Segunda-feira, 6 de Junho de 2011

As Lendas da Eva e as Eleições

 

 

Eva Cruz  Conta a lenda...

 

(Adão Cruz)

 

 

Já que ando em maré de lendas, aproveito esta para fazer o meu comentário ao resultado das eleições.

 

Gostaria de a fantasiar, mas a realidade não admite fantasias.

 

Conta a lenda que numa aldeia longínqua, no sopé do monte, onde o sol nasce cedo e cedo se deita, quando os animais falavam, os galos cantavam assim: Aqui passa-se fome, aqui passa-se fome!

 

Noutro lugar em frente, apesar de mais soalheiro e mais abrigado, onde os animais julgavam haver mais cereais ou ervas para comer, os galos respondiam com uma cantilena que ia dar ao mesmo: Aqui também, aqui também.

 

Perto havia uma azenha, movida pelas águas do ribeiro que corria no pequeno vale que dividia os dois lugares. O moinho compreendia a lamentação dos galos. Por falta de cereal, não caía, há muito, um grão da moega sobre as mós e debalde elas chiavam a moer em falso: Sempre assim foi, sempre assim foi.

 

Ora, isto era no tempo em que os animais falavam pelos homens, e os galos têm, ao que parece, menos miolos.  

 

Gosto muito dos moinhos e retenho no ouvido a canção de água e pedra da minha infância mas gostava de escrever na flor da farinha: Isto há-de mudar, isto há-de mudar.

 

 

Na flor da farinha do seu imaginário, partilhando do mesmo sonho, o meu irmão, o Adão, escreveu, um dia, este lindo poema:

 

(José Magalhães)

 

 

Se eu soubesse dar às palavras que tenho dentro de mim o cantar deste regato

Se entre as pedras do meu leito saltitassem estas águas que me fizeram criança

Se fosse menino este chão que tenho dentro de mim numa caixinha de esperança

E de sonho fosse o moinho que mói o trigo da ilusão

não queria outro moinho para a farinha do meu pão.

 

 

 

De repente, as velhas mós começaram a rolar e a farinha a cair. Levadas pelo tempo e pelo vento as mãos pequeninas lá voltaram a escrever: Isto há-de mudar, isto há-de mudar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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Terça-feira, 24 de Maio de 2011

A pedra que esconde o tesouro no fundo do rio (lenda) - Eva Cruz

 

Eva Cruz  A pedra que esconde o tesouro no fundo do rio

(lenda)

 

(José Magalhães)

 

 

 

Desde tempos remotos os rios condicionaram o povoamento das terras.

O rio Caima, um dos numerosos cursos de água da bacia do Vouga, serpenteando por entre campos verdejantes, fértil de sol e poesia, não escapou à cobiça de conquistadores e povoadores. Nas alturas, nas voltas e reviravoltas dos rios, ou perto das fontes, construíram esses povos fortificações, que têm o nome de castros. Também junto ao rio Caima se ergueu um castro ou, “crasto”, em linguagem popular.

 

O rio foi sempre, neste vale, a mãe que deu pão e vinho, que viu nadar e brincar os meninos no seu leito, que formou ilhas de seixos brancos e amoras negras, e deixou lavadeiras esfregar as roupas na pedra gasta dos seus açudes e corar a roupa branca na erva e nos juncos das suas margens.

 

O rio foi também fonte de histórias e lendas, que se erguiam das sombras dos carvalhos nos poços mais fundos em noites de luar, ou das fragas da furna, que libertavam o eco profundo do cachoar das águas. É a lenda da pedra fantasma ou da pedra dos fantasmas que ainda hoje ladeia o caminho estreito coberto de silvas, que leva à ponte de Coronados na Varziela , à espera de quem passa e de quem se lembre de pôr a mão em concha atrás da orelha para ouvir sair o rio das suas entranhas.

 

É o caso de tantas outras pequenas histórias e lendas que eram contadas à lareira nas noites longas e frias do Inverno e faziam as delícias ou o terror das crianças de muitas gerações passadas. Entre elas estão histórias de mouras encantadas, a da grade de ouro e a do tesouro no fundo do rio.

