Segunda-feira, 20 de Dezembro de 2010
Texto de Fernando Moreira de Sá eFotografia de José Magalhães
Existem dias de magia nos quais o Douro acorda envolvido em algodão doce como se fosse obra de um certo mago.
Tudo começa na Foz onde o Douro encontra a morte nas águas geladas do Atlântico.
Um misterioso manto branco acinzentado invade, pé ante pé, a superfície da água do rio desde a Foz até aos limites da velhinha Ponte D. Maria.
Ao longo do despertar do dia avança como se possuindo longos e gordos braços pelas diferentes ruas e ruelas da Alfândega, de Massarelos, de Miragaia, da Ribeira. Não sei se não será um verdadeiro espreguiçar.
Qual manto de Noiva a rastejar por debaixo dos tabuleiros das diferentes pontes que invade. Mesmo se a Ponte da Arrábida aparente desaparecer mas é mais por confusão e fusão de cores. Na Ponte D. Luís parece sustentar ambos os tabuleiros dando uma ilusão de suspensão destes no ar, como flutuando à mercê dos seus humores.
Quem olha desde a Serra do Pilar fica hipnotizado. E tentado. Uma tentação diabólica de se atirar para cima dela como se aquela nuvem enganadora fosse uma gigante almofada que nos leve numa viagem sobre a cidade.
Ao olhar para a nossa direita deparamos com a velha senhora, a inolvidável Ponte D. Maria. Até ele, sempre tão atrevido, se curva perante a sua beleza respeitável e pede licença para passar. Sim, o nevoeiro mágico enviado, quiçá, por Merlin, antes tão indiferente às restantes obras de arte passando por debaixo delas sem pestanejar abranda junto à D. Maria e respeitosamente a cumprimenta e lhe solicita autorização. Por vezes a demora é tal que logo o Rei Sol o impele e o reduz a uma injusta insignificância.
No meu Porto há dias assim.
Domingo, 14 de Novembro de 2010
Texto de Manuela Degerine eFotografia de José MagalhãesEstou a escrever de memória. A fotografia de José Magalhães ficou na minha caixa do correio – em casa. E neste momento encontro-me numa estação do caminho de ferro: vou a Versailles. Vou a Versailles porque vi a fotografia de José Magalhães. Não tentei resistir: vou a Versailles.
Até há cerca de um ano, o parque de Versailles era, não propriamente o meu quintal, mas algo de muito familiar. Logo que inventava três horas livres, pegava na bicicleta, apanhava o comboio e, vinte minutos mais tarde, saía na estação de Versailles. Rue du maréchal Foch, boulevard de la Reine... chegava ao parque. Atravessava, sem parar, a Petite Venise, uma Veneza ínfima, na verdade, ponto de encontro dos turistas, por ter parques de estacionamento, um restaurante, vários quiosques, aluguer de barcos, bicicletas e Segway... Um espaço onde cheirava a crepes e café. Eu buscava outros odores. No outono e inverno, os cogumelos, a terra húmida, as folhas caídas, no fim da primavera, as flores de tília, uma ou outra vez, a relva recém-cortada e, em todas as estações, a bosta de cavalo: o parque é vigiado por polícia montada e alguns trabalhos florestais são realizados com cavalos.
