Segunda-feira, 31 de Janeiro de 2011

Dia de enganos - Adão Cruz

coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

Eu li...este poema de Adão Cruz

 

  

 

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

Adão Cruz  Dia de enganos

 

Uma gaivota beijando a espuma branca das águas fundas em bailado grandi mestri culminando as chaminés do cabo do mundo.

 

O barco ao longe só estático no horizonte como eu aqui de olhos fitos nas rochas.

 

Gaivotas bailando Rossini mascagni massenet sem ponte nem horizonte verdi wagner bizet sobre a espuma da tarde sem dia do dia sem ponte sem horizonte para lá das rochas negras e nuas.

 

Marcia trionfale dunas de espuma branca abraçando as rochas do meu deserto tão perto do mar imenso tocando as nuvens por dentro de mim.

 

Alguém me leva nas asas da gaivota por dentro de mim em doce intermezo de rios de sol e mar sem fim.

 

Alguém me passeia por dentro de ti cavalcate delle valchirie a vertigem avança em turbilhão até planar bailando sobre o coração cravado no sol poente vermelho e quente do sangue que verti.

 

Bruscamente o prelúdio voando dentro de mim a alma que resta em meditazioni pelo espaço imenso tocando aqui e ali as penas das asas que perdi.

 

Vesti la giuba viajante da barcarola com ar triunfante va pensiero seguro de quem se apoia nas pedras nuas da orla do mar esquecendo o mar que navega infinito mistério.

publicado por Augusta Clara às 14:00
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Domingo, 23 de Janeiro de 2011

O Ponto de Vista das Gaivotas - Ana Teresa Pereira

coordenação de Augusta Clara de Matos

 

 

 

Quem Conta Um Conto...de Cinema

 

 

Antes de lerem este conto da escritora madeirense de prosa encantatória, deliciem-se com estes sons:

 

http://nataliajuskiewicz.com/

 

 

 

Ana Teresa Pereira  O Ponto de Vista das Gaivotas

 

 

Segundo Orson Welles, «o que conta é a poesia».

 

Lembro-me dessa frase a propósito de um filme pouco conhecido de Alfred Hitchcock: Nightmare de 1947.

 

Na filmografia do autor, o filme segue-se a Notorious e antecede The Paradine Case. Foi a única vez que ele di­rigiu Humphrey Bogart (no mesmo ano em que este pro­tagonizou Dead Reckoning, The Two Mrs Carrolls e Dark Passage).

 

Ao que parece, Hitchcock pensou primeiro em James Stewart. Mas, como ele próprio reconheceu, «James Stewart nunca faria o papel de assassino». Quanto a Ingrid Bergman não houve qualquer dúvida — Nightmare é um prolongamento da magia nocturna de Notorious...

 

O filme baseia-se num conto de Daphne du Maurier (Rebecca, The Birds). O argumento foi entregue a Ben Hecht, que escrevera o de Spellbound e o de Notorious, o que explica as referências psicanalíticas — o tema do du­plo, a atmosfera uterina (é como se estivéssemos debaixo de água o tempo todo).

 

No plano inicial há uma igreja e uma pequena multidão que esconde parcialmente os noivos que acabaram de sair. Destaca-se a figura de Alfred Hitchcock com uma máqui­na fotográfica encostada ao rosto.

 

O plano seguinte mostra-nos uma mão segurando a fotografia. O rosto sorridente de Bogart, a expressão melancólica de Ingrid Bergman com flores brancas no cabelo. A câmara recua um pouco e vemos a mulher que segura a foto. Nesse momento uma mão pousa no seu ombro e ela volta-se soltando um pequeno grito.

 

Estamos numa sala funda e apercebemo-nos vagamente do som do mar. Bogart diz que é tarde, que devem ir dormir. Ingrid murmura «Yes, it's very late...» Não há qualquer menção à fotografia ou ao medo visível no rosto dela.

 

E então vemos a casa do exterior. Está situada sobre os rochedos, mesmo junto ao mar. Tem uma estranha semelhança com a igreja que víramos no início (há também uma torre de pedra...). Ouvimos as ondas, o vento, os gritos das gaivotas — a música de Bernard Herrmann e os diálogos são uma pequena parte da banda sonora (a história é visual, uma sucessão de imagens, uma experiência interior, quase abstracta...). Há duas ou três luzes acesas. Apagam-se uma a uma. Depois acende-se uma luz na torre.

