Não me recordo precisamente de quando foi – há 15, talvez há 20 anos – num dicionário de História de Portugal cuja edição coordenei, na entrada sobre D. Afonso Henriques, dava-o como nascido no ano de 1109 em Coimbra. As gentes de Guimarães deram paus por pedras: não podia ser, exigiam que a editora publicasse um desmentido. Era uma «gralha»? – perguntavam alguns. Numa obra com diversos volumes, mais de um milhar de páginas, muitos milhares de entradas e milhões de palavras – e com prazos rigorosos a cumprir – quem coordena não pode ler tudo e, aquele pormenor tinha-me passado. E, mesmo que tivesse lido, talvez tivesse estranhado, mas teria de aceitar, pois quase todas as entradas tinham sido entregues a especialistas. Era o caso.
O autor da entrada era um credenciado medievalista da escola de José Mattoso, um jovem mas prestigiado professor da Universidade Nova de Lisboa. De Guimarães começaram a chegar à editora cartas, postais, telefonemas e até uma entrevista telefónica em directo tive de dar para a Rádio Fundação. Queriam desmentidos. Cheguei à fala com o autor e ele mostrou-se inamovível – não desmentia nada: se D. Afonso Henriques nasceu em 1109, não pode ter nascido em Guimarães - nesse ano a corte estava em Coimbra. Naquela época, não havia as «barrigas de aluguer» e os filhos nasciam onde as mães estavam. A administração apertava comigo – e lá estava este vosso amigo entalado entre o ardor do regionalismo vimaranense e a justificada teimosia da ciência histórica. Não vou fazer do episódio um romance policial. Vou já revelar como é que o imbróglio se resolveu porque o que quero contar é outra história.
Um historiador com grande êxito televisivo e editorial, colaborador da editora, foi por esses dias a Guimarães fazer uma palestra à Sociedade Martins Sarmento. Um avultado grupo de vimaranenses, estudantes na sua maioria, julgando-o co-responsável pelo furto do fundador à Cidade-Berço, fez uma manifestação em frente do hotel onde estava hospedado. Teve de sair escoltado pela polícia.
A sociedade encheu-se para o ouvir e o conceituado historiador, depois de ter explicado que não tinha dirigido o tal dicionário, tranquilizou as belicosa hostes - «D. Afonso Henriques nasceu em Guimarães! Não há dúvidas a esse respeito!». Uma estrondosa ovação, que se repetiu depois ao longo da palestra. Ele que entrara protegido pela polícia, saiu quase aos ombros dos manifestantes. E a zanga de Guimarães desvaneceu-se: o que eram um dicionário e um texto de um professor desconhecido comparados com a opinião de um homem tão famoso e que falava na televisão? No regresso de Guimarães, o historiador almoçou comigo e quando lhe perguntei que elementos tinha ele para contrapor aos alicerçados argumentos do medievalista, respondeu-me: «Nenhuns! Só os do bom senso». Fiquei um bocado desconcertado. Mas ele consolidou a sua tese - «O que interessa onde é que o D. Afonso I nasceu realmente? E se não nasceu em 1109? Porque se põe em causa o lugar e não a data?» – e completou - «Há coisas em que não se pode mexer. Esta é uma delas. D. Afonso I nasceu em Guimarães. Assunto arrumado!». Dei-lhe razão, até porque me convinha: assunto arrumado.
O professor José Mattoso, na sua biografia sobre o primeiro rei de Portugal narra este acontecimento, com imprecisões, nomeadamente quanto ao nome da editora detentora dos direitos da obra, mas isso não tem importância. E não esclarece de forma peremptória onde nasceu o filho da bastarda de Afonso VI de Leão. Mais recentemente, surgiu a hipótese de o local do nascimento de Afonso I ser Viseu, hipótese secundada por alguns historiadores. Não sei como reagiu desta vez a «cidade-berço»… Mas voltemos à questão.
Estava já a esquecer o caso, quando me telefonam da RTP, pedindo-me para ir a um programa da tarde, dirigido pelo Raul Durão, falar no assunto do D. Afonso Henriques. E disseram-me o dia e a hora. Procurei escusar-me, mas um administrador, com o qual estava reunido quando do telefonema, insistiu para que fosse. Era uma boa oportunidade, disse-me, para esclarecer a posição da editora. Quando me prontifiquei a ir, disse que levaria comigo o professor, o medievalista: eu falaria sobre a prática comum da editora em matéria de escrúpulo científico e ele esclareceria a questão histórica.
