Eva Cruz Conta a lenda...
(Adão Cruz)
Já que ando em maré de lendas, aproveito esta para fazer o meu comentário ao resultado das eleições.
Gostaria de a fantasiar, mas a realidade não admite fantasias.
Conta a lenda que numa aldeia longínqua, no sopé do monte, onde o sol nasce cedo e cedo se deita, quando os animais falavam, os galos cantavam assim: Aqui passa-se fome, aqui passa-se fome!
Noutro lugar em frente, apesar de mais soalheiro e mais abrigado, onde os animais julgavam haver mais cereais ou ervas para comer, os galos respondiam com uma cantilena que ia dar ao mesmo: Aqui também, aqui também.
Perto havia uma azenha, movida pelas águas do ribeiro que corria no pequeno vale que dividia os dois lugares. O moinho compreendia a lamentação dos galos. Por falta de cereal, não caía, há muito, um grão da moega sobre as mós e debalde elas chiavam a moer em falso: Sempre assim foi, sempre assim foi.
Ora, isto era no tempo em que os animais falavam pelos homens, e os galos têm, ao que parece, menos miolos.
Gosto muito dos moinhos e retenho no ouvido a canção de água e pedra da minha infância mas gostava de escrever na flor da farinha: Isto há-de mudar, isto há-de mudar.
Na flor da farinha do seu imaginário, partilhando do mesmo sonho, o meu irmão, o Adão, escreveu, um dia, este lindo poema:
(José Magalhães)
Se eu soubesse dar às palavras que tenho dentro de mim o cantar deste regato
Se entre as pedras do meu leito saltitassem estas águas que me fizeram criança
Se fosse menino este chão que tenho dentro de mim numa caixinha de esperança
E de sonho fosse o moinho que mói o trigo da ilusão
não queria outro moinho para a farinha do meu pão.
De repente, as velhas mós começaram a rolar e a farinha a cair. Levadas pelo tempo e pelo vento as mãos pequeninas lá voltaram a escrever: Isto há-de mudar, isto há-de mudar.
Eva Cruz A pedra que esconde o tesouro no fundo do rio
(lenda)
(José Magalhães)
Desde tempos remotos os rios condicionaram o povoamento das terras.
O rio Caima, um dos numerosos cursos de água da bacia do Vouga, serpenteando por entre campos verdejantes, fértil de sol e poesia, não escapou à cobiça de conquistadores e povoadores. Nas alturas, nas voltas e reviravoltas dos rios, ou perto das fontes, construíram esses povos fortificações, que têm o nome de castros. Também junto ao rio Caima se ergueu um castro ou, “crasto”, em linguagem popular.
O rio foi sempre, neste vale, a mãe que deu pão e vinho, que viu nadar e brincar os meninos no seu leito, que formou ilhas de seixos brancos e amoras negras, e deixou lavadeiras esfregar as roupas na pedra gasta dos seus açudes e corar a roupa branca na erva e nos juncos das suas margens.
O rio foi também fonte de histórias e lendas, que se erguiam das sombras dos carvalhos nos poços mais fundos em noites de luar, ou das fragas da furna, que libertavam o eco profundo do cachoar das águas. É a lenda da pedra fantasma ou da pedra dos fantasmas que ainda hoje ladeia o caminho estreito coberto de silvas, que leva à ponte de Coronados na Varziela , à espera de quem passa e de quem se lembre de pôr a mão em concha atrás da orelha para ouvir sair o rio das suas entranhas.
É o caso de tantas outras pequenas histórias e lendas que eram contadas à lareira nas noites longas e frias do Inverno e faziam as delícias ou o terror das crianças de muitas gerações passadas. Entre elas estão histórias de mouras encantadas, a da grade de ouro e a do tesouro no fundo do rio.
Constava entre as pessoas que esses povos milenares, escorraçados pelos donos do vale, haviam lançado, na sua debandada, pedregulhos no rio para o represar e inundar os campos circundantes. Entre os pedregulhos jazia uma pedra tão pesada e tão funda, que não havia força humana que a levantasse. Diziam que, como a pedra de um túmulo, escondia um grande tesouro.
