O regresso ao Rio de Janeiro é rápido, o trajecto é curto e os bens do casal são apenas restos esfarrapados da triste estadia em Niteroi. Não há jornalistas à espera do poeta mas ainda tem amigos que o aplaudem numa visita à Academia Brasileira de Letras, em Julho de 1955, recebido pelos académicos e pelo presidente Paulo de Medeyros, em sessão especial onde declama com a inconfundível classe do seu talento. Fazia praticamente um ano que a vida política sofrera o forte abalo do suicídio de Getúlio Vargas a quem sucede João Café Filho, impotente político para proceder à limpeza do «mar de lama do Catete», como dizia. Mas também António Botto não irá ter tempos fáceis, como eu sei, mas ele desconhece, que se encontra suspenso num ângulo da vida definitivo e dramático. Infelizmente jamais retornará à sua poesia da amargura da transitoriedade da beleza e do amor, duas coisas nele associadas. Mais do que a qualquer outro ter-lhe-á sido difícil suportar a carga dos anos e a decadência do corpo a quem rendera o culto da beleza. Entre outros dramas este não terá sido o menor no último quartel da vida.
João Café Filho
Tem-se escrito que na última fase do período brasileiro António Botto terá percorrido no Rio de Janeiro os caminhos da miséria a ponto de vender poemas seus, à porta dos botequins, a vinte cruzeiros para seu sustento e da mulher. Os dramas de um poeta dão sempre jeito a fim de ajudarem a construir o mito. Neste caso nada prova que Botto tenha sido um mártir, o próprio chega a desmentir e repudiar qualquer situação de indigência mesmo temporária. Beatriz Costa declara, vagamente, que «andou por lá mal» (revista “Marie Claire”, Lisboa 1993) e o jornalista Miranda Mendes afirma, a propósito, que «por ali andou aos tombos (“Um Poeta na Vida” – Diário de Notícias, Página Literária, Lisboa 23.03.1959). Impecável no seu casaco de linho modestíssimo, na camisa muito branca - sempre os mesmos, porque não tinha outros -, cheio de fome e a disfarçá-la com uma dignidade altiva e triste, recitava há anos no Rio de Janeiro, terra da sua aventura e desventura, alguns dos melhores versos que jamais se fizeram em língua portuguesa” (idem, idem). É óbvio o toque literário do texto de Miranda Mendes, aliás justificado pelo momento em que foi escrito (1959). No entanto, será bom lembrar, foi exactamente no ano de 1955 que António Botto fez uma nova edição do seu livro Fátima, Poema do Mundo, gravada com a chancela de D. Manuel Gonçalves Cerejeira num gesto de amizade que o Cardeal Patriarca de Lisboa já tivera para com O Livro das Crianças. Fátima foi um êxito, de modo algum revelador de qualidade literária. Quanto a mim, a pior obra de toda a bibliografia do poeta. No quadro da sua poesia representa um livro de oportunidade embora aliado ao seu sincero espírito religioso. António escreveu a primeira versão logo em 1917, ano das aparições, vinte folhas bem diferentes do trabalho publicado. Encontramos em 1945 uma outra versão com notas para a tipografia, mas só em 27 de Junho de 1946 obtém o imprimatur cardinalício, ano em que regista a primeira edição do poema em livro, com foto em preto e branco da imagem de Nossa Senhora de Fátima e a seguinte inscrição na folha de frontispício: «Primeira edição extraordinária de quarenta mil volumes numerada e assinada pelo autor a fim de solenizar a entrega de uma cópia da imagem de Nossa Senhora do Rosário às autoridades eclesiásticas do Rio de Janeiro por ocasião do 30º Congresso Eucarístico do Rio de Janeiro» (sic). No verso da página, além da assinatura do autor e número do exemplar, imprimiu-se a data de 13 de Maio de 1946, Lisboa, Portugal, o que não exclui a hipótese da edição ter sido realizada exclusivamente para o Brasil. Onze anos mais tarde, com nova capa, agora para o 36º Congresso Eucarístico de 1955, o autor junta o seu poema Cântico da Alma Brasileira, explicando: «Neste volume publica-se este poema inédito a pedido de milhares de pessoas que o ouviram recitado pelo seu autor, em programas realizados nas estações de Rádio Bandeirante, Cultura e Recorde de São Paulo». A publicação desta nova edição de Fátima, Poema do Mundo, naquele momento, leva-me a admitir que foram as circunstâncias e dificuldades a imporem um “desfuncionamento” que justifica a reedição de versos como estes: [pergunta Nossa Senhora aos pastorinhos] - «Carinhas abençoadas, / Na doçura de me ouvirem, / Que até parece que são feitas / Do mel saboroso que há no figo, / Compreendeis o que vos digo?». Ou ainda outro passo: «Pastorinho és meu amigo? / Dizes-me que sim, abanando / Afirmativamente, / Essa redondinha cabecinha, / E as faces ficam a corar / De envergonhadinho, não?». O tema, o momento e o prestígio do autor terão ajudado a vender os 40.000 exemplares da primeira edição e outros tantos da segunda, proporcionando certamente um razoável nível de direitos. A leitura deste livro torna-se penosa, constrangedora e triste tal é o malogro artístico e poético daquele que fora o autor de Canções. Chegamos ao fim aflitos e angustiados pelo rudimentar exercício de inferior qualidade a que fomos submetidos e que de certo modo vinha ao encontro das críticas negativas que ele já tivera à sua poesia nos tempos de Lisboa.