Prosseguia à beira do Canal na direcção da Ferradura (Fer à Cheval). Lembro-me de, há dois ou três anos, a água do Canal ter gelado e haver, neste sítio, uma perseguição de cisnes: um namoro com patinagem aparatosa por cima do gelo. Fer à Cheval tem, no cimo das escadas, o Trianon. Eu continuava na direcção da Estrela (Étoile), desdenhava a pradaria à direita, torcia o pescoço à esquerda para avistar, muito ao fundo, quase minúsculo, no outro extremo do Canal, o palácio. Subira até chegar à Étoile – há pequenas encostas – e descia depois na direcção da Ménagerie, o espaço onde viviam os animais exóticos... e que agora serve de residência ao Presidente da República. Antes de chegar à Ménagerie, os ciclistas encontram duas opções: os que se poupam cortam pela beira do Canal, enquanto os mais desportistas sobem uma encosta, passam por detrás de um dos braços do Canal e, do outro lado, descem – vertiginosa e ludicamente – a simétrica encosta. Eu, cela va sans dire, pedalava encosta acima. Como a Ménagerie se tornou uma das residências, digamos, de campo, do Presidente de República, encontram-se nesta zona, distribuídos pelos caminhos e alamedas que a rodeiam, vários carros de polícia, cujos ocupantes matam o tédio mirando... as ciclistas; ao fim de algum tempo, eu já os conhecia, cumprimentava-os ao pedalar. E, claro, lançava-me encosta abaixo, pelo lado direito, prevenindo-me de algum preguiçoso que, depois de cortar pela beira do Canal, se atravessasse à minha frente. Não queria travar mas chegar o mais longe possível antes da primeira pedalada, uma distância muito variável, consoante o vento, favorável, contrário, lateral, forte, fraco... Seguia na direcção do Lago de Apolo, passava à frente dele, muito devagar, de pescoço torcido à direita, para admirar o palácio, seus lagos, estátuas, arbustos e turistas. (Há muitos anos, durante uma formação em Versailles, na hora do almoço, enquanto os colegas se fechavam numa pizaria, caminhei por ali, vendo um grupo de crianças a brincar dentro do lago, completamente gelado, enquanto caíam pesados farrapos de neve.) No Inverno as estátuas são embaladas numa tela esverdeada que as protege das intempéries. E as torna não menos belas... Dali à Petite Venise, o meu ponto de partida, é um instante. Completava assim a primeira volta: que não durara menos de quarenta e cinco minutos. Geralmente percorria mais duas vezes o perímetro do Canal. No entanto, nas épocas em que o terreno se encontrava mais enxuto, não olvidemos que Versailles foi construído num pântano, substituía uma das voltas pela excursão através do parque, que tem rebanhos de ovelhas, prados com vacas e cavalos, campos de milho, bosques, alamedas conduzindo à Horta do Rei ou à Aldeia da Rainha... E caminhos como este.
Estou a escrever de memória, não tenho a certeza se a fotografia mostra árvores de folha caduca. (Lembro-me da hera subindo pelos troncos.) Creio todavia que há muitos ramos coloridos e outros já sem folhas. As cores dominantes são o verde e o ruivo com, aqui e além, pequenas manchas douradas. O ouro é da luz ou das folhas?... De ambas, decerto... (Espero não deformar a imagem.)
Em Portugal quase todos os bosques são constituídos por pinheiros e eucaliptos, tornando-se portanto, com a erva e os fetos, mais verdes no inverno do que no verão; pode contudo ser de um dos caminhos que percorri este ano através do Minho. No outono, em Versailles, também nos podemos – quase – perder através de túneis de ramos e folhas... Como este. No parque há faias, freixos, tílias, plátanos, aveleiras, carvalhos, castanheiros e numerosas outras variedades de folha verde na primavera e no verão, colorida de maneira patética e luminosa no outono e, no inverno, ainda colorida, embora de maneira subtil: à beira de todo o Canal, as tílias, podadas, expõem à luz uma fechada vermelha constituída pelos rebendos das futuras folhas. Neste tipo de floresta as minhas estações preferidas são o outono e o inverno.
Inúmeras vezes prolonguei o passeio à beira do Canal até ao momento em que, com o pôr do sol, o real e o imaginário se confundem. O lusco-fusco... Mas não mostrará esta fotografia um nascer do sol?... A vida citadina raras vezes nos proporciona a contemplação da alvorada. Claro que, sobretudo no Inverno, nos levantamos todos muito antes – porém raro assistimos ao espectáculo. Devo o nascer do sol, quantitativamente, a um espaço de tortura – o último liceu onde dei aulas. Várias vezes cada ano, juntas as necessárias condições, hora e estado do tempo, no instante em que atravessava o parque de estacionamento, muito comprido, vi, lá ao fundo, o vermelho jorrar através do céu. Momento de euforia antes do horror. Costumava dizer a outros condenados, único comum reconforto, este liceu tem três coisas boas, os colegas, o nascer do sol e... o Carnaval. Mas isto já é outra conversa... (Para além de ser passado.) E cheguei à estação de Versailles.
Sexta-feira, 12 de Novembro de 2010
Texto de António Mão de Ferro eFotografia de José Magalhães
Muitos idosos vivem extraordinários dramas. Muitos não têm casa vivem com os filhos e sentem-se como estranhos, como se estivessem a mais, vivem amargurada solidão, sem ninguém que lhes dê apoio, nem afeto.
