mar Verde” foi elaborada pelo comandante Calvão e terá sido supervisionada pelo governador militar da Guiné-Bissau, o general António de Spínola que mantinha uma política algo distanciada da linha oficial, demonstrando algum desejo de criar condições para uma solução política do conflito. Como profissional, chegara já à conclusão de que não existia solução militar. Por isso, ao mesmo tempo que desencadeava operações como a que se refere, terá mantido negociações secretas com Senghor, presidente do Senegal.
Em 1973 regressou a Portugal. Por sugestão do general Costa Gomes, em Janeiro de 1974, foi nomeado vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Pouco antes da Revolução de Abril, publicouPortugal e o Futuro, onde expunha as suas ideias para a solução política da questão colonial. Marcelo Caetano ter-se-á oposto à proibição da circulação do livro e este foi um dos rastilhos que conduziram ao 25 de Abril.
Vejamos estes dois vídeos que nois fornecem pormenores sobre a complexa operação «Mar Verde», sobre a qual amanhã se completam 40 anos.
O alferes Almeida foi meu companheiro de quarto em Bigene, no norte da Guiné, se é que podemos chamar quarto ao alpendre onde dormíamos. Cerca de oito anos mais novo do que eu, o Almeidinha fez-se meu amigo de verdade. Amigo desde o acampamento da Fonte da Telha, do quartel de Porto Brandão e da Amadora. Embarcámos para a Guiné no velho Uíge, empurrados pelo magnífico patriotismo de Salazar, entalados entre o belo gesto das senhoras do movimento nacional feminino e o malabarístico safanço dos filhos dos ricos e patriotas da situação. Embalados pelas ondas do mar quente da Mauritânia, e sossegados pelas ricas ementas flamejantes do cozinheiro de bordo, demos à costa da Guiné no dia 13 de Maio de 1966. O Almeida e eu pertencíamos à mesma companhia. Eu como médico e ele como atirador, comandante de pelotão. Nos primeiros tempos da nossa comissão na guerra da Guiné estivemos separados. Eu fui destacado para Canquelifá, perto da fronteira da Guiné-Conakry. Ele esteve de intervenção durante algum tempo. Quando a companhia se fixou em Bigene, já eu lá me encontrava. Um avião fora buscar-me a Canquelifá para vir prestar assistência à última companhia de farda branca que em breve regressaria à metrópole, sendo substituída por aquela em que estávamos integrados. De novo juntos, o alferes Almeida e eu, programámos o nosso futuro no sentido de transformar os dias quentes (em sentido térmico e bélico) e incertos que se anteviam, nos melhores dias da nossa vida. Outra coisa não era de esperar do seu espírito folgazão e irrequieto, da sua grande alma de vinte anos. E vivemos juntos acontecimentos fabulosos. Ao contrário de mim, ele era todo patriota, á sua maneira. Cascava nos colonos, a cuja família pertencia, e gramava bestialmente os pretos. Mas soberania era soberania, e por isso ali estava para a defender. Ele lia, na altura, Morreram pela pátria de Mikail Cholokow. Eu lia Os condenados da terra de Frantz Fanon, que ele dizia ser a minha bíblia de anticolonialista subversivo. Penso, no entanto, que poucas pessoas gostaram tanto de mim como aquele moço. Ajudou-me, quase sem querer, a conhecer as gentes e os costumes da Guiné, e contribuiu de forma sublime, ainda que um tanto inconsciente, para o maravilhoso entendimento do internacionalismo, do anti-racismo e da solidariedade entre os povos. Julgo que, se ele tivesse vivido até ao fim da comissão, deixaria de chamar turras aos guerrilheiros que o mataram. Foi num dia em que eu me sentia muito triste. Talvez pelo falecimento da Sónia na África do Sul, uma lindíssima amiguinha de vinte anos, que conheci em férias em Lisboa, e que me escrevia com muita ternura. O Almeida procurou animar-me, lembrando-me o chuveiro que havíamos improvisado a partir de um bidon e de um ralo de regador, e que borrifava sobre nós os mais belos minutos do dia. Desta vez era um tanque, que construímos com uns restos de cimento encontrados numa arrecadação, e que iria proporcionar-nos, apesar da sua estreiteza de três metros por um, algumas deliciosas