Da RTP concordaram. Foi numa segunda-feira. Passei pela Nova, encontrei-me com o professor e fomos até ali perto, à 5 de Outubro, de onde era emitido o programa. Eu tinha estudado alguma coisa sobre o tema, porque embora não fosse essa a área sobre a qual iria falar, não queria estar «às escuras». Lembro-me que estive no domingo de manhã no Limo Verde da Parede, onde na altura morava, lendo e anotando, nas fotocópias de que me munira, o que me parecia interessante. Pelo meio, para descansar do tema afonsino, li num suplemento do DN um pequeno texto do Jorge Luis Borges, onde o genial escritor argentino, analisava com mestria as similitudes entre duas canções urbanas – o tango e o fado.
Lá marchámos, o professor e eu, para os estúdios, combinando estratégias pelo caminho. Fomos, como é hábito, recebidos por uma secretária que nos levou à maquilhagem e, enfim, lá chegou o momento de entráramos no estúdio e de nos sentarmos em frente das câmaras, enquanto passavam um bloco de publicidade. Primeira surpresa: não era o Raul Durão que nos ia entrevistar, mas sim Luís de Castro. O Durão estava de férias, esclareceu Castro. Por nós não fazia diferença. Diferença fez, quando a entrevista começou a ser dada em directo e vimos no teleponto aparecer a primeira pergunta, mais ou menos isto: «No vosso dicionário, na entrada Fado, diz-se que a chamada canção nacional teve origem no Brasil. É verdade?» Olhar de pânico entre mim e o professor. Fado? Resolvi avançar e conceder tempo ao ilustre académico para rebobinar o cérebro. Às vezes nem sei como continuo a ser um ateu empedernido: então não é que o tetxtozinho do cego prodigioso, que li nos intervalos da consulta às fotocópias, estava quase todo na minha memória?
A questão do fado arrumei-a com uma frase – É verdade. Terá nascido de uma música popular que existia no Brasil no início do século XIX, proveniente de danças trazidas de Angola pelos escravos e que podiam ser acompanhadas por canto, conjunto a que se chamava fado; música que a corte de D. João Vi trouxe do Brasil, quando regressou a Lisboa. E depois acrescentei: «Segundo Jorge Luis Borges… e, zás, debitei o sumo do texto lido na véspera. Entretanto o professor teve tempo para recuperar do susto e fez uma intervenção muito interessante sobre as eventuais raízes árabes da canção, que teria passado a sua influência às famosas endechas e daí vindo até aos nossos dias ligado à tal dança chegada dos trópicos. Foi canja!
A entrevista acabou e a secretária veio dizer-nos que tinha ficado fascinada com o tínhamos dito sobre o fado. A senhora foi tão simpática que nem tivemos coragem para protestar muito pelo qui pro quo. Apesar de tudo, enquanto nos acompanhava até à saída, queixámo-nos – «então convidam-nos para falar sobre o D. Afonso Henriques e entrevistam-nos sobre o fado? A senhora desvalorizou. «- Ah sim? O Raul foi de férias e se calhar esqueceram-se de dar as notas que ele deixou ao Luís. São coisas que acontecem. E os senhores saíram-se tão bem…» - fiquei com a ideia, talvez injusta, de que fora ela quem se esquecera de dar os tais apontamentos ao Luís de Castro.
*
Nunca mais pensei no assunto das eventuais raízes árabes do fado. No entanto, ao escutar esta interpretação de «Meu Fado», por Mariza e Miguel Poveda, os requebros de flamenco do cantor catalão levaram a eu me lembrasse da hipótese levantada pelo Professor – origens mouras, herança da cultura do Al-Andalus? Não é tão improvável como á primeira vista parece.
Moral das histórias – nunca se pode dar nada por adquirido: O “Fundador” nasceu em Guimarães, Coimbra ou Viseu? O fado veio de África (via Brasil) ou os muçulmanos deixaram-no cá ficar? Para complicar, há quem fale na hipótese da origem celta… É rebuscado, mas quem sabe?
Enquanto meditamos, ouçamos a Mariza e o Miguel Poveda - «Meu Fado»:
Aqui há tempos, contei como, ao traduzir um livro do grande escritor argentino Ernesto Sábato, («Heróis e Túmulos») me vi em palpos de aranha. Estudara língua e literatura castelhana, mas a cada passo surgiam vocábulos que desconhecia e que os dicionários, incluindo o da Real Academia, não registavam. Escrevi então ao Sábato dando-lhe conta da minha dificuldade e ele, muito amavelmente, enviou-me um extenso glossário com termos argentinos e, inclusivamente com modismos «porteños», ou seja, bueno-airenses.