 

Constava entre as pessoas que esses povos milenares, escorraçados pelos donos do vale, haviam lançado, na sua debandada, pedregulhos no rio para o represar e inundar os campos circundantes. Entre os pedregulhos jazia uma pedra tão pesada e tão funda, que não havia força humana que a levantasse. Diziam que, como a pedra de um túmulo, escondia um grande tesouro.

Toda a população do vale e todos os que viviam ao longo das margens do rio cobiçavam esse misterioso tesouro e cogitavam na forma de o desenterrar das profundezas das águas. Constava até, meio em segredo, que outrora houvera gente que conseguira mergulhar e ver uma inscrição gravada na pedra que dizia: Quem me conseguir virar, grande fortuna há de achar. E estes secretos dizeres incendiavam a cobiça e a curiosidade dos aldeões. Como conseguiram chegar à tradução da frase, não se adivinha. Alguns nem saberiam ler, tão-pouco sabiam a sua língua, quanto mais a dos outros! Mas a imaginação e a fantasia têm uma linguagem que vai ao encontro do que se anseia.

 

Assim viveram gerações sobre gerações alimentando as histórias de tesouros escondidos nos montes e nos fundos dos rios, tesouros que tinham pertencido a mouras e princesas encantadas que por ali tinham vivido e reinado.

 

Um dia um lavrador, que tinha uma possante junta de bois, engendrou, em segredo, com outros dois lavradores mais abastados, uma forma de chegar ao fundo do rio e de erguer a pedra que há séculos ali jazia e tapava o ambicionado tesouro. Numa madrugada de Verão, quando as águas do rio correm mais baixas e serenas, partiram, sem ninguém dar por ela, com a junta de bois para a beira do rio. Levaram consigo um pequeno-almoço de garfo, rojões e um bom naco de broa para dar força ao corpo e um garrafão de vinho verde tinto para dar força ao espírito.

 

Ali chegados, o luar de Agosto iluminava as águas fundas do poço e o rio espelhava como bandeja de prata .Todo ele era um tesouro. E o lavrador apontava o dedo para onde lhe parecia enxergar a milenária pedra que chispava, aos seus olhos enfeitiçados, faíscas de ouro.” Não há dúvida”, todos diziam,”ali só pode estar um grande tesouro, grande tesouro ali há de estar, vamos sair daqui ricos. Não precisaremos de trabalhar mais as terras.” Até já tinham destinado doar os seus campos e a junta de bois a alguns amigos mais necessitados.

 

Um dos lavradores, o mais novo, hábil nas artes de nadar por entre os pedregulhos do rio, mergulhou nas águas temperadas da madrugada levando consigo a ponta de uma corda que antes prendera a um ferro grosso espetado nas areias da margem. Lá bem no fundo do rio, aproveitando um vão entre a pedra e o leito, conseguiu passá-la por baixo da pedra em duas ou três voltas, puxando-a depois para fora de água e amarrando-a com vários nós ao cabresto da junta de bois.

 “Anda Vermelho, puxa boi Alvo!” E assim, obedecendo mansamente à voz do dono, como tão bem faz o boi desde que é mouro de trabalho, o “Vermelho “ e o “Alvo” ergueram e arrastaram penosamente a pedra para a margem. Nesta manobra a pedra voltou-se, mostrando a face há tantos séculos escondida.

 

O lavrador mais novo saltou das águas. Gerou-se no rio um redemoinho escuro de água e lama que nada deixava ver. Os lavradores esperaram entre mil ânsias que o rio acalmasse e as águas ficassem límpidas, deixando que nas suas entranhas os seixos brancos brilhassem com o luar.

 

Os olhos espantados dos lavradores não queriam acreditar! Não havia ouro nem prata!!! Apenas um buraco negro e fundo como o tempo e o nada! Olharam para a pedra voltada do avesso e de olhos mais negros e fundos do que o buraco leram, mais para dentro do que para fora, a inscrição gravada na outra face da pedra: Fizeram bem em me virar, que deste lado já não podia estar.

 

Reza ainda a lenda que os lavradores, desiludidos, empurraram furiosamente a pedra, restituindo-a ao rio, deixando voltada para cima a primeira inscrição.