banhocas. A inauguração estava marcada para esse dia, e o Almeida, atrevido, imprudente como sempre e um tanto irresponsável, já se tinha deslocado sozinho a Barro, a fim de arranjar uma galinha que servisse de manjar no festejo. Barro era uma pequena aldeia nativa a onze quilómetros de distância, onde a Companhia mantinha um pelotão. Toda a estradeca estava minada e as emboscadas eram constantes. Mas o que é certo é que a galinha já estava do lado de cá. A meio da madrugada o Almeida acordou-me: - já que não vens comigo fazer a patrulha, meu cobardesito de merda, fazes um bom xabéu com essa galinha para mereceres o mergulho no tanque. Eu respondi-lhe: - Tem mas é juizinho nessa bola, não te armes em herói, senão nem a galinha provas. – Cobarde, um cobardesito é o que tu és, retorquiu ele sorridente, com um aceno amigo que nunca mais haveria de fazer. Eram dez horas da manhã quando a nossa velha GMC irrompeu pela cerca de arame farpado, em correria demasiada para o seu velho e gasto motor, como se ela própria sentisse a tragédia que transportava no bojo: o corpo do alferes Almeida crivado de balas dos pés à cabeça. Puxei de um cigarro mas não consegui segurá-lo entre os dedos. E nunca tomei banho no tanque. A única recordação dele, que hoje ainda mantenho, é o livro que tinha na mesinha de cabeceira: Morreram pela pátria.
O Abibe era muito feio. Negro como um tição. A única coisa que no seu corpo branqueava eram os dentes, inseridos à distância da boca. Mas tinha um coração grande, muito maior que a feiura. Não o coração de carne que lhe batia no peito, mas o irmão gémeo, o coração dos sentimentos e dos afectos.
O Abibe pertencia à milícia e era nosso empregado, ajudando na cozinha e na limpeza. Fez-se por sua livre vontade meu impedido, afeiçoado e amigo. Limpava o quarto, fazia a cama, conseguia arranjar uns mangos e umas bananas e tratava de tudo o que eu lhe pedia.
A densidade de incidentes bélicos no pequeno território da Guiné era muito maior do que nas outras colónias. A terrível fama da sua guerra alastrou como fogo. Comparada à do Vietname. Ser destacado para a Guiné constituía uma condenação ao apodrecimento e ao risco de regressar encaixotado. Os aquartelamentos eram rodeados de arame farpado e troncos de palmeira, com abrigos subterrâneos, frequentemente flagelados. Eu próprio ajudei a cavar trincheiras, ligando os nossos quartos às casernas e a uma enfermaria subterrânea, onde guardava soros e medicamentos de urgência, indispensáveis em situações de ataque. Em tais condições de vida, era grande o valor de um companheiro e amigo como o Abibe Tal.
Mas não era só a guerra o mal que se temia. As doenças constituíam outro flagelo que a ninguém poupava. Nem ao médico. Por isso adoeci com paludismo. Mais do que uma vez. Para quem não sabe, contrair o paludismo ou malária é uma coisa terrível. A doença mais espalhada no mundo, uma das mais frequentes nos trópicos, e terrivelmente penosa nos acessos agudos. Mais de 250 milhões de pessoas afectadas em todo o planeta. De características clínicas particularmente graves nas regiões tropicais. O surto febril é indescritível. Arrepio súbito e violento, grandes picos de febre, mal-estar do outro mundo, astenia intensa, machadadas na cabeça, palpitações, contracções, sufocação, sede de toda a água, fenómenos sensoriais indefiníveis, corpo derretido em suores por dentro e por fora. O tremor generalizado mais parece uma terramoto com epicentro no peito. O vómito não mede distâncias.
Neste estado o Abibe me encontrou.
- ché dotô, tu tá memo lixado, mim ter que dar mezinha, mim ter que ser dotô de dotô!
- Meu caro Abibe, preciso que me descubras sem falta uma galinha, custe o que custar, não consigo comer nada, e uma canja sabia de mais.
- Mim fala no Seco, dotô manga de favor a Seco, dotô sempre trata filho de ele, mulher de ele, dotô sempre dá mezinha todo família, ele tem que arranja galinha.
Pouco tempo depois o Abibe entra no quarto com a cara do avesso. Os dentes pareciam mais salientes e uns laivos de espuma apontavam os cantos da boca. Os olhos faiscavam de raiva.