Nesta série de textos que tenho vindo a dedicar ao fado e ao tango – na demanda de paralelismos entre estes dois géneros de canção urbana – vou hoje abrir um parêntesis para vos falar de uma composição de Carlos Gardel em que, para além do fatalismo que irmana o tango com o fado – surge um desses particularismos do castelhano que se fala na Argentina - a começar pelo título, Yira, Yira (pronunciado de forma semelhante á do português) – em castelhano dir-se-ia «Gira, gira», pronunciando-se como fonema fricativo velar surdo – velar, por ser articulado junto do véu palatino (os portugueses quando querem falar portunhol, resolvem o problema, transformando o «g» ou o «j» em «r» – exemplo – rúlio iglésias). Na letra do tango cantado pelo Gardel, existem casos de argot porteño semelhantes aos que me saíram ao caminho quando traduzia Sábato. Mas neste caso, se não perceberem todas as palavras, perceberão o sentido que é profundamente singelo e tristemente verdadeiro – quando se cai em desgraça não se pode contar com ninguém. Cair na miséria é considerado um crime. Bater às portas pedindo ajuda, trabalho, calor humano, é inútil. Até amigos, a quem se deu a mão e se ajudou quando precisaram, se afastam incomodados. Um necessitado é uma pessoa incómoda. – um desgraçado é como um leproso. Os amigos, afinal, são só para (as boas) ocasiões. Ora leiam e depois ouçam. A música e a letra são de Enrique Santos Discépolo (1901-1951). Há uma interpretação razoável do Julio Iglesias, mas não há nada como ouvi-la na voz de Carlos Gardel.
Cuando la suerte qu’es grela fayando y fayando te largue parao… Cuando estés bien en la vía, sin rumbo, desesperao… Cuando no tengas ni fe, ni yerba de ayer secándose al sol… Cuando rajés los tamangos buscando este mango que te haga morfar… La indiferencia del mundo que es sordo y es mudo recién sentirás. Verás que todo es mentira verás que nada es amor que al mundo nada le importa Yira… Yira… Aunque te quiebre la vida, aunque te muerda un dolor, no esperes nunca una ayuda, ni una mano, ni un favor. Cuando estén secas las pilas de todos los timbres que vos apretás, buscando un pecho fraterno para morir abrazao… Cuando te dejen tirao, después de cinchar, lo mismo que a mí… Cuando manyés que a tu lado se prueban la ropa que vas a dejar… te acordarás de este otario que un día, cansado, se puso a ladrar. Verás que todo es mentira verás que nada es amor que al mundo nada le importa Yira… Yira…
Há alturas em que me sinto (creio que acontece com todos), como disse Discepolín, na pele do otário que um dia, cansado, se pôs a ladrar. Alturas em que me apetece mesmo uivar.
Não me recordo precisamente de quando foi – há 15, talvez há 20 anos – num dicionário de História de Portugal cuja edição coordenei, na entrada sobre D. Afonso Henriques, dava-o como nascido no ano de 1109 em Coimbra. As gentes de Guimarães deram paus por pedras: não podia ser, exigiam que a editora publicasse um desmentido. Era uma «gralha»? – perguntavam alguns. Numa obra com diversos volumes, mais de um milhar de páginas, muitos milhares de entradas e milhões de palavras – e com prazos rigorosos a cumprir – quem coordena não pode ler tudo e, aquele pormenor tinha-me passado. E, mesmo que tivesse lido, talvez tivesse estranhado, mas teria de aceitar, pois quase todas as entradas tinham sido entregues a especialistas. Era o caso.
O autor da entrada era um credenciado medievalista da escola de José Mattoso, um jovem mas prestigiado professor da Universidade Nova de Lisboa. De Guimarães começaram a chegar à editora cartas, postais, telefonemas e até uma entrevista telefónica em directo tive de dar para a Rádio Fundação. Queriam desmentidos. Cheguei à fala com o autor e ele mostrou-se inamovível – não desmentia nada: se D. Afonso Henriques nasceu em 1109, não pode ter nascido em Guimarães - nesse ano a corte estava em Coimbra. Naquela época, não havia as «barrigas de aluguer» e os filhos nasciam onde as mães estavam. A administração apertava comigo – e lá estava este vosso amigo entalado entre o ardor do regionalismo vimaranense e a justificada teimosia da ciência histórica. Não vou fazer do episódio um romance policial. Vou já revelar como é que o imbróglio se resolveu porque o que quero contar é outra história. Um historiador com grande êxito televisivo e editorial, colaborador da editora, foi por esses dias a Guimarães fazer uma palestra à Sociedade Martins Sarmento. Um avultado grupo de vimaranenses, estudantes na sua maioria, julgando-o co-responsável pelo furto do fundador à Cidade-Berço, fez uma manifestação em frente do hotel onde estava hospedado. Teve de sair escoltado pela polícia.
