As utopias não se limitam ao universo literário. Os falanstérios, ideados pelo pensador francês Charles Fourier (1772-1837), reflectiam o desejo de passar à prática uma generosa utopia, baseada no pressuposto de que e o ser humano é intrinsecamente bom, depositário de uma harmonia natural que reflecte a harmonia do Universo, e que a maldade está na sociedade e não no homem. Edificaram-se algumas comunas que não poderiam albergar mais de 1600 pessoas e teriam de ser auto-suficientes, permutando com outros falanstérios os excedentes da sua produção. Em França, nos Estados Unidos, no Brasil, no México, criaram-se falanstérios que foram fracassando. Cada pessoa decidia a actividade a que se devia dedicar o que, desde logo deve ter causado problemas. Um pormenor – nestas comunidades ideais o trabalho infantil era um dado adquirido – às crianças estavam reservados trabalhos de limpeza das ruas, por exemplo – As utopias constroem-se à luz dos conceitos correntes. No século XIX o trabalho infantil não era um crime. Voltando ao tema central, digamos que os males do mundo poderão estar principalmente na sociedade, mas lá que o homem não é intrinsecamente bom, todos os sabemos.
Os kolkhoses soviéticos (cooperativas de produção agrícola), as comunas populares chinesas, os kibutz israelitas (cooperativas rurais), foram a passagem à realidade da teoria de Fourier. No entanto, em enquadramentos histórico-políticos de conflito que não permitiam a concretização do pacífico ideal dos falanstérios.
O fascismo e o nazismo foram utopias antes de se transformarem em realidades distópicas. Ao contrário do axioma de Fourier («o homem é intrinsecamente bom») partiam ambas do princípio de que o homem é intrinsecamente mau e, portanto, era preciso criar estruturas sociopolíticas que controlassem e neutralizassem essa maldade inata. Porque além de mau o homem era como uma criança que deve ser vigiada para que não faça mal aos outros nem a si mesmo. Daí a Gestapo, a OVRA, a PIDE, o KGB… Da tortura ao campo de extermínio, foi tudo para bem da humanidade.
Por este projecto de uma nova capital para o Reich, localizada em Berlim, mas designada Germania, vê-se como dentro da cabeça de Hitler as ideias estavam arrumadas de forma que a ele lhe parecia perfeita. Os seus desenhos e projectos revelam a ânsia por converter uma sociedade capitalista, corrupta, sórdida, eivada de usura judaica, numa outra em que imperasse uma ordem absoluta, em que não houvesse imprevistos nem improvisações (a Gestapo não era mais do que um mecanismo para impedir essas surpresas). Hitler encontrou os loucos e os oportunistas que o ajudaram a transpor para a escala nacional e depois para a continental a sua utopia e foi o que se viu. Estaline perseguia também a sua utopia. Salazar, para ir ao outro extremo do leque ideológico, quis transpor para o nosso país o seu conceito de perfeição, uma perfeição moldada à imagem do seminário de Viseu e da vila de Santa Comba.
Na RTP, conheci um motorista que tinha trabalhado na Presidência do Conselho. Contava ele que, por vezes, sobretudo no Verão, ao anoitecer, ia um criado chamá-lo ao anexo em que morava, pois o senhor Professor precisava de sair. E lá ia o motorista, com o presidente atrás, e três guarda-costas. As ordens era para conduzir devagar o carro blindado que Hitler lhe tinha oferecido e que serviu a Álvaro Cunhal e a mais oito presos para fugirem de Caxias. Na Avenida da Liberdade havia muita gente espalhada pelas esplanadas. Salazar queria que o carro de vidros fumados e à prova de bala fosse devagar.
Perguntava ao motorista e aos agentes: - O que é que eles estão aqui a fazer? – A apanhar o fresco, senhor Professor, a beber. – A beber? O quê? – Eles lá respondiam: - «cerveja, gasosa, laranjada…» O presidente do Conselho queria saber os preços de cada uma daquelas bebidas. - «E o que estão a comer?» - «Amendoins, tremoços…». Estas respostas deixavam-no pensativo e curioso: - E eles têm dinheiro para beber e comer essas coisas? Às vezes resmungava: -« depois queixam-se de que o dinheiro não lhes chega». Salazar criara a sua utopia – um país rural, com cidades que seriam conjuntos de aldeias, igrejas, fontanários... As esplanadas da Avenida, o consumo de cerveja e refrigerantes, não cabiam na utopia, faziam-lhe confusão. Diz-se que apreciava muito ouvir a «Casa Portuguesa», cantada pela Amália, um retrato perfeito do país utópico que tentou modelar.
As utopias pessoais dos ditadores do século XX, causaram milhões de mortos, miséria e sofrimento e, por reacção antinómica, o advento de democracias em que a maior parte dos crimes e injustiças imperantes nas ditaduras subsistem ao abrigo do princípio, ou sob a desculpa, de que as desigualdades sociais incentivam o desenvolvimento.
A era americana, desencadeada sobretudo após a II Guerra Mundial, é uma outra utopia - Todos podem ser ricos, desde que tenham espírito de iniciativa, capacidade de trabalho e essas tretas. E as pessoas acreditam. Todos, mesmo os que vivem em bairros degradados, acreditam que têm direito a todos os bens de consumo que o marketing impinge. Moralmente, claro que têm. Mas a realidade não respeita a moral. The american way of life, mais depressa nos transforma em sem-abrigo do que em milionários. Para ter uma moradia com piscina, um carro topo de gama, um pequeno iate (sendo modesto) é preciso ter ou um bom e lucrativo negócio, ter estudos – o que exige espírito de sacrifício - e atingir um bom lugar numa boa empresa, ou não ter nada disso e escrúpulos muito menos e deitar-se aos negócios escuros, uma redezita de tráfico de droga, um barzito de alterne com raparigas brasileiras e de Leste... Ter espírito empreendedor. Nem todos o conseguem ter. Há outra possibilidade de vencer na vida – nascer rico – dentro do nosso modelo de sociedade, é uma prova de inteligência. (já viram algum rico ser acusado de ser estúpido, sem ser pelos invejosos?) Não tendo tido essa sorte, a alternativa é pôr os escrúpulos no lixo e abrir caminho na vida, passando por cima de tudo e de todos. Há casos…