- dotô, aquele fideputa diz ca tem galinha, manga de ingrato, mim sabe que ele tem galinha, ele escunde galinha mas eu mato ele.
- Deixa lá Abibe, tudo se há-de arranjar.
A noite caíra, mansa e quente, noite da Guiné. O meu corpo sossegara, trégua das sezões e da acção dos remédios. Novas réplicas do terramoto seriam de esperar, mas o que contava era o momento. Estava eu ruminando a fraqueza quando entra o Abibe sorridente, com todos os dentes de fora, segurando entre as mãos um prato de canja fumegante.
- dotô aqui tem canja, toma ela.
- Onde encontraste a galinha?
- Munto fácil, dotô, mim espera noite e mim fodi Seco. Seco vai na reza, mim faz emboscada e fana dois galinha, pa hoje, manhã e outro dia.
O Abibe era solteiro e mais tarde ou mais cedo haveria de casar. Por isso precisava de quinhentos pesos e duas vacas, o preço da noiva. Eu disse que lhe daria tantos quinhentos pesos quantas as mulheres que ele comprasse, mas vacas é que não tinha. Quando me vim embora o Abibe continuava solteiro. Choramos os dois num abraço eterno de despedida onde cabia o mundo. Sei que ele faria feliz quem dele se achegasse.
Escreveu-me há uns anos, dizendo que tinha duas mulheres e oito filhos. Soube há pouco tempo que estava quase cego. Se fosse mais perto levava-lhe um prato de canja.
Não chovia, mas o céu ameaçava desfazer-se em água. Era plúmbeo, presumivelmente a oeste, e carregado de negro do lado oposto. Uma faixa mais clara nascia por cima de Irkutsk e desfibrava-se ao longo do rio Angorá. Mais parecia um quadro de Fiódor Vasiliev ou de Ivan Aivasovsky.
Como a vida tem tantas formas de circularidade, sentei-me num banco de jardim à beira do rio, e dei ordens à memória para me buscar aquele rapaz soviético que, há muitos anos, num ardente dia de sol, as nossas tropas aprisionaram no norte da Guiné. Era de Kiev, mas tinha nascido em Irkutsk, na Sibéria.
Técnico de máquinas automáticas, oferecera-se, como voluntário e internacionalista, para ajudar os guerrilheiros do PAIGC a combater as tropas colonialistas.
Na pequena sala onde funcionava a secretaria do nosso aquartelamento, estava o prisioneiro como que pregado a uma cadeira. Tinha na sua frente o capitão da nossa Companhia, o capitão da Companhia de intervenção que o capturou, dois ou três sargentos e outros tantos alferes, e eu. Os lábios do jovem soviético nascido em Irkutsk estavam gretados de sede e de sol. Um sorriso feito de água, terra, fogo e ar, iluminado por um sol negro de melancolia, denunciava um grande medo dos homens que tinha na sua frente.
O capitão foi buscar um copo de água e entornou-a lentamente a uma mão travessa da boca do rapaz. Os olhos quase saltaram das órbitas. Pedi ao capitão que me desse o copo, enchi-o de água e raiva e dei-o a beber ao prisioneiro. Valeu-me a firmeza com que o fiz e o facto de ser médico.
Se algum dia a minha vida pudesse ser música!…
Desconfiado, levou o copo à boca…
Ainda hoje eu não sei falar de tudo o que treme nas mãos de uma criança!
O céu arrependeu-se de chover. Seguimos para o lago Baikal, a maior reserva de água doce do mundo. Segundo os cálculos, daria para matar a sede à humanidade durante oitocentos anos. Quando senti nas mãos a água fria das margens lembrei-me de um copo de água lá nos confins da Guiné.
Eu não sou capaz de crescer para as palavras, mas dava tudo para cruzar os tempos que ainda são tempo, e mostrar ao mundo a dimensão que o homem é, e a pequenez que usa por força da fraqueza.
Temos um grande prazer em trazer aqui ao nosso Terreiro Narf e Manecas Costa, artistas unidos pelo idioma comum - Narf é um cotado cantor galego. Manecas Costa é um dos artistas mais conhecidos da Guiné-Bissau, um exímio cantor e executante na guitarra, um grande, grande artista. Um galego e um guineense cantando... em Moçambique, no Teatro Avenida do Maputo.Um quadro lusófono perfeito. Vamos ouvir com atenção - "Alô, irmão!":