A sociedade encheu-se para o ouvir e o conceituado historiador, depois de ter explicado que não tinha dirigido o tal dicionário, tranquilizou as belicosa hostes - «D. Afonso Henriques nasceu em Guimarães! Não há dúvidas a esse respeito!». Uma estrondosa ovação, que se repetiu depois ao longo da palestra. Ele que entrara protegido pela polícia, saiu quase aos ombros dos manifestantes. E a zanga de Guimarães desvaneceu-se: o que eram um dicionário e um texto de um professor desconhecido comparados com a opinião de um homem tão famoso e que falava na televisão? No regresso de Guimarães, o historiador almoçou comigo e quando lhe perguntei que elementos tinha ele para contrapor aos alicerçados argumentos do medievalista, respondeu-me: «Nenhuns! Só os do bom senso». Fiquei um bocado desconcertado. Mas ele consolidou a sua tese - «O que interessa onde é que o D. Afonso I nasceu realmente? E se não nasceu em 1109? Porque se põe em causa o lugar e não a data?» – e completou - «Há coisas em que não se pode mexer. Esta é uma delas. D. Afonso I nasceu em Guimarães. Assunto arrumado!». Dei-lhe razão, até porque me convinha: assunto arrumado.
O professor José Mattoso, na sua biografia sobre o primeiro rei de Portugal narra este acontecimento, com imprecisões, nomeadamente quanto ao nome da editora detentora dos direitos da obra, mas isso não tem importância. E não esclarece de forma peremptória onde nasceu o filho da bastarda de Afonso VI de Leão. Mais recentemente, surgiu a hipótese de o local do nascimento de Afonso I ser Viseu, hipótese secundada por alguns historiadores. Não sei como reagiu desta vez a «cidade-berço»… Mas voltemos à questão.
Estava já a esquecer o caso, quando me telefonam da RTP, pedindo-me para ir a um programa da tarde, dirigido pelo Raul Durão, falar no assunto do D. Afonso Henriques. E disseram-me o dia e a hora. Procurei escusar-me, mas um administrador, com o qual estava reunido quando do telefonema, insistiu para que fosse. Era uma boa oportunidade, disse-me, para esclarecer a posição da editora. Quando me prontifiquei a ir, disse que levaria comigo o professor, o medievalista: eu falaria sobre a prática comum da editora em matéria de escrúpulo científico e ele esclareceria a questão histórica.
Da RTP concordaram. Foi numa segunda-feira. Passei pela Nova, encontrei-me com o professor e fomos até ali perto, à 5 de Outubro, de onde era emitido o programa. Eu tinha estudado alguma coisa sobre o tema, porque embora não fosse essa a área sobre a qual iria falar, não queria estar «às escuras». Lembro-me que estive no domingo de manhã no Limo Verde da Parede, onde na altura morava, lendo e anotando, nas fotocópias de que me munira, o que me parecia interessante. Pelo meio, para descansar do tema afonsino, li num suplemento do DN um pequeno texto do Jorge Luis Borges, onde o genial escritor argentino, analisava com mestria as similitudes entre duas canções urbanas – o tango e o fado.
Lá marchámos, o professor e eu, para os estúdios, combinando estratégias pelo caminho. Fomos, como é hábito, recebidos por uma secretária que nos levou à maquilhagem e, enfim, lá chegou o momento de entráramos no estúdio e de nos sentarmos em frente das câmaras, enquanto passavam um bloco de publicidade. Primeira surpresa: não era o Raul Durão que nos ia entrevistar, mas sim Luís de Castro. O Durão estava de férias, esclareceu Castro. Por nós não fazia diferença. Diferença fez, quando a entrevista começou a ser dada em directo e vimos no teleponto aparecer a primeira pergunta, mais ou menos isto: «No vosso dicionário, na entrada Fado, diz-se que a chamada canção nacional teve origem no Brasil. É verdade?» Olhar de pânico entre mim e o professor. Fado? Resolvi avançar e conceder tempo ao ilustre académico para rebobinar o cérebro. Às vezes nem sei como continuo a ser um ateu empedernido: então não é que o tetxtozinho do cego prodigioso, que li nos intervalos da consulta às fotocópias, estava quase todo na minha memória?
A questão do fado arrumei-a com uma frase – É verdade. Terá nascido de uma música popular que existia no Brasil no início do século XIX, proveniente de danças trazidas de Angola pelos escravos e que podiam ser acompanhadas por canto, conjunto a que se chamava fado; música que a corte de D. João Vi trouxe do Brasil, quando regressou a Lisboa. E depois acrescentei: «Segundo Jorge Luis Borges… e, zás, debitei o sumo do texto lido na véspera. Entretanto o professor teve tempo para recuperar do susto e fez uma intervenção muito interessante sobre as eventuais raízes árabes da canção, que teria passado a sua influência às famosas endechas e daí vindo até aos nossos dias ligado à tal dança chegada dos trópicos. Foi canja!