Toda a população do vale e todos os que viviam ao longo das margens do rio cobiçavam esse misterioso tesouro e cogitavam na forma de o desenterrar das profundezas das águas. Constava até, meio em segredo, que outrora houvera gente que conseguira mergulhar e ver uma inscrição gravada na pedra que dizia: Quem me conseguir virar, grande fortuna há de achar. E estes secretos dizeres incendiavam a cobiça e a curiosidade dos aldeões. Como conseguiram chegar à tradução da frase, não se adivinha. Alguns nem saberiam ler, tão-pouco sabiam a sua língua, quanto mais a dos outros! Mas a imaginação e a fantasia têm uma linguagem que vai ao encontro do que se anseia.
Assim viveram gerações sobre gerações alimentando as histórias de tesouros escondidos nos montes e nos fundos dos rios, tesouros que tinham pertencido a mouras e princesas encantadas que por ali tinham vivido e reinado.
Um dia um lavrador, que tinha uma possante junta de bois, engendrou, em segredo, com outros dois lavradores mais abastados, uma forma de chegar ao fundo do rio e de erguer a pedra que há séculos ali jazia e tapava o ambicionado tesouro. Numa madrugada de Verão, quando as águas do rio correm mais baixas e serenas, partiram, sem ninguém dar por ela, com a junta de bois para a beira do rio. Levaram consigo um pequeno-almoço de garfo, rojões e um bom naco de broa para dar força ao corpo e um garrafão de vinho verde tinto para dar força ao espírito.
Ali chegados, o luar de Agosto iluminava as águas fundas do poço e o rio espelhava como bandeja de prata .Todo ele era um tesouro. E o lavrador apontava o dedo para onde lhe parecia enxergar a milenária pedra que chispava, aos seus olhos enfeitiçados, faíscas de ouro.” Não há dúvida”, todos diziam,”ali só pode estar um grande tesouro, grande tesouro ali há de estar, vamos sair daqui ricos. Não precisaremos de trabalhar mais as terras.” Até já tinham destinado doar os seus campos e a junta de bois a alguns amigos mais necessitados.
Um dos lavradores, o mais novo, hábil nas artes de nadar por entre os pedregulhos do rio, mergulhou nas águas temperadas da madrugada levando consigo a ponta de uma corda que antes prendera a um ferro grosso espetado nas areias da margem. Lá bem no fundo do rio, aproveitando um vão entre a pedra e o leito, conseguiu passá-la por baixo da pedra em duas ou três voltas, puxando-a depois para fora de água e amarrando-a com vários nós ao cabresto da junta de bois.
“Anda Vermelho, puxa boi Alvo!” E assim, obedecendo mansamente à voz do dono, como tão bem faz o boi desde que é mouro de trabalho, o “Vermelho “ e o “Alvo” ergueram e arrastaram penosamente a pedra para a margem. Nesta manobra a pedra voltou-se, mostrando a face há tantos séculos escondida.
O lavrador mais novo saltou das águas. Gerou-se no rio um redemoinho escuro de água e lama que nada deixava ver. Os lavradores esperaram entre mil ânsias que o rio acalmasse e as águas ficassem límpidas, deixando que nas suas entranhas os seixos brancos brilhassem com o luar.
Os olhos espantados dos lavradores não queriam acreditar! Não havia ouro nem prata!!! Apenas um buraco negro e fundo como o tempo e o nada! Olharam para a pedra voltada do avesso e de olhos mais negros e fundos do que o buraco leram, mais para dentro do que para fora, a inscrição gravada na outra face da pedra: Fizeram bem em me virar, que deste lado já não podia estar.
Reza ainda a lenda que os lavradores, desiludidos, empurraram furiosamente a pedra, restituindo-a ao rio, deixando voltada para cima a primeira inscrição.
Diz também a lenda que, em noites de luar, quando o rio vai baixo, ela ainda lá está para quem a quiser ver e acreditar que esconde um tesouro no fundo do rio.
Eva Cruz Folha de calendário
(ilustração de Adão Cruz)
Folha de calendário
há muito passada
regressa na cor dourada
das uvas e das maçãs
na nostalgia da trovoada
no ar que arrefece.
Grasnam patos
no tanque lodoso
irrequietos na água
em pleno gozo.
Cortam pássaros
Em voos rasantes
Os campos tristes
Sem ninhos de amantes.
No bico restos da colheita.
Tique-taque do relógio
Silêncio que o tempo rasgou
na folha do calendário que passou.
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Colhi um cravo vermelho
Quando Abril era criança
Reguei-o com água benta
E o sol da minha esperança.
Colhi um cravo vermelho
Tudo fiz p’ra que vivesse
Toda a vida lhe dei vida
P´ra que Abril não morresse.