(continua)
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Escolhemos hoje mais um poema de António Botto, desta vez cantado por Teresa Silva Carvalho, "Choram meus olhos" . Mas não nos é possível incorporar aqui o vídeo, visto que este não está disponível. Mas usando o seguinte link
O Brasil atravessa um período conturbado resultante da ditadura de Getúlio Vargas (1853-1954), afastado do poder em 1945 por um golpe militar. O general Eurico Gaspar Dutra será eleito presidente nesse mesmo ano e elaborada nova constituição. A Grande Guerra terminara mas deixara feridas espalhadas por todo o lado e o Brasil não era excepção. A economia abre-se à importação de produtos e a inflação sobe imparável, as reservas de dólares e de libras são desvalorizadas e o desastre económico só é contido pelo aumento da exportação e do preço do café. Época pautada por frequentes perturbações sociais, características paralisações de trabalho, manifestações de rua, actividades sindicais que perturbam a ordem enfraquecendo politicamente o governo e conduzindo-o ao uso da força. O estado militar corta relações diplomáticas com a União Soviética (URSS) e ilegaliza o Partido Comunista Brasileiro prendendo e perseguindo muitos dos seus militantes. Em cinquenta a nação mergulha em eleições gerais e, por ironia da vontade popular, o antigo ditador Getúlio Vargas acaba por ser eleito Presidente da República por esmagadora maioria. Sol de pouca dura! Quatro anos após a oposição conservadora exige a renúncia e Getúlio, angustiado e incapaz de resistir às pressões políticas suicida-se no dia 24 de Agosto de 1954.
Monteiro Lobato era prestigiado escritor em 1947, ano em que começou a ser editada a colecção das suas obras completas num total de 13 volumes. Viveu como se deslizasse numa montanha russa em surpreendentes flexões do destino como editor, empresário, adido comercial do Brasil em Nova Iorque e até preso político e incomunicável, em 1941, na ditadura de Getúlio Vargas. Quando António Botto chega a São Paulo, Monteiro Lobato, que viria a falecer em 1948, está em condições de o apresentar aos altos representantes da finança paulista, escritores e alta sociedade, ajudando-o a entrar pela porta grande em recitais ao lado de Joracy Camargo e Procópio Ferreira e sessões de autógrafos em diversas salas. São Paulo se não lhe abriu os braços como o Rio de Janeiro também não os fechou.
O casal Botto começou por instalar-se no Hotel S. Bento, na Rua Rogério Badaró, nº 504, apartamento 2119 no 21º andar, onde a Companhia Óscar Rudge entregava as encomendas de resmas de papel feitas pelo Dr. António Botto Almada, recuperando assim a «veleidade de aristocrata» que João Medina refere (Morte e Transfiguração de Sidónio Pais, nota nº 99, pág. 164, Edições Cosmos, Lisboa, 1994) como «tendo chegado a pôr um Almada entre parêntesis, a seguir ao nome, nos cartões de visita». Por essa altura realiza conferências e representações de poemas seus na sala Camões do Centro Português, no Clube Portugália, na Sociedade Brasileira de Alimentação, na Boite Restaurante São Paulo e no Museu de Arte com afluência de público. Tinha trabalho regular na Rádio Bandeirantes com o programa Portugal Canta, transmitido aos domingos, pelo que recebia 1000 cruzeiros por emissão. Durante todo o período de São Paulo estabeleceu contratos com a Rádio Tupi, Rádio Difusora de São Paulo e Rádio Cultura onde manteve Almas e Povos, três dias por semana, que lhe rendia 500 cruzeiros por audição, pagos adiantadamente; aparecia assiduamente em jornais com artigos, crítica, contos, crónicas e poemas. Não sendo rico arrecadava o suficiente para uma vida medianamente confortável como se deduz da sua relação com a Imprensa Gráfica da Revista dos Tribunais a quem pediu orçamento, encomendou papel e realizou pagamentos para a impressão do livro Poesia Nova que por razões desconhecidas não se fez. Por essa altura manda brochar «com todo o cuidado e capa dobrada à francesa», oitocentos livros a um cruzeiro cada. No início do ano de 1949 troca o Hotel S. Bento pela Pensão Internacional, na Rua Anhangabu, no que parece uma despromoção residencial. Porém, logo nesse ano o proprietário move-lhe um processo na 5ª Vara Criminal por estar sem pagar até Abril. Segundo os autos o hóspede apresentou-se como pessoa de posses, arquitecto, amigo de artistas e políticos. Tudo grandes nomes, mas não tinha um cruzeiro pelo que comeu e bebeu sem pagar. António Botto contestou sem conseguir impressionar o juiz que lhe deu 15 dias de prisão, ao que tudo indica remíveis a dinheiro evitando assim que o poeta caísse no xelindró. Desta conturbada encruzilhada levanta asa para ir poisar no Hotel Ipiranga, na Rua 24 de Maio, nº 275, onde ocupará o apartamento 31 até praticamente ao dia do seu regresso ao Rio de Janeiro. Deixa soltas as pontas da sua estadia visto que o proprietário, Eugénio Bissachi, regista em carta timbrada que o casal deixou um rádio, um amplificador de discos, gravuras e utensílios no valor de 7.500 cruzeiros que ficam por conta dos pagamentos em atraso.
