Sábado, 5 de Março de 2011
"a partir de Uma Breve História do Século XX por Geoffrey Blainey"
Os US eram uma plataforma segura como mais nenhuma outra. Cercados pelo Atlântico e Pacífico que o mantinham suficientemente afastado de más companhias, tinha ao seu lado o Canadá, com quem mantinha e mantem relações amistosas , o México, com picardias, aqui e ali, e Cuba uma pequena ilha sem poder económico ou militar.
Em Cuba, o sistema era democrático desde que mantivesse no poder Fulgêncio Baptista que se tornou Presidente, enchendo suficientemente os bolsos para, passados sete anos, rumar à Florida para gozar a reforma. Isto com quarenta anos. Regressou a Cuba em 1952, tornou-se um ditador e aumentou novamente as suas contas bancárias.
Fidel era um dos cinco filhos ílegitemos de um imigrante espanhol dono de uma quinta que produzia cana de açucar. Retirou-se para o México após ter estudado num internato e ter tirado Direito, empenhou-se num estágio político que o devolveu a casa com um mini exército que, a coberto da segurança das montanhas, atacou as forças do ditador.
No dia de Ano Novo de 1959 Fidel derrubou-o. Dezenas de milhares de cubanos fugiram para a Florida.
Fidel nestes primeiros tempos era mais nacionalista que comunista, baniu a exploração colonial dos US que se tinha seguido à Espanhola, nacionalizou bancos, refinarias de açucar e propriedades de americanos. Expulsou a Máfia que controlava o jogo e a prostituição. Em contrapartida os US retiraram a preferência comercial ao açucar cubano, Castro retorquiu com o reconhecimento do Comunismo na Ilha o que o atirou para os braços da União Soviética.
Eu fúria, os US decretaram o embarco comercial que dura até hoje. ( à excepção de medicamentos e alimentos). Mas Cuba conseguiu feitos notáveis, na medicina, no desporto, na ciência, na educação, colapsando na criação de riqueza ao controlar cerca de 90% da economia.
Fidel era um orador inflamado ( desde que o ouvinte aguentasse a primeira meia-hora) com os seus discursos de três horas à nação que fazia difundir pelos numerosos aparelhos de televisão e rádio que existiam na ilha. A União Soviética viu em Cuba a possibilidade de ter foguetões e armamento suficientemente perto dos US para o ameaçar da mesma forma que estes a ameaçavam a partir da Turquia.
O mundo esteve perto de uma guerra quando barcos Soviéticos se aproximaram de Cuba carregados de armamento sofisticado. Fidel Castro, um político determinado , Presidente de um pequeno país conseguiu colocar frente a frente, em plena guerra fria, os dois colossos mundiais.
Não é feito pequeno!
Sábado, 1 de Janeiro de 2011
Carlos Loures1 de Janeiro é o dia em que os cubanos comemoram a independência relativamente à tutela de Espanha. O primeiro governo nacional, o de José María Gálvez Alonso, foi empossado em 1 de janeiro de 1898. Faz hoje 113 anos. No entanto, este governo que culminava uma guerra de dez anos contra a potência colonial, não significava uma verdadeira independência - Cuba fora ajudada pelos Estados Unidos e, na verdade, o que se passara com a derrota espanhola fora uma mudança de tutela. Agora, os donos de Cuba eram os Estados Unidos.Na guerra, várias tendências se haviam consolidado – os autónomos, de Rafael Montoro, os reformistas, de José Antonio Saco, e os separatistas de José Martí, os únicos que aspiravam a uma verdadeira independência. Foi nesse sentido que Martí organizou o Partido Revolucionário Cubano. Porém, Martí morreu em 19 de Maio de 1895 na luta contra as tropas espanholas. Com a entrada dos Estados Unidos no conflito, as coisas mudaram – Espanha