 

Sentimos que a protagonista (nunca saberemos o seu nome...) tem medo daquele lugar, como uma criança que acorda num quarto desconhecido. A atmosfera é inquietante — aproxima-se uma tempestade...

 

Quando vemos a casa há sempre nevoeiro (nevoeiro que existe  mesmo dentro da torre) e temos a impressão de estar a olhar para uma velha gravura (o que faz sentido porque o realizador utilizou uma maqueta em todas as cenas exteriores).

 

Há outra mulher na história — a governanta, a bruxa má presente em tantos filmes de Hitchcock. O que é es­tranho é que neste ele escolheu uma actriz pouco conhecida que se parece vagamente com Ingrid Bergman, de forma que quando as vemos de longe é fácil confundir uma com a outra.

 

Quando a protagonista diz ao marido que quer visitar a torre ele recusa. O único acesso é pelos rochedos, que são demasiado perigosos naquela altura do ano. Além disso, «there are only bats and ghosts...»

 

Como no conto do Barba Azul, a jovem espera que ele se ausente para explorar o local proibido.

 

É impossível esquecer a imagem de Ingrid Bergman nos rochedos, o vestido molhado, os cabelos revoltos pe­lo vento, tentando encontrar o caminho para o outro lado da casa. A espuma branca das ondas, os gritos das gaivo­tas. Mas quando chega à torre tudo parece imobilizar-se. Abre a porta e sobe lentamente as escadas (nas suas en­trevistas a Truffaut, Hitchcock diz que o filme era somen­te a história de alguém que sobe e desce umas escadas).

 

No quarto da torre há gravuras, livros, uma velha mesa de trabalho. Um homem encostado à janela fuma um ci­garro.

 

A jovem diz o nome do marido.

 

Quando o homem se volta, o rosto é o que conhecemos. E ao mesmo tempo é outro...

 

Bogart diz que é o irmão do dono da casa, mas acres­centa que é natural que ela os confunda porque «I’m wearing his clothes».

 

A partir desse momento é como se a personagem de In­grid Bergman também se desdobrasse. Em casa tem um ar adormecido, move-se como um autómato, responde com monossílabos às palavras do marido e da governanta.

 

Mas depois vemo-la, mais bonita do que nunca, cor­rendo pelas rochas (a ameaça de tempestade parece estar suspensa e há até um pouco de sol; o mar está calmo), apanhando flores brancas que crescem entre os rochedos e que irá dispor num velho jarrão no quarto da torre. Os longos beijos, as conversas sem importância, Bogart len­do em voz alta versos de Shakespeare

 

«For thy sweet love remember'd such wealth brings,

That then I scorn to change my state with kings»

 

ou páginas estranhas que se supõe terem sido escritas por ele.

 

Há uma noite em que a tempestade a impede de voltar Enrosca-se nos braços dele como numa concha, com medo da chuva e de algo de indizível que está do outro lado da parede.

 

Regressa ao amanhecer, uma figura leve, vestida de branco, com um casaco preto pelos ombros e pétalas nos cabelos (tudo é circular, voltamos à igreja, às flores no cabelo do dia do casamento...).

 

A luz da biblioteca está acesa. Um homem de roupão encontra-se sentado junto à lareira.

 

Durante alguns minutos falam de coisas absurdas, como se nada tivesse acontecido, depois ela diz que vai deixá-lo. Bogart sorri com indiferença: «You will never leave this place...» Com um gesto brusco puxa-a para si e beija-a na boca. Depois as suas mãos rodeiam-lhe o pescoço.

 

A tempestade aumenta lá fora, uma gaivota roça o vidro da janela...

 

O corpo da jovem caído no tapete junto à lareira. O homem passa as mãos pelo rosto, como se voltasse de muito longe.

 

Então damo-nos conta de que houve uma testemunha da cena. A governanta está encostada à porta com um ramo de flores brancas nos braços (e por instantes temos a impressão de que é Ingrid Bergman que se ergueu «de en­tre os mortos»). Ela entra na biblioteca e põe as flores nu­ma jarra.