São Paulo, anos 50. Foi sempre assim, um teso caloteiro, cravando uns e outros e contribuindo para que se criassem a seu respeito as mais mirabolantes histórias e situações caricatas de amigos que o evitavam para não serem cravados. Sem necessidade, diga-se, pelo menos em São Paulo onde teve trabalho regular, espectáculos, sessões de autógrafos, actividades recompensadas para uma situação financeira certamente não invejável mas pelo menos razoável. Que raio te passa pela cabeça, António, como perguntaria o teu amigo Erico Braga. A vida nem era madrasta nessa altura embora Carlos Drumond de Andrade escrevesse mais tarde, no jornal Correio da Manhã (02. Fevereiro. 1956), referindo-se à estadia em São Paulo «onde lhe aconteceram coisas desagradáveis». Suponho eu, mais por culpa tua que dos outros.
Apertado em tais deambulações financeiras os direitos de autor, importante fonte da receita do poeta, tomam papel fundamental e urgente nos contactos que desenvolve com a Sociedade de Autores em Lisboa. Os mapas de pagamentos que lhe são enviados, com o valor de direitos pagos confirmam o bom estatuto artístico de António Botto e uma conta-corrente em que ele, por adiantamentos efectuados, em vez de credor era devedor da bonita soma de trinta e três contos, mais dez de uma letra em carteira, saque de João Villaret endossado a Erico Braga. É óbvio que apesar das colaborações e recitais com venda de bilhetes as coisas começam a complicar-se para o casal. Os jornais continuam dedicando-lhe espaço com louvores e artigos à sua obra, assinados por prestigiados nomes das letras brasileiras e na Galeria Domus tem lugar uma exposição dos seus desenhos (Botto desenhava bem e isso ainda lhe vai valer como veremos). De modo algum ele está sendo socialmente depreciado até porque histórias de dívidas a hotéis diluem-se no tempo, tomando a versão mais conveniente para a sua imagem. A questão é outra: a retoma de um certo êxito inicial é como a derradeira ilusão do moribundo incapaz de vislumbrar o anúncio da tragédia. Inadaptado ao gigantismo de São Paulo, por comparação com o maneirismo de Lisboa, o tempo de permanência torna-se curto de quatro anos para o autor de Cartas que Me Foram Devolvidas.
A cidade aprisiona o pensamento na descomunal malha de edifícios. Torna-se sôfrega, esmagadora, irrespirável. Onde está o Tejo das pequenas embarcações no vaivém do rio? E a noite lisboeta feita de um céu de pérolas? A agitação suave da Baixa escutada num murmúrio carinhoso? São Paulo passa num instante: é «uma terra disparatada, sem harmonia e sem beleza! Uma estrumeira de vícios e onde o Diabo prefere passar a noite a mijar» (BNL-espólio de A.B). São Paulo não tem céu, farrapos só. Pedaços aqui e além recordando que as estrelas existem. (continua) _____________
«Meu amor na despedida» é um fado, com letra de António Botto, cantado pelo jovem fadista Pedro Moutinho. Atenção:
Temos numerosos leitores no Brasil. Julgamos que são brasileiros e emigrantes portugueses. Por outro lado, a colónia brasileira em Portugal alcança dimensões consideráveis. Esta série de textos abordará, sem sequência cronológica, um período da História do Brasil iniciado há pouco mais de 70 anos e, felizmente encerrado em 1985, com o regresso do regime democrático. Navegará ao sabor da maré, da memória, das efemérides – divagações de um português. Peço perdão aos brasileiros por alguma imprecisão histórica que cometa e agradeço que me corrijam quanto a esses erros factuais. E também que manifestem acordo ou divergência. O Estrolabio é uma tribuna livre e democrática.