não tinha poder bélico para opor aos modernos couraçados que destruíam os navios que da Europa seguiam para as Caraíbas, com uma logística complicada e dispendiosa. Em 1898, Espanha rendeu-se.O desapontamento dos cubanos pela simples troca de potência colonizadora foi imediato. Porto Rico e as Filipinas que os americanos tinham «libertado» ao mesmo tempo que Cuba, foram assumidas como colónias norte-americanas por mais tempo, em Cuba as pressão por uma independência verdadeira, levou os Estados Unidos a retirar, mas deixando aberta a possibilidade de uma nova intervenção como forma de "garantir a independência", conforme expresso na emenda constitucional de 12 de junho de 1901, a Emenda Platt. Embora sem ocupação militar (com excepção de Guantánamo. onde instalaram uma base) os norte-americanos continurama ser os donos de Cuba, colocando no poder políticos corruptos e traidores. Até que...Na madrugada de 1 de Janeiro de 1959, Fidel Castro e as suas forças revolucionárias entraram em Havana e proclamaram a segunda e, desta vez, autêntica independencia de Cuba. Porque, podemos concordar ou não com o Governo cubano, podemos aceitar ou não, as medidas que têm sido assumidas e com a política que tem sido seguida nos 52 anos que hoje se completam, mas do que ninguém terá dúvidas é de que Cuba é uma nação independente, pese embora o preço que os cubanos estão a pagar por essa independência. Estive em Cuba, pude ver como o povo sofre, fustigado pelo desumano bloqueio económico aque a ilha está sujeita. Não concordo com a linha política do Governo. Mas, apesar disso, não posso deixar de admirar a dignidade com que um pequeno país resiste há tantas décadas ao cerco que a única superpotência mundial lhes move. Tantas esperanças que tínhamos em que Obama mudasse as coisas! Os fascistas que ocupam o Pentágono, como sempre, levam a melhor.Deixo-vos com um poema de José MartíCultivo una Rosa BlancaCultivo una rosa blancaEn Junio como en Enero,Para el amigo sincero,Que me da su mano franca.Y para el cruel que me arrancaEl corazón con que vivo,Cardo ni ortiga cultivocultivo una rosa blanca.
Segunda-feira, 13 de Setembro de 2010
Carlos LouresFidel Castro foi, na semana que ontem terminou, entrevistado por Jeffrey Goldberg, um jornalista norte-americano ligado à especialista e em Relações Exteriores, Julia Sweig. Foi uma longa entrevista, durante a qual se abordaram temas como o conflito israelo-árabe e a tensão entre os Estados Unidos e o Irão. Fidel parece ter encetado um processo de autocrítica – depois de ter reconhecido, em declarações anteriores, o exagero da sua política persecutória relativamente aos homossexuais, admitiu perante Goldberg que o modelo cubano não serve para exportação, porque nem sequer em Cuba funciona. O Carlos Antunes, em texto que aqui publicou no Sábado, já se referiu a este tema. Esta extraordinária afirmação de Castro, veio lembrar-me o fervor e o entusiasmo com que, no início dos anos 60, nós seguíamos as suas vibrantes intervenções.
Mas, quando em 1962, na sequência da chamada «crise dos mísseis», para se proteger dos Estados Unidos, Cuba foi forçada a transformar-se num satélite da União Soviética, ao fascínio seguiu-se uma profunda desilusão. Porém, aqueles primeiros três anos da Revolução Cubana, tal como os 18 meses da nossa Revolução dos Cravos, foram algo que marcou os jovens daquela época. Não escapei à regra. Ouvir o verbo emocionado e emocionante de Fidel, lendo na Praça da Revolução, as declarações de Havana, particularmente a segunda, era arrepiante. É sob a emoção dessas recordações que escrevo este texto.