A entrevista acabou e a secretária veio dizer-nos que tinha ficado fascinada com o tínhamos dito sobre o fado. A senhora foi tão simpática que nem tivemos coragem para protestar muito pelo qui pro quo. Apesar de tudo, enquanto nos acompanhava até à saída, queixámo-nos – «então convidam-nos para falar sobre o D. Afonso Henriques e entrevistam-nos sobre o fado? A senhora desvalorizou. «- Ah sim? O Raul foi de férias e se calhar esqueceram-se de dar as notas que ele deixou ao Luís. São coisas que acontecem. E os senhores saíram-se tão bem…» - fiquei com a ideia, talvez injusta, de que fora ela quem se esquecera de dar os tais apontamentos ao Luís de Castro.
*
Nunca mais pensei no assunto das eventuais raízes árabes do fado. No entanto, ao escutar esta interpretação de «Meu Fado», por Mariza e Miguel Poveda, os requebros de flamenco do cantor catalão levaram a eu me lembrasse da hipótese levantada pelo Professor – origens mouras, herança da cultura do Al-Andalus? Não é tão improvável como á primeira vista parece.
Moral das histórias – nunca se pode dar nada por adquirido: O “Fundador” nasceu em Guimarães, Coimbra ou Viseu? O fado veio de África (via Brasil) ou os muçulmanos deixaram-no cá ficar? Para complicar, há quem fale na hipótese da origem celta… É rebuscado, mas quem sabe?
Enquanto meditamos, ouçamos a Mariza e o Miguel Poveda - «Meu Fado»:
Na Baixa de Lisboa há imensos engraxadores de sapatos, porque engraxador de ego e de lugares bem pagos há muitos mais, todos eles com características bem distintas.
Há o engraxador ali à porta da ginjinha, é só sair reconfortado, com a "ginjinha com elas" e engraxar os sapatos depois, é um ritual de dezenas de anos que também vai bem com a ida ao teatro ou aos espectáculos do Coliseu.
Há também o engraxador junto do Rock Café, nos restauradores, com chapéu de sol, televisão e rádio, tudo à vontade do freguês que recostado em cadeira "rócócó" faz um figurão, antes de caminhar para o "Solar dos Presuntos" onde encontrará a cozinha minhota em todo o seu esplendor.
Temos ainda o engraxador "móvel" que podemos encontrar num qualquer café, serviços mínimos, é engraxar e andar para outra esplanada, ferramentas não mais que a caixa e " tem que ser tinta vermelha que a preta já acabou" e "ala" que este já está.
Mas há outros interessantíssimos como Zeca, "o fadista", antigo cantador de fados das melhores casas de Lisboa, discos gravados que rodam sem cessar no seu equipamento último modelo, não vá o som trair aquela voz. À tarde troca a caixa da graxa pela viola e junta-se-lhe a "Amélia cantadeira", já só lhe resta o xaile das noites de glória.
Nos Restauradores, à frente dos CTT ( querem tirar os CTT dali, daquele sítio sem igual, para mais uma negociata com um prédio igual a tantos outros ali no Parque das nações) há o único engraxador de todo o mundo que passa o santo dia a ler. Tem meia dúzia de livros em exposição (nunca o vi vender nenhum) e lê sem cessar, para o cliente ter o serviço precisa de tropeçar nele porque de outra maneira o homem está tão absorto que não ouve ninguém, cachimbo permanentemente na boca, barba de intelectual, boné à maneira, e o nosso leitor compulsivo, é o engraxador que menos factura, estou em crer que só começa a engraxar quando se lhe acabarem os livros. Pois, um dia já bem afastado, apanhei-o sem livros e lá o convenci a engraxar-me os sapatos, e meti conversa, o homem é uma enciclopédia, estávamos naquilo, não havia graxa nenhuma, ele para me explicar os livros e os autores, tinha que ter os olhos postos em mim, e estávamos naquela, conversa para aqui, livros para acolá, até que chega um par de "alemães" que me pediram para tirar uma fotografia, ao acto de engraxar os sapatos..
Olhei para o meu amigo amante de livros e ele com um sorriso condescendente disse que sim, e eu para "os alemães", uma só fotografia não mas se forem duas, sim senhor, levem lá o "very typical", e eles logo que sim, ainda era melhor. E, em pose, lá nos deixamos fotografar com o meu amigo na posição de engraxador, a seguir trocamos, fui eu sentar-me na caixa e ele em pé a estender-me os sapatos mais bem engraxados que eu já vira, e "os alemães" de sorriso amarelo lá tiraram a "very typical" fotografia de dois malucos que tinham encontrado ao sol de Lisboa.
