Quarta-feira, 19 de Maio de 2010

Catarina Eufémia

Carlos Loures



Faz hoje 56 anos, no dia 19 de Maio de 1954, no Monte do Olival, Baleizão, concelho de Beja, uma mulher foi assassinada a tiro por um tenente da Guarda Nacional Republicana. Nascera em Baleizão 26 anos antes, em 13 de Fevereiro de 1928 , e chamava-se Catarina Efigénia Sabino Eufémia. Tinha três filhos, um deles com oito meses e que vinha ao seu colo quando foi morta. Participava numa greve de ceifeiras assalariadas que protestavam contra a jorna paga pelo proprietário da seara. Era a altura de ceifar o trigo e Catarina encabeçava o grupo de catorze camponesas que pretendiam obter um aumento diário de dois escudos. Um protesto daquela natureza era coisa nunca vista, um atentado à "ordem natural das coisas", e o feitor foi a Beja pedir a intervenção da guarda.

Quando a força policial chegou, houve uma troca de palavras com o tenente Carrajola. Este perguntou o que pretendiam e Catarina segundo se diz, terá respondido que só queriam pão e trabalho. Carrajola deu-lhe uma violenta bofetada que a derrubou. Catarina disse-lhe «Já agora, mate-me» e a pistola-metralhadora do tenente disparou três balas que destruiram vértebras da ceifeira, causando-lhe a morte.

Segundo o relatório da autópsia, Catarina "foi atingida por três balas, à queima-roupa, pelas costas, actuando da esquerda para a direita, de baixo para cima e ligeiramente de trás para a frente, com o cano da arma encostada ao corpo da vítima. O agressor deveria estar atrás e à esquerda em relação à vítima que era de estatura mediana (1,65 m), de cor branco-marmórea, de cabelos pretos, olhos castanhos, de sistema muscular pouco desenvolvido".

No Diário do Alentejo de 21 de Maio de 1954, a notícia rezava assim: «Anteontem, numa questão entre trabalhadores rurais, ocorrida numa propriedade agrícola de Baleizão, e para que foi pedida a intervenção da G.N.R. de Beja, foi atingida a tiro Catarina Efigénia Sabino, de 28 anos, casada com António do Carmo, cantoneiro em Quintos. Conduzida ao hospital de Beja, chegou ali já cadáver. A morte foi provocada pela pistola-metralhadora do Sr. Tenente Carrajola, que comandava a força da G.N.R. No momento em que foi atingida, a infeliz mulher tinha ao colo um filhinho que ficou ferido, em resultado da queda. A Catarina Efigénia tinha mais dois filhos de tenra idade e estava em vésperas de ser novamente mãe. O funeral realizou-se ontem, saindo do hospital de Beja para o cemitério de Quintos. Centenas de pessoas vieram de Baleizão para acompanhar o préstito, verificando-se impressionantes cenas de dor e de desespero. Segundo nos consta, o oficial causador da tragédia foi mandado apresentar em Évora.»

A esta notícia acrescente-se que o tenente Carrajola foi transferido para Aljustrel, mas nunca veio a ser sequer julgado em tribunal. Morreu em 1964.

Sobre o que se passou, pouco mais se pode dizer. Catarina era analfabeta, mas, segundo parece tinha uma inteligência viva e era uma mulher corajosa. Há quem diga que o tenente se descontrolou com as réplicas desassombradas da rapariga às suas ameaças; há mesmo quem diga que a arma (uma pistola metralhadora FBP) se disparou acidentalmente… O que é possível, mas pouco provável. Há o que se ontou, a lenda e a realidade. E, para lá das lendas e do que se conta, há uma realidade insofismável: Catarina foi assassinada. Assassinada por pedir para si e para as companheiras mais dois escudos diários. José Dias Coelho, o artista plástico, representou assim o assassínio de Catarina.


Quando criou esta bela gravura não podia prever que, anos depois, no dia 19 de Dezembro de 1961, na Rua da Creche, que hoje tem o seu nome, junto ao Largo do Calvário, no bairro lisboeta de Alcântara, também ele seria assassinado a tiro por uma brigada da PIDE. Voltando a Catarina, a sua trágica morte, transformou-a num símbolo da resistência à ditadura. O PCP apropriou-se da sua imagem. Abusivamente, pois, segundo se julga ela nunca tenha militado no Partido. Mas os artistas e intelectuais portugueses compreenderam que o exemplo de Catarina transcendia a dimensão partidária. Os artistas plásticos, como José Dias Coelho (ele, sim, militante do PCP), os poetas, os músicos, dedicaram-lhe composições, muitas delas concebidas antes da Revolução de 1974. António Vicente Campinas, Carlos Aboim Inglez, Eduardo Valente da Fonseca, Francisco Miguel Duarte, José Carlos Ary dos Santos, Maria Luísa Vilão Palma, Sophia de Mello Breyner Andresen, dedicaram-lhe poemas. No meu livro “A voz e o Sangue”, editado em 1968, incluí também uma extensa “Ode a Catarina Eufémia”. O livro foi proibido quando ia já na 2ª edição e fui preso (não só pelo poema sobre Catarina, mas também). Não podendo transcrever aqui todos os poemas sobre Catarina, reproduzo aquele que, sem deixar de ser acutilante, na minha opinião, possui uma maior qualidade poética, o de Sophia de Mello Breyner:

Catarina Eufémia

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente
Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método ubíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos
Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro
no instante em que morreste
E a busca da justiça continua

O poema de Vicente Campinas "Cantar Alentejano" foi musicado por José Afonso no álbum "Cantigas de Maio" editado no Natal de 1971. José Mário Branco, que colaborou com Zeca, descreve como decorreu a gravação num estúdio situado numa quinta dos arredores de Paris. Conta que, a certa altura, disse «Vamos a isto Zeca" "- Não tens nada para ir metendo ?”, respondeu. Não estava ainda pronto; a alma do Zeca, apercebi-me depois estava toda no Alentejo, nos olhos de Catarina Eufémia. Como tantas vezes lhe acontecia, andava pelo estúdio, de cá para lá, como um jovem leão na sua jaula. Até que, já ao fim da tarde, disse: `Vou lá fora ver as vacas» (...) «Desapareceu durante uma ou duas horas. Quando voltou já era quase noite: `Vamos gravar a Catarina. Zeca em metade do estúdio, só e às escuras cantou. Uma só vez. E é essa que está no disco. Nós, privilegiados espectadores, estávamos na central técnica todos a chorar, incluindo o técnico francês. `Acham melhor que cante isto outra vez ?” `Não, Zeca, não. Está muito bem assim».


As romagens à campa de Catarina no cemitério de Baleizão (para onde os seus restos mortais foram trasladados vinte anos depois) são concorridas e frequentes. Estive lá, num grande grupo em que se incluía o coronel Otelo Saraiva de Carvalho, há cerca de trinta anos.

Como nota curiosa, lembremos que muitos milhares de portuguesas, especialmente entre os trinta e os cinquenta anos, se chamam Catarina. Discreta homenagem de seus pais ou padrinhos à modesta ceifeira assassinada naquele dia de Maio de 1954.
publicado por Carlos Loures às 12:00
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