.Embora a admiração pela Revolução Cubana há muito tivesse morrido, era um projecto meu visitar Cuba, como quem revisita a juventude e algumas das ilusões perdidas (porque há outras que nunca se perdem e é isso que nos mantém vivos). Há poucos anos atrás, com a minha mulher e um casal amigo (o Gomes Marques e a Célia) metemos mãos à obra. As agências só ofereciam pacotes inaceitáveis – três dias em Havana e quatro em Varadero. Mas nós íamos lá fazer uma viagem de doze horas, atravessar o Atlântico para ir à praia, com a Caparica e as praias da linha aqui tão perto? Mas acabámos por descobrir uma alternativa aos pacotes usuais. Uma boa alternativa que agora vejo que já está mais divulgada. Um carro de aluguer à nossa espera no aeroporto de Havana, hotéis reservados por um itinerário escolhido por nós, a começar e a acabar na capital – Havana, Matanzas, Cienfuegos, Sancti Spíritus, Camagüey, Ciego de Ávila, Santiago de Cuba, Trinidad, Santa Clara, Havana… Tudo por um preço razoável, pouco acima do que custavam os tais pacotes. Durante duas semanas percorremos quase quatro mil quilómetros, vimos o que queríamos, sem guias turísticos a incomodar-nos. E lá fomos à Baía dos Porcos, ao Quartel de Moncada, à Sierra Maestra, ao museu da Revolução, a todos os lugares de culto. Visitámos Havana em pormenor, fomos aos locais frequentados por Hemingway, e até almoçámos em Varadero. Varadero é um local de veraneio, sem nada de especial (a não ser o mar maravilhoso das Caraíbas) – Hotéis, edifícios de apartamentos, etc. Nada, nesse aspecto, que Vilamoura ou Torre Molinos não tenham – tal como pensávamos, não se justifica ir tão longe. Mas o nosso itinerário foi uma maravilha.
Falámos com muita gente. Pudemos verificar que, apesar de algum medo à repressão que inegavelmente existe, as pessoas falaram connosco com à-vontade. Encontrámos mais descontentes nas grandes cidades, Havana e Santiago, principalmente. As condições de vida são constrangedoras. Racionamento dos bens mais elementares – lâminas de barbear, pensos higiénicos, géneros de primeira necessidade, arroz, ovos, leite, tudo é racionado. As casas de Havana, algumas lindíssimas, estão em ruínas. O turismo é uma das saídas. Cozinha-se em casa para os turistas. São os chamados «paladares», alternativas aos restaurantes. Combina-se previamente, escolhe-se a ementa e à hora combinada lá temos a mesa posta e anfitriões dispostos a deixar-nos sós ou a conversarem connosco, como preferirmos. Pelas ruas andam pessoas das mais diversas idades a cooptar clientes para os paladares. Em Ciego de Ávila um professor universitário de avançada idade andava nesta tarefa, recitando-nos de memória poemas de Nicolás Guillén. Para não falar da prostituição, mais ou menos encoberta, que pessoas normalíssimas, qualificadas, quase todas com cursos superiores, se vêem obrigadas a praticar para completar ordenados baixíssimos. A prostituição em Cuba é, de uma maneira geral, uma forma desesperada de sobrevivência.
Nos campos, sobretudo em granjas colectivas, encontrámos mais adeptos do regime, gente saudando-se de punho cerrado. Também é verdade que nos campos a vida não é tão difícil, pois os bens alimentares essenciais são ali produzidos e, portanto, escasseiam menos. Porém, numa coisa todos estão irmanados, fidelistas, antifidelistas: no ódio aos Estados Unidos. Mesmo os opositores ao regime, têm consciência de que sem o bloqueio norte-americano, o povo não sofreria tanto. É evidente que o bloqueio tem perpetuado a ditadura e impedido o advento da democracia. Toda a gente sabe isso. Só a CIA e a Casa Branca se obstinam em não o reconhecer. E Obama, que parece ser mais inteligente do que a generalidade dos antecessores, poderá, mesmo que queira, contrariar a CIA e os falcões do Pentágono? As recentes declarações de Fidel, reconhecendo erros, constituem metade da ponte. Será que o presidente norte-americano terá margem de manobra para construir a outra metade?