 

Bogart passa pela governanta sem a ver. A câmara segue-o num longo travelling pelos corredores sombrios (é a primeira vez que vislumbramos as entranhas da casa).

 

Ele parece caminhar durante muito tempo até que abre a porta de uma divisão escura. Acende a luz e, afastando uma velha tapeçaria (que representa quatro figuras sem rosto), abre outra porta.

 

Então percebemos que está na torre.

 

E o filme termina com o vulto cansado de um homem que sobe a escada de caracol. Depois, a casa vista do ex­terior. As ondas. Um grande plano das flores brancas que crescem nos rochedos.

 

Truffaut tentou estabelecer um paralelo entre Nightmare e Rebecca. Alguns elementos são comuns — a casa iso­lada, a governanta e acima de tudo a atmosfera irreal, de conto de fadas. Se Rebecca é uma versão de Cinderela, Nightmare tem muito a ver com o Barba Azul e com a Be­la e o Monstro.

 

Hitchcock acrescentou: «Sim, é uma velha história, um conto de fadas, talvez... É acima de tudo, literalmente, um pesadelo.»

 

Mas um pesadelo de quem?

 

Porque nem sabemos claramente quantas personagens tem a história (seres sem alma que não se distinguem uns dos outros...). Se o final parece indicar que não existem dois irmãos mas sim um único homem (nunca o sabere­mos de facto), a parecença da governanta com Ingrid Bergman quase sugere que há uma única mulher...

 

Qual dos dois sonha?

 

E, se quatro personagens podem ser duas, talvez duas possam ser uma só.

 

Talvez só exista um sonhador na casa sobre os roche­dos, talvez só haja uma presença nos quartos abandona­dos, na torre de pedra batida pelas ondas. Qual deles...

 

Ou talvez não exista ninguém.

 

Um sonho sem sonhador.

 

Quase o vazio.

 

Uma simples maqueta.

 

O mar.

 

Gaivotas.

 

E as flores brancas que crescem entre os rochedos.

 

(in Contos de Ana Teresa Pereira, Relógio d’Água)

 

 

 


 


publicado por Augusta Clara às 14:00
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Quinta-feira, 28 de Outubro de 2010

Dia de Lisboa - O s golfinhos e as gaivotas da Augusta Clara e os Madredeus - moram todos em Lisboa.


Augusta Clara de Matos (texto e foto)

Da minha janela não vejo o Tejo. A pior coisa que pode acontecer a uma alfacinha. Não tem água que chegue é só meio alface. Já mo tinham dito mas por outras razões.

Com as alfaces é muito complicado. Têm as folhas tenras, precisam de água. Duras é que elas não são e com a secura não se dão.


Por isso, quando saio, é para lá que me viro. Vou descendo, descendo, até chegar à beira da água e apetecia-me ficar lá a morar.

Sou a Menina do Mar da Sophia e, se encontrasse o rapazinho da casa branca, havíamos de mergulhar os dois à procura dos golfinhos do Mar da Palha que eu via quando era do tamanho dele e atravessava o Tejo no cacilheiro.

Eram nossos amigos, não nos tinham medo. Nós debruçados na amurada com os pés no ar e eles nadavam, nadavam com a espuma e connosco, à frente, ao lado do barco. Felizes, fazíamos uma algazarra. E eles respondiam.

Nem nos apetecia largar o barco. Mas, na volta, lá estavam eles para nos levar a casa.

Para onde foram os meus golfinhos do Mar da Palha? Quem os maltratou para já não nos quererem acompanhar na travessia?

Agora, sempre que alguma emoção forte me toca, há um pólo magnético que me convoca a ir vivê-la para a beira-rio. Seja um sentimento feliz, um desgosto ou, apenas estar comigo própria, com um bom livro ou só a olhar o movimento do Estuário.

No meio desta cidade turbulenta onde está a ser cansativo viver, é lá que encontro paz.

Nunca mais vi os golfinhos. Agora tenho as gaivotas. E o Tejo, sempre o meu Tejo.

“E mesmo que esteja frio e os barcos fiquem no rio, parados sem navegar”…eu gosto de lá estar.


Madredeus – Moro em Lisboa

publicado por Carlos Loures às 14:00
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