Aqui há tempos, contei como, ao traduzir um livro do grande escritor argentino Ernesto Sábato, («Heróis e Túmulos») me vi em palpos de aranha. Estudara língua e literatura castelhana, mas a cada passo surgiam vocábulos que desconhecia e que os dicionários, incluindo o da Real Academia, não registavam. Escrevi então ao Sábato dando-lhe conta da minha dificuldade e ele, muito amavelmente, enviou-me um extenso glossário com termos argentinos e, inclusivamente com modismos «porteños», ou seja, bueno-airenses.
Nesta série de textos que tenho vindo a dedicar ao fado e ao tango – na demanda de paralelismos entre estes dois géneros de canção urbana – vou hoje abrir um parêntesis para vos falar de uma composição de Carlos Gardel em que, para além do fatalismo que irmana o tango com o fado – surge um desses particularismos do castelhano que se fala na Argentina - a começar pelo título, Yira, Yira (pronunciado de forma semelhante á do português) – em castelhano dir-se-ia «Gira, gira», pronunciando-se como fonema fricativo velar surdo – velar, por ser articulado junto do véu palatino (os portugueses quando querem falar portunhol, resolvem o problema, transformando o «g» ou o «j» em «r» – exemplo – rúlio iglésias). Na letra do tango cantado pelo Gardel, existem casos de argot porteño semelhantes aos que me saíram ao caminho quando traduzia Sábato. Mas neste caso, se não perceberem todas as palavras, perceberão o sentido que é profundamente singelo e tristemente verdadeiro – quando se cai em desgraça não se pode contar com ninguém. Cair na miséria é considerado um crime. Bater às portas pedindo ajuda, trabalho, calor humano, é inútil. Até amigos, a quem se deu a mão e se ajudou quando precisaram, se afastam incomodados. Um necessitado é uma pessoa incómoda. – um desgraçado é como um leproso. Os amigos, afinal, são só para (as boas) ocasiões. Ora leiam e depois ouçam. A música e a letra são de Enrique Santos Discépolo (1901-1951). Há uma interpretação razoável do Julio Iglesias, mas não há nada como ouvi-la na voz de Carlos Gardel.
Cuando la suerte qu’es grela fayando y fayando te largue parao… Cuando estés bien en la vía, sin rumbo, desesperao… Cuando no tengas ni fe, ni yerba de ayer secándose al sol… Cuando rajés los tamangos buscando este mango que te haga morfar… La indiferencia del mundo que es sordo y es mudo recién sentirás. Verás que todo es mentira verás que nada es amor que al mundo nada le importa Yira… Yira… Aunque te quiebre la vida, aunque te muerda un dolor, no esperes nunca una ayuda, ni una mano, ni un favor. Cuando estén secas las pilas de todos los timbres que vos apretás, buscando un pecho fraterno para morir abrazao… Cuando te dejen tirao, después de cinchar, lo mismo que a mí… Cuando manyés que a tu lado se prueban la ropa que vas a dejar… te acordarás de este otario que un día, cansado, se puso a ladrar. Verás que todo es mentira verás que nada es amor que al mundo nada le importa Yira… Yira…
Há alturas em que me sinto (creio que acontece com todos), como disse Discepolín, na pele do otário que um dia, cansado, se pôs a ladrar. Alturas em que me apetece mesmo uivar.
Em Abril de 1982, assisti na Gulbenkian à exibição de «Cinco Tangos», executada pelo grupo de Ballet da Fundação. A música era de Astor Piazzolla, o grande compositor argentino, mago do bandoneón. Mostro aqui , mais abaixo, um vídeo da mesma peça interpretada pela Companhia Nacional de Bailado. Lindíssima a música de Piazzolla e muito boa a interpretação.
Várias vozes se fizeram na altura ouvir, chamando a atenção das afinidades entre o tango e o fado. Entre elas a de Jorge Luis Borges, num texto que não o consegui encontrar, embora saiba que foi publicado num suplemento do DN num domingo de há muitos anos.
Nessa crónica anterior, focava o fenómeno da canção urbana, falando das tais similitudes entre o fado e o tango. Quando recordava o pouco que se sabe sobre as obscuras origens da chamada «canção nacional», sugeri entre as hipóteses que os especialistas têm vindo a explorar, aquela que é a mais comummente aceite – a de que o fado nos chegou nos barcos de torna-viagem que trouxeram de regresso a corte de D. João VI que, durante as invasões francesas, esteve refugiada no Rio de Janeiro, para ali tendo transferido a capital do reino.