Sábado, 11 de Setembro de 2010
Carlos AntunesNos últimos dias os jornais e toda a Comunicação Social deram um grande relevo às declarações de Fidel Castro, Secretário-Geral do Partido Comunista Cubano, sobre vários assuntos internacionais, mas sobretudo sobre o falhanço do modelo económico cubano. Estas declarações vêm no seguimento da autocrítica de Fidel Castro sobre o seu comportamento homofóbico e repressivo dos homossexuais cubanos. Devem também ser enquadradas na libertação dumas dezenas de presos políticos pelo governo cubano. Tudo parece levar a crer que Fidel inicia um processo de autocrítica que abre a possibilidade ao irmão de fazer reformas profundas no sistema cubano. Se este inicio de reformas se confirmar, nada nos garante que chegará a bom porto, mas todos os democratas e revolucionários só têm neste momento uma opção, que é encorajar este caminho e libertar o povo cubano dum regime que o condenou à miséria e à opressão.
Eis que os mesmos que condenavam o regime cubano vêm agora dizer que Fidel ou está senil ou louco. Claro que a todos os contra-revolucionários não convém este caminho. Fidel ao assumir a responsabilidade por estes erros, liberta o povo cubano para outras opções, desresponsabilizando o próprio povo dessas das passadas escolhas.
Isto é o contrario daquilo que aconteceu com Álvaro Cunhal, naquilo que é considerado o seu “último combate”. Não assumiu a responsabilidade pelas monstruosas escolhas estalinistas do Partido Comunista Português, fazendo-as assumir pelos militantes, o que necessariamente tem conseqüências trágicas para o futuro. Curiosamente a Comunicação Social sempre o tratou bem e nunca insinuou que o seu comportamento fosse dum velho senil ou louco.
Post Scriptum 1 – Ao que supomos, o Miguel Urbano Rodrigues vivia em Cuba como uma espécie de embaixador ideológico do Partido Comunista Português. Depois disto, é caso para lhe desejar um bom regresso... C.A.
Post Scriptum 2 – O Partido Comunista Português alimentava o sonho de fazer uma federação mundial sindical com os sindicatos da Coreia do Norte, China, Venezuela, Cuba e Intersindical Portuguesa. Ainda aceitarão a entrada dos revisionistas cubanos? C.A.
Lisboa, 10 de Setembro de 2010.
Terça-feira, 24 de Agosto de 2010
Carlos LouresJá leram ou ouviram falar na «Máquina do tempo», um romance cujo autor, Herbert George Wells, nasceu em 1866 em Bromley, Inglaterra, e morreu em 1946, em Londres. «The Time Machine», publicado em 1895, foi um dos seus primeiros romances e um dos seus maiores êxitos. Mas teve outros, como por exemplo «The War of the Worlds» (1898), a famosa «Guerra dos Mundos». Orson Welles, que a transformou em peça radiofónica, pôs em 1938, a América em pânico, pensando que os marcianos estavam a invadir a Terra. Ideia que o Mário-Henrique Leiria, o António José Forte e outros manos do Gelo aproveitaram para a «Operação Papagaio» de que o Fernando Correia da Silva e eu já aqui falámos. A história conta como «o viajante no tempo» inventa uma máquina que se move na quarta dimensão. E lá vai ele parar ao ano 802 701, a uma espécie de Eden, mas com um inconveniente - os Elois, uma raça de gente boa e vegetariana, serve de alimento aos malvados Morlocks, carnívoros o mais possível (que se escondem em subterrâneos).