Sempre viveu no meu peito
E no coração de muitos mil
Não murcha nos ventos de Outono
Não perde a cor em Novembro
E sempre renasce em Abril.
Ao mundo eu quero pedir
Que o não deixe secar
Nesta vida estiolada.
Sem cravo vermelho de Abril
A vida não vale nada.
(ilustração de Adão Cruz)
Eva Cruz A Arte
Quem somos nós para dizer o que é a arte? Constante invenção de um permanente epítome da vida? Criação de formas da actividade humana dentro de uma estética de formatividade? A descoberta da artisticidade intrínseca que existe dentro de cada um de nós? Intuição do sentimento? Missão e dever do homem na investigação apaixonada da disposição ética das formas?
Para além do poder emotivo e criativo, a arte, em termos sociais e pedagógicos tem para nós uma finalidade formativa muito mais abrangente que o "restrito" conceito de "arte pela arte". Sabemos que, filosoficamente, este "restrito" tem ambições de absoluto, o que se nos afigura ser, a um tempo fascinante e perigoso, na medida em que podem desaparecer as fronteiras pessoalistas e a penetração da obra na sociedade como expressão cultural e humana do criador.
Sabemos que poderão ser consideradas prosaicas dentro da poética de muitos artistas, estas nossas considerações, mas, dentro do Ensino, não conseguimos dissociar a arte das nossas concepções pedagógicas. Assim, choca-nos o individualismo, a parcialidade emotiva, o elitismo tantas vezes infundado. Pelo contrário, inclinamo-nos para uma luta de plenitude que inclua a humanidade como centro de cultura, para uma luta de universalidade que abrace o mundo de forma humana, entendível, solidária. Somos dos que pensam que a arte, sem deixar de perseguir a pureza, pode constituir um elo entre o indivíduo, a vida e a comunidade. Conscientes de que, quando a reflexão e o juízo se desenvolvem, a arte pode morrer, pensamos, contudo, que o pensamento realizado no interior da actuação formante, pode dilatar-lhe o conteúdo e a memória. O reflexo e a interpenetração da obra na humanidade não a desmerecem, antes podem dar-lhe a riqueza que ela muitas vezes procura e não encontra no formalismo "estéril" de conceitos geradores de equívocos.
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(ilustração de Adão Cruz)
Eva Cruz
Olha-me o lume na lareira adormecida.
Fogo e música misturam-se em emoções,
em turbilhões e saudade de ilusões.
Yesterday em labaredas de vida.
Ardeu a paixão, sobrou das cinzas a ternura
que teima atear o lume até ao fim.
Autumn leaves caem dentro de mim.
Apaga-se o fogo na lareira escurecida.
Renasce das cinzas a love until the end oftime,
amor fonte de vida.
(in Era Uma Vez em Outubro, Edições Engenho)
Gosto particularmente do mês de Janeiro. Talvez por ser em Janeiro que iniciei a minha vida. Os dias começam a crescer, o sol despede-se de nós mais tarde, os pequenos bolbos e raízes deitam cá para fora os primeiros rebentos e as primeiras folhas. Aqui e além atrevem-se algumas flores a sorrir.
Na lareira crepitava a fogueira, um lume de vides ateado por algum tição de Natal que por lá restou. Saboreava umas maçãzinhas assadas, pequeninas, rafeiras, das últimas da macieira. Sem ponta de açúcar, pareciam feitas de mel. Fiz um cacau quente com limão e canela que soube à minha mãe. Acabei de ler o livro "Caim" de Saramago e confirmei a genialidade do seu autor, a profundidade da sua simplicidade e ironia.
Uma tarde de Domingo perfeita.
Recordei Brecht , ao gosto dos amigos do blog e lembrado há dias pela minha boa amiga Augusta Clara.
Vergnügungen
Der erste Blick aus dem Fenster am Morgen
Das wiedergefundene alte Buch
Begeisterte Gesichter
Schnee, der Wechsel der Jahreszeiten
Die Zeitung
Der Hund
Die Dialektik
Duschen,Schwimmen
Alte Musik
Bequeme Schuhe
Begreifen
Neue Musik
Schreiben, Pflanzen
Reisen
Singen
Freundlich sein.
B. Brecht
Prazeres
O primeiro olhar pela janela fora de manhã
O velho livro reencontrado
Caras alegres
Neve, o mudar das estações
O jornal
O cão
A dialéctica
Tomar banho, nadar
A velha música
Sapatos cómodos
Compreender
A nova música
Escrever, plantar
Viajar
Cantar
Ser amigo.