A dispersão que se verifica cada vez mais nos meios urbanos, acentua as dificuldades para um acompanhamento do idoso, dentro do seu núcleo familiar. Por isso é importante que se criem condições para que ele se sinta útil e possa participar na comunidade, transmitindo a sua experiência, sendo para isso necessário encontrar metodologias que envolvam a participação de idosos, crianças e jovens desenvolvendo assim a solidariedade intergeracional
Quinta-feira, 11 de Novembro de 2010
Poema de Carlos Mesquita e
Fotografia de José Magalhães
Águas que voam sobre pedrasQue bem fica perderes no porto… tuas penas. Seca as lágrimas, (poeta) Mais penas virão depois de morto
Apesar de tudo agora vivesespumando raiva no leito forteLouva o vale relvado onde paristea força a glória e a semente
Muros incertos enfileirados Em bichas de pedras cavalgadasRumo à ponte velha em pedaços
Augustas árvores desfolhadasNuvens sem graça e céu sombrioCobrem de musgo antigas fragasPostal de inverno, névoa e frioEmbaciando o louco olhar Que as margens deitam sobre o rio
Quarta-feira, 10 de Novembro de 2010
Texto de Rui de Oliveira e
Fotografia de José Magalhães
Espelho (mesmo assim nada claro) do curso da política em Portugal ? Um trajecto, à direita, infelizmente mais largo, com abundantes escolhos, cuja saída se não vê, apenas se vislumbrando um muro ao fundo. À esquerda, um caudal mais vivo, é certo, mas ainda mais obstruido, sem escoamento útil. Grandes obras parecem ser necessárias para alargar o fluxo e galgar as barreiras visíveis. Como a foto quase não tem cor é difícil saber se predomina o verde da esperança ou o cinzento da melancolia. Certo é que não há o vermelho da indignação.
Segunda-feira, 8 de Novembro de 2010
Poema de Andreia Dias eFotografia de José MagalhãesDesafio, frio, fio…O que tão vazio parece, Tão cheio se transforma,Quando o humano mereceE a alma pede reforma!Fio, frio, desafio…Será amanhecer?Dá-me um arrepioSó de ver, só de ver…Mas quero corrupio, Porque gosto de viver!Frio, desafio, fio…Será entardecer?Calmaria urbana!Não deixa de ser Natureza,Esta, … é humana!Desafio, frio, fio…
Domingo, 7 de Novembro de 2010
Texto de Paulo Rato e Fotografia de José MagalhãesHá quem olhe o mar, de passagem.
Olha. Vê?
A onda rebenta, uma entre o – quase – infinito número das que sucessivas incansáveis chegam.
Como estas, outonais, força suspensa em brandura alva.
Quase crianças as outras com que no Verão brincamos ainda quando o crepúsculo se avizinha, cálido.
Nunca a placidez deste passo quando a tempestade as agiganta e a dúvida se insinua. Onde chegará tal fúria, tal altura?
Mas há quem ofereça a face às ondas e franco lhe há-de ser o olhar.
Tenso o corpo, entre desejo e espera.
A roda que nos encara em toda a sua raiada circunferência constrói a indefinição – da pausa ou do impulso.
A roda está ali e fala-nos de um limite - físico, branco, turbulento. Nada nos diz de outros limites.
Ela, a que ao horizonte oferece a face, sim.
Está ali o Mar. De crepúsculo e Outono?
Seja.
E as duas raparigas que passeiam e passam, plácidas.
E a que pára, olha e vê, interroga, sonha.
Vê a beleza de cada onda, irrepetível. A luz do poente, irrepetível. O reflexo em cor dessa luz - na areia, no cabelo, na roupa – irrepetível.
Interroga a fugacidade do momento, o ritmo das ondas, a humidade da praia, as pegadas na areia – a presença e a razão das coisas.
Sonha a partida ou a passagem – o Além do Aqui.
Há quem olhe e veja, interrogue, sonhe.
Este crepúsculo, esta praia, este mar?
Todos os crepúsculos, praias, mares.
Tudo o que existe para que Ela olhe e veja, interrogue, sonhe.
Ela, aqui, é a essência da Humanidade.