H.G. Wells, se bem que jovem escritor estreante, era tudo menos inocente – a época vitoriana em que o livro é escrito era fértil em «elois», que trabalhavam literalmente como escravos a partir dos cinco anos de idade, para alimentar os «morlocks» que se pavoneavam por Londres e não só, porque a desenfreada exploração a que a Revolução Industrial deu lugar, foi o «caldo de civilização» em que Karl Marx, de colaboração com Engels, escreveu em 1848 o seu «Manifesto Comunista», tal era a densidade da injustiça social vivida na Europa. Mas Wells escusava de ter ido tão longe no tempo – andando pouco mais de um século para a frente, encontraria morlocks e elois, ali mesmo em Londres. Se quisesse deslocar-se um pouco para Sul, sobretudo se viesse durante a primeira década do século XXI, encontraria por aqui exemplares bastante interessantes dessas duas espécies de humanóides.
Mas ouçam esta descrição de uma ida ao futuro feita por quem fez essa viagem: «O Futuro é tão antigo como o Passado. E ao caminharmos para o Futuro é o Passado que conquistamos», disse António Maria Lisboa (1928-1953), o grande poeta surrealista que morreu com 25 anos. Sabendo eu como gostaria que fosse o Futuro, ignoro como irá ser. O Presente, salvo raras excepções, é mesquinho. Não me apetece falar destas coisas, da gente da política. Serão pessoas, mas não são personalidades e, muito menos, personagens. Falar deles é dar-lhes uma espessura que não têm nem merecem ter.
Não sei o que dizer mais sobre isto que estamos a viver. No Passado, que envolve algumas décadas vividas por mim, procurando bem, como quem anda no sótão das arrumações, lá vou encontrando factos, personalidades e personagens, ou seja, gente de que merece a pena falar. Por isso talvez viaje mais até ao passado, não por ser passadista, mas pela razão dada pelo António Maria Lisboa. Pondo-a do avesso, fica assim: – «o Passado é tão novo como o Futuro. E ao caminharmos para o Passado é o Futuro que conquistamos» – ou que, neste caso, compreendemos. De acordo? Não? Não faz mal – porque o mesmo poeta também dizia «que tudo é e não é alternadamente». O que, a ser verdade – e é - pode ser utilizado como saída de emergência para qualquer situação – TUDO É E NÃO É ALTERNADAMENTE! – já viram?.
Nos anos 60, os famosos anos 60, eu era muito jovem no princípio da década e, obviamente, menos jovem no seu final, mas ainda bastante novo. Em Portugal, e não só, mas em Portugal foi, de facto, uma década terrível, vínhamos do «terramoto Delgado» de 1958 e, logo em 1961, aconteceram tantas coisas que, para um país onde nos queixávamos que não acontecia nada, foi demasiado: o assalto ao Santa Maria, o início da Guerra Colonial, a invasão do Estado da Índia pela União Indiana, o assalto ao quartel de Beja no último dia do ano… E, depois nunca mais parou – sucessivas crises nas universidades, emigração clandestina, greves, o recrudescimento da guerra, que alastrou por três frentes, sucessivas vagas de prisões, porque com os reveses o regime tornava-se cada vez mais susceptível, temeroso e rancoroso.
Dito assim, isto ganha um ritmo épico, mas para quem estava mergulhado naquela realidade era sentido como um tormento, pois éramos obrigados a fazer a guerra e era uma guerra que muitos de nós sabiam ser suja, contra povos que queriam legitimamente ser livres, e éramos presos e torturados e vivíamos todas as vicissitudes duma situação mesquinha, cinzenta, que nada tinha de épica ou de elevada. Éramos vítimas de uma besta estúpida, de uma ditadura liderada por um velho tacanho e sem coração que actuava em nome de valores cediços, apodrecidos, com o cheiro enjoativo das sacristias velhas.
