Sempre que eu apanhava meia dúzia de avos, ali corria eu a ver o auto. Nesses teatros chinas, as representações duram dia e noite sem interrupção: há sujeitinho que ali come e ali dorme, e que torna a acordar para continuar vendo a peça e voltar a adormecer, e isto durante dias.
Lembro-me ainda de ouvir falar muito em ataques de piratas às ilhas próximas de Macau, e duma expedição .contra eles, em que meu Pai tomou parte também e vejo-o de regresso a casa, cheio de lodo e encharcado, seguido por 10 ou 12 piratas solidamente amarrados.
Enfim, em 1873 meu Pai fez as malas e embarcamos, - e então já com duas irmãzitas mais, - a galera «Viajante» com destino a Lisboa. Viagem de 6 meses, pelo cabo da Boa Esperança.
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Memórias
3 Volumes
Raul Brandão
Perspectivas & Realidades, s. d.
Artur de Melo, que conheço do Porto, diz num espanto, ainda transtornado: – Acabam de matar agora o rei! – O quê?! – Eu vi, ouvi os tiros, deitei a fugir...
Fecham-se à pressa os taipais das lojas. Uma mulher do povo exclama: – Mataram agora o rei. Vi os que o mataram. Eram três. Dois lá estão estendidos. Passou um agora por mim, a rasto, com a cabeça despedaçada!... Há palmas para o lado Figueira. Anoitece. Um esquadrão desemboca da Rua da Mouraria... Mais tarde, no comboio, um empregado do Jorge O´Neill confirma: – Vi do escritório um polícia correr atrás dum dos assassinos. A certa altura caiu-lhe o chapéu: era calvo. O polícia varou-o com um tiro.
E, pela narração do Melo, do Armando Navarro e de outros que assistiram, reconstituo assim a tragédia:
Só as circunstâncias extremamente difíceis vividas em Portugal durante cinquenta anos podem justificar a carência de estudos dedicados a tão importante período da vida nacional, a reduzida discussão pública do tema necessária para refutar conceitos, eliminar equívocos, desfazer sofismas e mentiras e contribuir para conhecer com nitidez os intuitos, as sucessivos manobras verificadas antes e durante o desenrolar dos acontecimentos, e o desfecho que teve o movimento militar iniciado na madrugada de 28 de Maio de 1926.
Na realidade, a história, a análise e a exposição dos factos, dos pormenores das operações, das sucessivas tentativas para desviar o «movimento» num ou noutro sentido, dos constantes ziguezagues políticos e compromissos dos diferentes sectores populacionais, estão em grande parte por fazer.
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O “28 de Maio”
II – Na Hora do Corporativismo
Arnaldo Madureira
Editorial Presença, 1982
No primeiro volume da presente obra – Na Génese do Estado Novo – fez-se a análise dos factos históricos decorridos desde a preparação e início das operações do 28 de Maio até ao isolamento e subsequente queda de Mendes Cabeçadas. Neste segundo volume, não se trata já de analisar passo a passo o curso dos acontecimentos, mas antes de estudar e alinhar as opções que se apresentaram ao País, todas elas apostando num projecto nacional dos sectores conservadores, expresso económica e socialmente no corporativismo.
O autor propõe-se determinar: o significado do afastamento de Mendes Cabeçadas: os objectivos reais de cada uma das facções em que a direita se desdobrou após a queda daquele; (…) o papel desempenhado pelas organizações republicanas e pelos representantes da classe operária.
Desfile de Gomes da Costa e suas tropas após a Revolução de 28 de Maio de 1926
Carlos Loures
Faz hoje 84 anos.
No dia 28 de Maio de 1926, a partir de Braga, desencadeava-se mais um movimento militar. «Mais um», talvez não seja uma definição correcta para o que aconteceu – este golpe não seria uma intentona vulgar como houvera dezenas desde 5 de Outubro de 1910. Este movimento, modificaria radicalmente o País e influenciaria o curso da sua história durante quase meio século.
A República agonizava, sufocava no vómito de mil e uma dissensões: greves, revoltas, assassínios como os da «Noite Sangrenta», múltiplas conspirações. Na Europa, Portugal era ironicamente designado como o «pequeno México». Até alguns republicanos convictos reconheciam a necessidade de pôr ordem no caos.
Presidia Bernardino Machado. De Braga, nessa madrugada saiu uma coluna militar comandada pelo general Gomes da Costa, herói das campanhas africanas e da I Guerra Mundial. As guarnições militares do Porto, de Coimbra, de Santarém, de Lisboa, de Évora, foram aderindo… Aquilo a que se chamaria a Revolução Nacional, triunfou sem quase um tiro ser disparado.
Dias depois, a 6 de Junho, Gomes da Costa desfilava triunfalmente em Lisboa, na Avenida da Liberdade à frente de quinze mil homens. O povo da capital, aplaudia-o freneticamente. A Revolução Nacional deu passagem à Ditadura Nacional. Os espíritos bem pensantes mantiveram a serenidade – tratava-se apenas de arrumar a casa. Mas depois, em 1933, a Ditadura Nacional, supostamente transitória, dava lugar ao Estado Novo referendado e aprovado pela maioria dos cidadãos eleitores. Um Estado Novo, corporativista, anti-parlamentar, católico, com alguma inspiração vinda da Itália fascista, dominado por um ditador mesquinho e tacanho que redesenhou o País à imagem da sua aldeia.
Uma longa noite começou nessa madrugada de 28 de Maio de 1926.