Sábado, 6 de Novembro de 2010
Poema de Paulo Melo Lopes eFotografia de José MagalhãesNunca quis morrer num sábado ao sol. Digo: asas de vento (a memória da tua voz: encontramo-nos na foz, na rocha escondida); ea paz das palavras, deixa que te conte: sossegaacalma amorna abraça abranda. Digo: hávelocidades mais absolutas talvez queas do movimento interno das asas: asasdentro no corpo como bichos roendoa pele, roendo o sangue, berrando àsaída. Digo: não morrerei num sábado ao sol.E a certeza interna dos prazos menores davida esconde-se atrás da pedra dura rija fria: digo: soubesse eu das asas do ventocarinhoso sobre a pele sobre a pele sabendo da pele.Um mar passa longo, e dentro das vagas a memória desmaia. Digo: há portas talvez mais velozes pelo movimento interno das asas para o céu; e o movimento é este: ~~~~~~.
Sexta-feira, 5 de Novembro de 2010
Poema de Carlos Durão eFotografia de José Magalhães
Contemplo, de longe,
no escuro, sem ver,
com olhos, dormidos,
para comprender.
Espírito amigo,
permite-me estar
contigo, um instante,
por cima do mar.
Tu és como eu,
caminhas num sulco,
à beira do meu,
e buscas o mesmo:
Ensejo de amar.
Desejo-te sorte
no teu caminhar,
ao fim estaremos
juntinhos... na morte.
Às 22:30 de hoje, começaremos a publicar a segunda série de Fotopoemas - fotografias de José Magalhães e poemas ou textos, nelas inspirados, da autoria de colaboradores do Estrolabio. Nos próximos dias e até à conclusão desta segunda série teremos, sempre às 22:30, uma bela fotografia e um poema ou texto que a ilustram.
Terça-feira, 26 de Outubro de 2010
Poema de Carlos Loures eFotografia de José MagalhãesOs poetas criam fantasmase não realidades (disse Platão).
É preciso que o poeta crie realidadescom os seus fantasmas (digo eu).
Hoje
entre um café, um cigarro e um entardecer sereno
entro na oficina onde verso a verso
fabrico os meus poemas de combate.
Hoje
procuro palavras que não sejam já palavras,
mas anátemas,
sílabas que já não sejam sílabas,
mas guerreiros couraçados, implacáveis,
ao assalto desta tessitura infame
que se sobre nós se fecha, que se nos abate
como uma montanha sobre o peito.
Corsários,
impiedosos assassinos, desmontando
virgem por virgem, dólar por dólar,
este cenário abjecto que nos encerra e avilta.
Porque a poesia-palavra já foi toda escrita
pelos milhares de bons poetas que vieram antes,
gostaria hoje de escrever uma poesia espingarda
e gostaria de poder dizer ao meu povo:
- Estou contigo povo!
- Toma o meu poema e faz dele um arado;
toma os meus verso e transforma-os em pão
e em esperança.
Toma as minhas palavras, faz com elas uma bomba*
e arremessa-as à máscara de trevas que te ensombra.
..........................................
Anoiteceu
e eu regresso a casa.
E sou apenas um pobre homem
com papéis debaixo do braço
(mas com bandeiras de raiva e indignação
sangrando o coração).
(in A Voz e o Sangue - 2ª edição, 1968)* Nas duas edições, este verso termina com a palavra «pomba», embora eu tenha escrito «bomba». O dono da tipografia não deixou pôr a palavra
bomba. Era um excelente homem e foi o único acto de censura que exerceu. Inútil, pois o livro foi apreendido, eu fui preso e a tipografia devassada de alto a baixo por uma brigada da PIDE.
._______________Terminamos aqui a primeira série de "Fotopoemas". Esperamos, muito em breve, dar início à segunda série.______________
Segunda-feira, 25 de Outubro de 2010
Texto de Pedro Godinho eFotografia de José Magalhães
I
Pedras.
Pedras cinza e encantadas, que ladeiam caminhos e abrem alas que percorro, atento, espada alerta, porque podem esconder a emboscada ou surpresa, para a qual um Cavaleiro, como ambiciono ser, tem de estar preparado.
Pedras, algumas, quese transformam em temidos adversários, que se erguem à minha passagem, com que cruzo o aço e ultrapasso feito herói.
Pedras duras e brutas, que os homens empilham e formam casas ou, melhor ainda, castelos, como o que o meu olhar alcança no horizonte e a minha coragem quer conquistar.