Que Brecht me perdoe a tradução, se lhe falseei a simplicidade.
Eva Cruz
A minha mãe morreu com 101 anos. Teria hoje 103 se fosse viva.
Viveu de recordações. Mesmo muito velhinha contava, cantava, fazia rimas e versos e numa semi-lucidez foi feliz e fez os outros felizes até ao fim.
Nas suas recordações, o Porto, onde viveu a sua mocidade, estava sempre vivo.
Retirei de um livro que escrevi sobre a sua vida e que não é nada mais nada menos do que um baú de recordações que tive a coragem de abrir, este texto:
Aurora passou toda a mocidade na Quinta dos Três Castelos.
» Foram os tempos mais lindos da minha vida. Tive uma novice como ninguém. À noite recebíamos senhoras e senhores da alta roda do Porto. Até um senhor francês, Monsieur Valladier, mais tarde professor da tua mãe. Vinha todas as noites ensinar francês à minha prima. Íamos também ao cinema e ao teatro Sá da Bandeira, antes Príncipe Real. Os meus tios nunca saíam connosco. Acompanhavam-nos o meu primo e a esposa. Vi o Amor de Perdição, as cartas de Simão e Teresa lançadas ao mar por Mariana. A minha prima Laurindinha até chorou. Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão!.
Na rua Trinta e Um de Janeiro havia, antes de eu estar no Porto, o teatro Baquet que
ardeu por completo. Um dia, contavam os meus tios, estavam preparados uns amigos, pais e filha, para irem ao teatro. A menina mostrou-se indisposta e foi uma desmancha-prazeres. Naquela noite, apesar da insistência dos pais, ficaram em casa, e nessa mesma noite deu-se uma das maiores tragédias da cidade do Porto. O teatro Baquet ardeu por completo e lá morreu muita gente queimada. Quando ao outro dia se soube a notícia, os pais beijaram a filha, de contentes. Vê lá tu, ela assim salvou a vida aos três. A criança adivinhou a tragédia que se ia dar.
* És muito tolinha, avó, a menina não adivinhou nada, calhou assim, avó, calhou assim.
» Há coisas que ninguém sabe explicar.
* E tu sabes, avó?
» Não sei tudo mas há coisas que tu não sabes e eu sei. Está mas é caladinho e não digas a ninguém que vais daqui!
O teatro Baquet, na Rua Trinta e Um de Janeiro foi construído em meados do século XIX e passados vinte anos, um terrível incêndio reduziu-o, realmente, a cinzas e destroços. Morreram cerca de duas centenas de pessoas.
O incêndio começou no palco. Uma bambolina foi incendiada por uma gambiarra. Um actor ainda gritou para cortarem uma corda da bambolina mas a desorientação foi tal que o incêndio alastrou e tomou proporções desastrosas. No alvoroço, os espectadores correram para as portas de saída que, por azar, eram de abrir para dentro. No desespero esmagaram-se uns contra os outros. Foram dadas ordens para desligar o gás, como medida de segurança, mas o escuro aumentou o pânico e só o clarão sinistro do incêndio passou a iluminar aquele inferno. Foi um tal horror que pôs de luto a cidade inteira, e durante gerações o Porto não esqueceu a tragédia do incêndio do teatro Baquet. Aurora lembra-se de uns versos que correram na época, mas lamentava não os saber de cor, ela que tanto gostava de rimas e a propósito de tudo ou nada rimava.
Na verdade, entre os muitos textos escritos nos jornais da época, alguns poemas do jornal Charivari mostram o sentimento público perante tal tragédia:
É triste a nossa tarefa
N’este momento de lucto
Também pagamos tributo
Á mágoa que vai lá fora.
Não póde ter nossa penna
Zombeteiras ironias
Perante as magoas sombrias
D´uma cidade que chora.
Envolve a cidade inteira
Da morte o manto funerio.
As vallas do cemiterio
Abrem-se tôrvas, hiantes.
Sente-se um vento de morte
Estranho, frio, gelado,
Sobre o montão desolado
Das ruinas fumegantes.
Ha pranto nos nossos olhos
Tristeza infinda na alma
E tão cedo não se acalma
A magoa que nos invade.
Tamanha dôr e pavor
Nos punge n’este momento
Que em ondas de sentimento
Choramos com a cidade.
(ilust. Adão Cruz)
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