Recapitulando: segundo essa teoria, o fado teria sido criado a partir de uma dança muito popular no Brasil (no início do século XIX), dança em que se misturavam elementos de danças populares portuguesas e de outras trazidas de Angola pelos escravos. Era um bailado que podia ser acompanhado de canto e a que as gentes chamavam «fado». Já em Portugal, este fado brasileiro e o lundum, foram-se mutuamente influenciando até se fundirem, dando lugar àquilo que veio a ser a canção nacional.
Foi um fenómeno explosivo, rápido que, como um incêndio de Verão, viajou da corte aos bairros populares e a partir destes se espalhou por todo o País. Hoje, o fado já não é lisboeta, canta-se, e muito bem, no Porto (de onde têm vindo excelentes intérpretes, como a magnífica Maria da Fé), no Ribatejo, onde adquiriu ritmo e sonoridade própria que, quanto a mim, leigo no assunto, nada tem a ver com o fado. Terá desencadeado o fenómeno do fado coimbrão, mais ligado à música beirã. Também nada tem a ver com o fado de que tenho estado a falar.
É a canção nacional. Chama-se fado, fatum, destino… Começou nos saraus do Palácio de Queluz, viajou para as alfurjas, lupanares e tabernas da Mouraria, e agora com uma nova estirpe de cantores e cantoras aristocratas parece querer voltar aos salões. O curioso é que no princípio do século XX, antes de ter completado cem anos, já o fado era considerado uma canção tradicional. A «tradição» dos touros de morte em Barrancos tem cerca de oitenta anos e essa barbaridade é defendida nessa base – é uma herança cultural do povo barranquenho. Estranho país o nosso, fundado há quase nove séculos e onde as falsas tradições pegam de estaca em duas ou três gerações. É melhor não falar de tourada e continuar com o fado. Voltemos às suas origens.
Estava a falar do lundum, ou lundu. Há quem defenda que a sua proveniência é da África Ocidental e que teria chegado a Portugal, vindo de Cabo Verde, com as primeiras levas de escravos, ainda no século XV. Há a tal tese, mais difundida, da proveniência angolana. Indiscutível é a mistura de ritmos e cadências africanas e europeias, integrando os ritmos ibéricos, jotas, fandangos, e corridinhos, com o estalar de dedos a marcar compassos. Como exemplo, deixo uma excelente interpretação de Edu Miranda e do seu trio na execução de um fado em ritmo tropical. Como podemos apreciar, não existe qualquer espécie de incompatibilidade. Será que o fado original seria (mais ou menos) assim?
Pergunto a quem sabe, se mornas, coladeras, fado, samba, lundum, maxixe, não terão origens comuns. De notar que, nesta matéria, só faço perguntas. Não estou a ensinar, estou a tentar aprender. Mensagens que meto em garrafas e atiro ao oceano da blogosfera – quem sabe se um especialista, um dia, não dará resposta a estas questões?
Não esqueçamos que estou a equacionar afinidades entre fado e tango, de uma forma algo caótica, ao correr do pensamento. Vamos ouvir e ver um vídeo, uma tentativa de fusão de tango e de fado, interpretada por Beatriz Ayas e pelos Portubayres. É um tema curioso, este o da similitude entre dois tipos de música urbana – a portuguesa e a argentino-uruguaia. Não ficarei por aqui.
Nesta bela gravura de Rugendas(1802-1858), o pintor alemão que durante três anos viajou pelo Brasil, recolhendo preciosos testemunhos dos costumes populares. Nesta imagem, vemos escravos dançando o lundum.
Que em dois continentes separados por um oceano, tenham nascido duas canções urbanas com sonoridades idênticas, eivadas de fatalismo, não será estranha coincidência. O fado e o tango surgiram em cidades portuárias, onde se chega e parte – “Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!”, afirma-nos Álvaro de Campos. Jorge Luis Borges, num texto publicado há anos atrás no “Diário de Notícias”, estabelecia curiosos paralelismos entre ambos, dizendo salvo erro que o fado fazia parte da genealogia do tango. Não consegui encontrar esse texto, ao qual, aliás, ainda me voltarei a referir, pois foi de uma importância capital numa outra história.