 

Diz também a lenda que, em noites de luar, quando o rio vai baixo, ela ainda lá está para quem a quiser ver e acreditar que esconde um tesouro no fundo do rio.

 

  

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publicado por Augusta Clara às 19:00
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Segunda-feira, 16 de Maio de 2011

Folha de calendário - Eva Cruz

 

Eva Cruz  Folha de calendário

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

 

Folha de calendário

há muito passada

regressa na cor dourada

das uvas e das maçãs

na nostalgia da trovoada

no ar que arrefece.

 

Grasnam patos

no tanque lodoso

irrequietos na água

em pleno gozo.

 

Cortam pássaros

Em voos rasantes

Os campos tristes

Sem ninhos de amantes.

 

No bico restos da colheita.

Tique-taque do relógio

Silêncio que o tempo rasgou

na folha do calendário que passou.

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publicado por Augusta Clara às 19:00
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Sexta-feira, 15 de Abril de 2011

Esta manhã Eva Cruz traz um cravo vermelho ao Espaço VerbArte

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Colhi um cravo vermelho

Quando Abril era criança

Reguei-o com água benta

E o sol da minha esperança.

Colhi um cravo vermelho

Tudo fiz p’ra que vivesse

Toda a vida lhe dei vida

P´ra que Abril não morresse.

Sempre viveu no meu peito

E no coração de muitos mil

Não murcha nos ventos de Outono

Não perde a cor em Novembro

E sempre renasce em Abril.

Ao mundo eu quero pedir

Que o não deixe secar

Nesta vida estiolada.

Sem cravo vermelho de Abril

A vida não vale nada.

 

publicado por João Machado às 10:00
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Terça-feira, 12 de Abril de 2011

A Arte - Eva Cruz

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

 

Eva Cruz  A Arte         

 

 

 

Quem somos nós para dizer o que é a arte? Constante invenção de um permanente epítome da vida? Criação de formas da actividade humana dentro de uma estética de formatividade? A descoberta da artisticidade intrínseca que existe dentro de cada um de nós? Intuição do sentimento? Missão e dever do homem na investigação apaixonada da disposição ética das formas?

 

Para além do poder emotivo e criativo, a arte, em termos sociais e pedagógicos tem para nós uma finalidade formativa muito mais abrangente que o "restrito" conceito de "arte pela arte". Sabemos que, filosoficamente, este "restrito" tem ambições de absoluto, o que se nos afigura ser, a um tempo fascinante e perigoso, na medida em que podem desaparecer as fronteiras pessoalistas e a penetração da obra na sociedade como expressão cultural e humana do criador.

 

Sabemos que poderão ser consideradas prosaicas dentro da poética de muitos artistas, estas nossas considerações, mas, dentro do Ensino, não conseguimos dissociar a arte das nossas concepções pedagógicas. Assim, choca-nos o individualismo, a parcialidade emotiva, o elitismo tantas vezes infundado. Pelo contrário, inclinamo-nos para uma luta de plenitude que inclua a humanidade como centro de cultura, para uma luta de universalidade que abrace o mundo de forma humana, entendível, solidária. Somos dos que pensam que a arte, sem deixar de perseguir a pureza, pode constituir um elo entre o indivíduo, a vida e a comunidade. Conscientes de que, quando a reflexão e o juízo se desenvolvem, a arte pode morrer, pensamos, contudo, que o pensamento realizado no interior da actuação formante, pode dilatar-lhe o conteúdo e a memória. O reflexo e a interpenetração da obra na humanidade não a desmerecem, antes podem dar-lhe a riqueza que ela muitas vezes procura e não encontra no formalismo "estéril" de conceitos geradores de equívocos.

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publicado por Augusta Clara às 19:00
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Domingo, 3 de Abril de 2011

Poema - Eva Cruz

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

 

 

 

Eva Cruz

 

Olha-me o lume na lareira adormecida.

 

Fogo e música misturam-se em emoções,

em turbilhões e saudade de ilusões.

 

Yesterday em labaredas de vida.

 

Ardeu a paixão, sobrou das cinzas a ternura

que teima atear o lume até ao fim.

 

Autumn leaves caem dentro de mim.

Apaga-se o fogo na lareira escurecida.

