Texto enviado pela Ethel Feldman
Desmercadorizar é um imperativo incontornável na busca de uma sociedade melhor. Sobrepostas às crises financeira, económica e social que acompanham o capitalismo desde o seu início, as crises ecológica, energética e alimentar vieram conferir um grau de convicção maior a algumas constatações que até agora não tinham merecido a atenção do cidadão comum. Eis algumas dessas constatações.
Primeiro, conceber o desenvolvimento como crescimento infinito assente na apropriação intensa da natureza é uma conceção que nos conduz ao desastre. A natureza está a dar múltiplos sinais de que os seus ciclos de regeneração vital têm vindo a ser violados muito para além do que é sustentável. A natureza aguenta bem o uso por parte dos humanos mas não o abuso. O planeta não é inesgotável. O estilo de vida nos países desenvolvidos é energívoro e submete as energias não renováveis a uma pressão insustentável.
Segundo, a redução do bem-estar ao bem-estar material, baseado no consumo de bens disponíveis no mercado, deixa de lado muitas dimensões da vida (a espiritualidade, o cuidado, a solidariedade, os valores éticos) essenciais ao florescimento humano. Tornam-se necessários outros indicadores de bem-estar.
Soa hoje menos absurda ou exótica a iniciativa de um pequeno país budista entalado nos Himalaias, Butão, que, em 1972, decidiu criar um índice de Felicidade Interna Bruta (por analogia com Produto Interno Bruto) para medir o desenvolvimento humano com base nos valores da sua cultura.
Terceiro, como qualquer outro fenómeno histórico, se o capitalismo teve um início, certamente terá um fim. Aliás, a crise ecológica está a mudar os termos dos desafios que enfrentamos: se o problema não for o de saber se o capitalismo sobreviverá, é certamente o de saber se sobreviveremos ao capitalismo.
Quarto, o capitalismo, por mais dominante, não conseguiu nunca erradicar totalmente outras lógicas de relações económicas que não passam nem pela acumulação infinita de riqueza nem pelo lucro a qualquer preço; essas lógicas (algumas existiam antes do capitalismo e sobreviveram, outras surgiram com o capitalismo e para lhe resistir) contêm um repertório de inovação social e económica que pode ser precioso num contexto em que se aprofundam as crises social, ecológica, alimentar e energética.
Refira-se, a título de exemplo, o conceito de "viver bem", Sumak Kawsay em quéchua, que os indígenas do Equador lograram transformar em imperativo constitucional, ao mesmo que atribuíram à natureza (Pachamama, a terra mãe) a titularidade de direitos próprios dela e não dos humanos.
Desmercadorizar significa impedir que a economia de mercado estenda o seu âmbito a tal ponto que transforme a sociedade no seu todo numa sociedade de mercado, numa sociedade onde tudo se compra e tudo se vende, inclusive os valores éticos e as opções políticas.
O imperativo de desmercadorizar envolve a promoção do mais amplo conjunto de iniciativas, muitas delas já testadas pelo tempo e pela capacidade de criar bem-estar para os que nelas participam. Com algumas adaptações, as propostas pela desfinanceirização da Europa estão hoje a ser avançadas a nível mundial.
Constituem um dos núcleos centrais do objetivo de desmercadorizar a vida pessoal, social, política, cultural.
Com o mesmo objetivo, muitas outras propostas e iniciativas têm vindo a ser apresentadas. Fazem parte da consciência antecipatória do mundo e vão esperando a hora da vontade política para as levar à prática. Entre muitíssimas outras, eis algumas.
- Promover formas de economia social tais como cooperativas, economia solidária, sistemas de entreajuda e de troca de tempo e de trabalho
- Submeter ao controlo público (não necessariamente estatal) democrático (não burocrático) a exploração e gestão de recursos e de serviços essenciais ou estratégicos
- Desmercadorizar a natureza na medida do possível - de que é bom exemplo o pacto internacional da água, há algum tempo em discussão - promovendo uma nova relação entre seres humanos e natureza assente na ideia de que os primeiros são parte da segunda (não existem à parte dela) e que por isso deverão respeitar os ciclos vitais de regeneração da natureza, sob pena de suicídio coletivo
- Definir uma nova geração de direitos fundamentais: os direitos da natureza, os direitos humanos à água, à terra, à biodiversidade e a consequente consagração de novos bens comuns insuscetíveis de serem privatizados
- Interditar a especulação financeira sobre a terra e os produtos alimentares a fim de evitar a concentração de terra (está em curso uma contrarreforma agrária) e a subida artificial dos preços dos alimentos
- Transformar a soberania alimentar em eixo de políticas agrárias para que os países deixem de ser, na medida do possível, dependentes da importação de alimentos
- Regular estritamente os agrocombustiveis pelo impacto que têm na segurança alimentar e na soberania alimentar. O impacto destes projectos na agricultura e na vida dos camponeses não é difícil de imaginar
- Aumentar a vida média dos produtos manufaturados. Um carro ou uma lâmpada podem durar muito mais tempo sem acréscimo de custos
-Tributar de forma agravada alguns produtos agrícolas que viajam mais de 1000 km entre o produtor e o consumidor, criando com a arrecadação um fundo para apoiar o desenvolvimento local dos países menos desenvolvidos
- Incluir a diminuição do tempo de trabalho entre as políticas de promoção de emprego
- Proibir o patenteamento de saberes tradicionais e reduzir drasticamente a vigência de direitos de propriedade intelectual na área dos produtos farmacêuticos e agrícolas
- Aproveitar ao máximo as potencialidades democráticas da revolução digital para promover uma cultura livre que recompense coletivamente a criatividade de artistas e investigadores, generalizando a inovadora experiência do movimento do Open Source Software, e da Wikipedia.
Estas são algumas imagens da consciência antecipatória do mundo.
Dir-se-á que são utópicas ou eivadas de romantismo. Sem dúvida.
Mas devemos ter em conta algumas cautelas ao estigmatizar a utopia.
Muitas destas propostas, quando detalhadas tecnicamente, dispõem de medidas de transição e são susceptíveis de aplicações parciais.
Acresce que uma ideia inovadora é sempre utópica antes de se transformar em realidade. Finalmente, porque muitos dos nossos sonhos foram reduzidos ao que existe e o que existe é muitas vezes um pesadelo, ser utópico é a maneira mais consistente de ser realista no início do século XXI.
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O livro Portugal - Ensaio contra a autoflagelação, com 154 páginas, divide-se em sete capítulos. Desde o primeiro, com "breves precisões conceituais sobre as crises e suas soluções", até ao último, com o título "Outro mundo é possível" (palavra de ordem do Forum Social Mundial, de que Boaventura de Sousa Santos é um principais dirigentes ou teorizadores), o autor analisa a situação atual, seus problemas e desafios, e faz propostas. O trecho que publicamos é o final desse último capítulo, sobre o que considera ser, criando um novo termo, o terceiro "imperativo" - depois de "democratizar" e "descolonizar" - para "sair da crise com dignidade e esperança". Boaventura carateriza a autoflagelação como "a má consciência da passividade", considerando não ser "fácil superá-la num contexto em que a passividade, quando não é querida, é imposta".(Paulo Borges)
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