Quanto às origens do fado, apenas vou lembrar o que se diz. Há a tese mais vulgarizada de que, quando a Corte de D.João VI regressou, trouxe consigo uma dança em voga no Rio de Janeiro a que se chamava «Fado», inspirada no lundum, e que podia ser acompanhada por canto. Na realidade, os primeiros registos escritos sobre o tema começaram a surgir no século XIX, mais na segunda metade. Mas foi uma inovação que depressa se converteu em tradição. No «Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses e Brasileiros», organizado por Camilo Castelo Branco, inclui-se um poema de Alexandre da Conceição – sobre um tal Marialva que «dançava o fado à noite em tabernas» - referência que acentua a tese da dança vinda do Brasil. Encontramos referências aos fado e aos fadistas, por exemplo, nos romances de Eça de Queirós. Outra referência cultural, o famoso quadro de José Malhoa, data de 1910.
Nestes primeiros tempos, o fado surgia como fenómeno tipicamente lisboeta. As grandes fadistas do século XIX, a lendária Maria Severa (1820-1846), nasceu e morreu em Lisboa, e Maria Vitória (1891-1915), creio que também. Esta última cantava nas revistas e celebrizou o «Fado do 31», mais tarde interpretado por Estevão Amarante.
Todos estes dados apontam para uma tradição, se assim se pode chamar, que se instalou rapidamente e que, como planta trepadeira, se enroscou no fatalismo da alma portuguesa e no miserabilismo inerente à pobreza citadina, com ele se confundiu, e às vezes pareceu mesmo estar na sua origem, ser causa e não efeito. Não esqueçamos que «fado» vem do latim «fatum», ou seja, «destino». Em menos de cem anos o fado (cantado) se espalhou pelo país e se transformou em canção nacional. Para além destas e doutras raízes mais remotas, o fenómeno Amália Rodrigues ajudou a enquistar o fado no tecido da alma popular, elevando-o rapidamente à categoria de tradição.
Mas, além desta tese, há outras – teria vindo de reminiscências das melopeias árabes ou, como também há quem defenda, seria uma herança dos celtas. Estas duas últimas parecem-me teorias rebuscadas. Como seria possível o fado vir de tempos tão remotos e não existir, nas baixas e tordiões, por exemplo, ou noutro tipo de canção popular dos séculos que mediaram entre a herança céltica ou árabe e o século XIX, um fio condutor, um elo, que ligue esses vestígios?
Já o fado de Coimbra, com uma genealogia diferente, parece estar mais ligado às baladas tradicionais e, mais especificamente, à música beirã. Embora também seja um fenómeno relativamente recente. Os cantores Augusto Hilário, António Menano e Edmundo Bettencourt, bem como o grande guitarrista Artur Paredes, pai de Carlos Paredes, nomes maiores da canção coimbrã, são tudo gente do século XX.
O tango é ainda mais recente do que o fado. Foi buscar as suas origens à «habanera» (de La Habana). Desta dança terão surgido o maxixe brasileiro e o tango argentino e uruguaio. A dança começou por se chamar «tango criollo» simplificando-se depois para tango. É já no século XX que se instala nos dois lados do rio La Plata, em Buenos Aires e em Montevideu. Como canção encontra em Carlos Gardel o seu mais emblemático intérprete.
A relação fado/tango era evidente – canções nostálgicas, fatalistas. Amália disse ter encontrado a sua voz, cantando os tangos de Gardel. Agora é uma argentina, María Lavalle, que, inspirando-se em Amália, volta a acentuar a relação entre as duas formas musicais. Há meses, apresentou no Teatro Calderón de Madrid o seu espectáculo «Tú que puedes, vuélvete», fundindo o tango puro com o fado puro, misturando músicos argentinos e portugueses. Coisa que a nossa Mísia já tinha feito, para não falar no fado tango de Amália, «Cansaço», agora interpretado por Camané. Basta de divagações - vamos lá escutar María Lavalle. Silêncio, que se vai cantar o tango.
Irei continuar a falar deste tema, dsta estranha cumplicidade entre fado e tango. Num dos próximos dias, voltarei ao assunto.
António Chainho (Santiago do Cacém, 1938) é aquilo que, usando um chavão, se pode considerar um nome incontornável da nossa música tradicional, quer como executante exímio de guitarra portuguesa, quer como compositor. Na passada segunda-feira, dia 28 de Junho, apresentou na FNAC de Almada uma nova etapa do seu projecto LisGoa. Este vídeo gravado durante esse espectáculo permite-nos ouvir a cantora luso - goesa Rubi Machado e a fadista portuguesa Isabel de Noronha.
Síntese da música goesa com o fado, este projecto do mestre António Chainho, com temas cantados em hindi, em concanim (dialecto de Goa) e em português é uma ponte entre o universo lusófono e as raízes culturais do povo goês, tão esquecido e abandonado à sua sorte. O Terreiro da Lusofonia põe passadeira vermelha para António Chainho, para os seus músicos, e para esta sua iniciativa cultural.