 

Renasce das cinzas a love until the end oftime,

amor fonte de vida.

 

(in Era Uma Vez em Outubro, Edições Engenho)

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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Terça-feira, 25 de Janeiro de 2011

Prazeres - texto de Eva cruz. Ilustração de Adão Cruz.

 


 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

Gosto particularmente do mês de Janeiro. Talvez por ser em Janeiro que iniciei a minha vida. Os dias começam a crescer, o sol despede-se de nós mais tarde, os pequenos bolbos e raízes deitam cá para fora os primeiros rebentos e as primeiras folhas. Aqui e além atrevem-se algumas flores a sorrir.

 

Na lareira crepitava a fogueira, um lume de vides ateado por algum tição de Natal que por lá restou. Saboreava umas maçãzinhas assadas, pequeninas, rafeiras, das últimas da macieira. Sem ponta de açúcar, pareciam feitas de mel. Fiz um cacau quente com limão e canela que soube à minha mãe. Acabei de ler o livro "Caim" de Saramago e confirmei a genialidade do seu autor, a profundidade da sua simplicidade e ironia.

 

Uma tarde de Domingo perfeita.

 

Recordei Brecht , ao gosto dos amigos do blog e lembrado há dias pela minha boa amiga Augusta Clara.

 

 

Vergnügungen

 

Der erste Blick aus dem Fenster am Morgen

Das wiedergefundene alte Buch

Begeisterte Gesichter

Schnee, der Wechsel der Jahreszeiten

Die Zeitung

Der Hund

Die Dialektik

Duschen,Schwimmen

Alte Musik

Bequeme Schuhe

Begreifen

Neue Musik

Schreiben, Pflanzen

Reisen

Singen

Freundlich sein.

 

B. Brecht

 

Prazeres

 

O primeiro olhar pela janela fora de manhã

O velho livro reencontrado

Caras alegres

Neve, o mudar das estações

O jornal

O cão

A dialéctica

Tomar banho, nadar

A velha música

Sapatos cómodos

Compreender

A nova música

Escrever, plantar

Viajar

Cantar

Ser amigo.

 

 

Que Brecht me perdoe a tradução, se lhe falseei a simplicidade.

publicado por João Machado às 08:15
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Sexta-feira, 24 de Dezembro de 2010

...




Era uma vez uma Serra e um Vale 

Eva Cruz. Ilustração de Adão Cruz





                       O jardim de Raquel abre-se ao sol
                        caindo da Serra
                        uma coberta de retalhos
tecida de mil aromas
borda a pedra do tanque grande.
Entrelaçam ervilhas de cheiro
os toros das couves galegas
esporas azuis na cidreira e na hortelã
abraçam-se pica-narizes e alecrim
e os cosmes cor-de-rosa
chamam os pintassilgos ao cair da tarde.
Malmequeres de muitas cores
e amores-perfeitos
desdenham da singeleza
dos miosótis azul-sulfato
que bebem a água do rego da mina.
As tímidas flores da rama das batatas
estendem o jardim pelo campo fora
fundindo verdes
no verde de todo o Vale.
Raquel desprende-se da pedra do tanque
veste-se da cor dos cosmes
enche a vida de flores
e voa na brisa que afaga o seu jardim.

No regresso do tempo sonhado
à beira do tanque grande
só um pintassilgo volta
ainda
com o cair da tarde.

(In "era uma vez Future Kids)
publicado por João Machado às 08:00
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Segunda-feira, 13 de Dezembro de 2010

A Serra está coberta de branco





Eva Cruz

A Serra está coberta de branco
é Natal de musgo e azevinho
do presépio e do pinheirinho
a cheirar a resina
dos socos na lareira
dos chocolates de prata
pra trocar por um santinho.
Cheira a vinho fervido
açúcar e canela
e os olhos de Raquel
abertos a noite inteira
enchem-se de Natal.
Tantos Natais vividos
enfeitados de memória!