Pedras que formam muralhas e ameias, e do alto da torre, espada erguida, lanço másculo grito – Viva a Liberdade – com que saúdo a libertação dos prisioneiros salvos do malvado senhor que acabo de derrotar.
Pedras dos jogos de infância.
II
Pedras.
Pedras negras e gastas, abandonadas e sem utilidade, sem riqueza nem rendimento.
Pedras que de nada me servem, que nem vender as consigo e por elas ninguém consigo interessar.
Pedras em ruína, ganhas em testamento, má fortuna a minha que mas deixaram em vez de terreno urbanizável e transaccionável.
Pedras que nem sequer posso derrubar, classificadas que foram em património não sei de quê, e substituir por moderno condomínio, esse sim do qual podia desfrutar.
Pedras dum raio.
III
Pedras.
Pedras sépia e fartas, que guardo em foto encastrada, que me acompanha faz anos em todas as viagens e residências.
Pedras que me ligam à terra onde nasci, à infância que me foi fazendo homem, terra que abandonei em busca do ouro dos tempos modernos.
Pedras do castelo que me fez Cavaleiro, do terreno em que batalhei imaginárias guerras contra as forças do mal e encarnei, com glória, o bem e a energia vital.
Pedras minhas, quanto eu não dava para rever e andarilhar aquelas pedras, cinza, encantadas, negras, brutas, pedras belas. As minhas pedras.
Pedras da memória.
Sábado, 23 de Outubro de 2010
Texto e poema de João Machado e Raul BrandãoFotografia de José MagalhãesEsta fotografia do José Magalhães (terá sido tirada no Douro? Já para além da barra?) prende a atenção e faz sonhar. Ocorre pensar no mar, mas no mar alto. Os barcos estão amarrados, mas o homem que se vê parece preparar-se para sair para a faina. Pus-me a contemplar e lembrei-me do Raul Brandão:
Luz e Cor(De Os Pescadores, de Raul Brandão)O mar às vezes parece um véu diáfano, outras pó verde. Às vezes é dum azul transparente, outras cobalto. Ou não tem consistência e é céu, ou é confusão e cólera. De manhã desvanece-se, de tarde sonha. E há dias de nevoeiro em que ele é extraordinário, quando a névoa espessa pouco a pouco se adelgaça e surge atrás da última cortina vaporosa, todo verde, dum verde que apetece respirar. Diferentes verdes bóiam na água, esbranquiçados, transparentes, escuros, quase negros, misturados com restos de onda que se desfaz e redemoinha até longe. E ainda outros azulados, com a cor das podridões. Tudo isto graduado e dependendo do céu, da hora e das marés. Há momentos em que me julgo metido dentro de uma esmeralda, e, depois, numa jóia esplêndida, dum azul único que se incendeia. Mas a luz morre, e a luz agonizando exala-se como um perfume. É uma grande flor que desfalece. O doirado não é simplesmente doirado, nem o verde simplesmente verde: possuem um alma delicada e extática.
Penso que este trecho do Raul Brandão nos põe a ver o mar. Permito-me, a seguir, e a propósito da contemplação do mar, dedicar ao pescador (e claro, ao José Magalhães), uns pobres versos:Pescador que vais ao mar
Não te esqueças do teu lugar
Aqui, bem seguro, junto ao cais
Longe da agitação para onde vais
O mar é transparente e azul
Quanto mais te chegas ao sul
As ondas sobem e vais sonhar
Com ninfas que te vão abordar
Na tua rede já pesa o peixe
Em terra já há quem se queixe
E diz que o pescador faz falta
Antes que venha a maré alta.
Sexta-feira, 22 de Outubro de 2010
Poema de Ethel Feldman eFotografia de José MagalhãesMuda o tempo a forma
Areia pedra
suave dura
Descansa a gaivota
Desenha um poema
o tempo segue caminho
Cinza é a pedra que dorme na areia
molhada seca
sem rosto
poema
silencioso
Quarta-feira, 20 de Outubro de 2010
Texto de Carla Romualdo efotografia de José MagalhãesImaginemo-la assim, por instantes libertada do peso granítico, dissolvidos o quartzo, o feldspato e a mica numa névoa redentora; imaginemo-la suspensa numa elipse improvável, como se pairasse sobre o horizonte rosáceo. E aí a temos, renascida: no instante de paz que sobrevém ao ruído.