Apesar de tudo isto, os jovens daquela época encontravam espaço para a felicidade, para o amor, para a amizade, para a partilha fraterna do pouco que havia para partilhar. E sempre que podíamos viajávamos até ao Futuro, assim mesmo, com F maiúsculo. E como fazíamos isso? Reunindo-nos, com os cuidados que a situação exigia (e às vezes sem os tomar). Ouvíamos discos do Zeca, do Yves Montand, do Jacques Brel, do George Brassens, do Luís Cília, do Fanhais, o Jean Ferrat… Ouvíamos as gravações das Declarações de Havana, e havia um arrepio colectivo quando Fidel chegava ao fim da Segunda e dizia: «Porque esta gran humanidad ha dicho “basta” y há echado a andar. Y su marcha de gigantes, ya no se detendrá hasta conquistar la verdadera independencia, por la que ya han muerto más de una vez inútilmente. Ahora, en todo caso, los que mueran, morirán como los de Cuba, los de Playa Girón» – nesta altura Fidel era interrompido pela tempestade de aplausos de uma enorme multidão – «morirán por su única, irrenunciable independencia. Patria o Muerte! Venceremos!»
Já aqui descrevi, num texto a que chamei «Serões da Província», as reuniões sociais que se faziam nas casas dos antifascistas. Uma vez, em 1967, estávamos a ouvir a gravação em fita magnética de um apelo ao povo grego dito por Mikis Theodorakis, o cantor, compositor (autor da música de «Zorba») e político marxista que passara à clandestinidade quando do golpe militar de direita de 21 de Abril desse ano – um apelo ao seu povo. Alguns de nós tinham estudado grego no Complementar dos liceus ou na Faculdade. Mas mesmo os que haviam estudado o grego clássico, mal compreendiam uma ou outra palavra e depressa os que não compreendiam exigiram que cessasse a tentativa de tradução. A emoção que, de forma crescente, ia transparecendo da voz de Theodorakis, era tão forte que no fim da audição ficámos em silêncio e todos com lágrimas nos olhos. Porque no nosso coração havia certamente tradução para cada uma das palavras. Vivíamos sob uma ditadura e isso fazia-nos compreender a oratória de qualquer cidadão fugido à polícia política, á tortura e à morte, falasse ele que língua falasse. Theodorakis só podia estar a apelar a que os Gregos e as Gregas lutassem pela liberdade e pela democracia.
Por mero acaso, cerca de dez anos passados, fui encarregado de traduzir o «Diário de um Resistente», de Mikis Theodorakis (da edição francesa, que o meu grego apenas deu para ler as placas toponímicas de Atenas quando ali estive uns dias). E pude saber o que o famoso cantautor e político dissera e que naquela noite nos pusera a chorar. É um texto muito longo que começava por dizer que «O rei, oficiais traidores e magistrados perjuros, de colaboração com os imperialistas americanos, aboliram a democracia na Grécia.» E terminava. «No país onde a democracia nasceu, os tiranos estão votados à morte. Abaixo a ditadura monarco-fascista! Fora com o opressor estrangeiro! Abaixo o carrasco Collias! Viva o povo Grego! Viva a Grécia!». Tinham sido estes brados finais que nos tinham emocionado. E a nossa emocional tradução estava certa. Essas reuniões que iam fazendo pelas casas de diversos companheiros e companheiras, eram viagens ao futuro. Sonhávamos com a Liberdade e nunca ouvi alguém sonhar que ia ser ministro, ou deputado (embora alguns o tenham vindo a ser). Todos queríamos viver como cidadãos livres, num país livre. Era o único privilégio com que sonhávamos e era esse lugar que visitávamos quase todos os dias no Futuro – um país livre e democrático.
E cá estamos nós no futuro. Podendo, na realidade, dizer o que quisermos, associarmo-nos como entendermos, sindicalizarmo-nos ou não… Nesse plano o nosso sonho cumpriu-se. E a democracia? Não, aí o sonho superava a realidade. Temos um simulacro de democracia em que a nossa única participação consiste em votar. E, pelas razões que todos sobejamente conhecemos, temos o pesadelo da corrupção, da subordinação a centros de poder situados fora de Portugal, do desemprego, das arbitrariedades… O que sabemos. Não, não tenho saudades dos anos 60. Tenho saudades do Futuro com que sonhava nos anos 60, um Futuro que nada tem a ver com este presente.