Por que motivo dei este nome à série – “Aquarela do Brasil” (nós dizemos aguarela)? Vamos começar por ouvir «Aquarela do Brasil», a canção de Ary Barroso( 1903-1963), cujo retrato podemos ver acima. Depois explicarei a razão de ser do título. Primeiro, ouçamos a bela interpretação de Gal Costa.
Gostaram? A Gal Costa é na verdade uma cantora ímpar. Mas passemos então à prometida explicação - Como se sabe, o Hino do Brasil tem música de Francisco Manuel da Silva (1795 - 1865) e letra de Joaquim Osório Duque Estrada (1870 - 1927). Foi decretado como Hino Nacional em 21 de Agosto de 1922, durante a presidência de Epitácio Pessoa – faz hoje precisamente 89 anos. É um hino muito bonito, com ressonâncias operáticas, verdianas. A letra é talvez menos inspirada, mas é aquilo que as letras dos hinos nacionais costumam ser – exaltantes, apelando ao amor pela Pátria, invocando o heroísmo dos próceres.
Diz-se que numa noite chuvosa do Rio, Ary estava na sala de sua casa conversando com a mulher e o cunhado, quando se sentou ao piano e compôs de um jacto a música e a letra de «Aquarela do Brasil». Disse depois, que pretendera libertar o samba das tragédias da vida e das paixões sensuais que dominavam as letras da canção nacional. Talvez sem o pretender, ajudou a branquear um regime iníquo, brutal e corrupto. Para muitos «Aguarela do Brasil» é o como que um outro hino do país. Numa sondagem organizada pela Academia Brasileira de Letras, a «Aquarela» ficou em primeiro lugar. A letra, também de Ary Barroso, canta um Brasil idílico, uma terra de sonho, onde o samba é rei. Será que, em 1939, o Brasil era assim tão agradável para ser pintado numa aguarela de cores tão vivas? Talvez o fosse para os ricos e para os turistas. E para os brasileiros?
Em 1939, quando eclodiu a II Guerra Mundial, governava o Brasil, Getúlio Vargas. Chegara ao poder em 1930 mercê de um golpe militar, pondo termo à “República Velha” e depondo o presidente Washington Luís. As instituições democráticas foram desmanteladas – dissolução do Congresso e das assembleias legislativas. Em 1932, eclodiu em São Paulo uma revolução constitucionalista, derrotada pelas forças governamentais. Em 1934, a ditadura consolidou-se com a aprovação de uma nova Constituição. Getúlio foi eleito para um mandato de quatro anos. Em 1935, novas revoltas e movimentos insurrecionais organizados pelo Partido Comunista Brasileiro, foram reprimidos pelo Governo. Em 1937, pretextando a existência de uma conspiração comunista para tomar o poder, em 10 de Novembro, Getúlio desencadeou um golpe de Estado,. Era o Estado Novo (nome igual ao do regime corporativo de Salazar e, segundo tudo o indica, nele inspirado). Em 1 de Janeiro de 1938, Getúlio promulgou uma nova Constituição Até 1945, o país seria governado de forma autoritária, num regime parafascista. Em «Memórias do Cárcere», Graciliano Ramos (1892-1953) descreveu , em páginas de grande beleza e rigor, o que acontecia aos presos políticos – torturas, sevícias, quando não mesmo a morte. O povo, não falando numa minoria de privilegiados, continuava a viver numa pobreza lancinante, alimentado por discursos demagógicos de recorte justicialista. Foi neste quadro de miséria, dor e repressão que Ary Barroso (escreveu a sua «Aquarela do Brasil», o retrato falso de um país triturado pela repressão getulista. Foi, no entanto, um grande êxito. Na imaginação dos que viviam num mundo em guerra, a existência de um paraíso, era reconfortante.
O filme baseado no livro «1984» de George Orwell foi realizado em 1985, por Terry Gilliam, chamou-se «Brazil» e, como tema recorrente, soa a «Aquarela do Brasil». Já aqui enunciei o conceito de distopia na ficção literária e, particularmente, em «1984», de George Orwell Num mundo disfuncional, como é o que Orwell criou na sua obra, não haveria tema mais adequado para a banda sonora – uma realidade cruel e um retrato colorido, belo e falso dessa realidade. Foi exactamente assim que funcionou a música de Ary Barroso no Brasil de 1939. Um país onde imperava o terror de um governo fascista e a miséria endémica coberta pelo manto diáfano de inomináveis assimetrias sociais, aparecia transmutado em paraíso, naqueles anos em que o horror da guerra tornou apelativo o bilhete postal colorido que Ary Barroso compôs numa noite em que a chuva flagelava o Rio de Janeiro.
Para terminar, por hoje, ouçamos a versão interpretada por Frank Sinatra.