Natais sem história
sem missa do galo
sem tamancos na calçada
nem vultos em xaile de merino
pra beijar o Deus-Menino

(in “ Era uma vez ,future kids)
publicado por Carlos Loures às 08:00
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Segunda-feira, 6 de Dezembro de 2010

VerbArte - Quinta dos Três Castelos









Adão Cruz


Em complemento do post de minha irmã Eva Cruz sobre a Quinta dos Três Castelos em Coimbrões, peretencente a um tio de minha mãe e onde ela viveu a sua mocidade, segue este pequeno poema que lhe fiz, quando, pelos seus oitenta e tal anos a levei a visitar a quinta, toda em ruínas, onde vivia uma família de ciganos. O poema nasceu quando vi a velhinha agarrada ao portão, a gabeça entre as grades, reflectindo nos olhos a mais inesquecível e profunda expressão de saudade que até hoje me foi dado observar).


Mãos secas pegadas à idade das pedras
a cabeça de ontem nas grades ferrugentas de hoje
olhos molhados num olhar mendigo a tempos de outro tempo.

Dentro da quinta em ruínas no meio de silvados urtigas e ervas daninhas
anos e lustros a caminho de séculos.

Os olhos de minha mãe cheios de outroras e lágrimas mostram-me todas as lágrimas do mundo nas lágrimas de tudo o que se verte em lágrimas
por dentro e por fora do tempo.

Restos de um lago seco entulhos e restos esqueletos de cameleiras
escadas sem fins nem degraus portas e janelas esventradas de foras e sombras.

Mãe
que o sol se lembre de nascer onde o carinho é poema e onde o amor e o mar se tocam dentro de uma gota de orvalho.
publicado por Carlos Loures às 08:00
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Sábado, 4 de Dezembro de 2010

Coisas do Porto - Quinta dos Três Castelos, onde viveu minha mãe.


Eva Cruz

 Havia em Vila Nova de Gaia duas quintas com nomes parecidos, a Quinta do Castelo que pertencera aos pais de Almeida Garrett, onde o poeta passou a viver a partir dos cinco anos, e a Quinta dos Três Castelos que pertencia a Bernardo Soares de Almeida, irmão de Virgolino.
Perto do apeadeiro de Coimbrões, junto à linha férrea, mandou Bernardo Soares de Almeida construir, em 1907, ao gosto revivalista do início do século XX, uma muralha de cimento com três castelos e torreões que servia de mirante aos felizes proprietários para verem passar o cavalo de ferro ou o pássaro sem asas. Esta muralha acastelada e de contos de fada encerrava uma casa que Bernardo Soares de Almeida reconstruíra ao sabor dos tempos românticos. Todo o interior da quinta era de grande imponência e harmonia. Do lado poente havia um portão de ferro de lindíssimo gradeamento que dava para uma alameda empedrada de xistos maravilhosos, bordejada por frondosas japoneiras, e o jardim era adornado por árvores e plantas raras. No alto da alameda erguia-se a casa grande e elegante, servida de uma escadaria de acesso, tudo ao gosto romântico da época. Perto da escadaria havia um lago e um repuxo com um menino a deitar água pela boca. Mais um pequeno mirante escondia o depósito da água. Sob a estátua escreveram a data da construção.
Nas traseiras da casa, o portão de cima dava para um espaço agrícola pertencente ao mesmo dono, que se chamava a Quinta da Lavoura.
Na cave do casarão, uma adega enorme com lagar granítico honrava os alicerces da Quinta dos Três Castelos. Hoje, resta um descampado onde se ergue uma escola com esse nome e aí resistem à morte dois dos três castelos, quase esboroados.

Diz Hélder Pacheco que agora já ninguém liga ou nem repara, mas nos tempos áureos da Quinta, a visão da fortaleza cinzenta, impante e bem tratada, era espécie de cartão-de-visita requintado da Vila Nova.


(Ilust. Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 19:30
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Quinta-feira, 2 de Dezembro de 2010

Coisas do Porto

Eva Cruz

A minha mãe morreu com 101 anos. Teria hoje 103 se fosse viva.
Viveu de recordações. Mesmo muito velhinha contava, cantava, fazia rimas e versos e numa semi-lucidez foi feliz e fez os outros felizes até ao fim.
Nas suas recordações, o Porto, onde viveu a sua mocidade, estava sempre vivo.
Retirei de um livro que escrevi sobre a sua vida e que não é nada mais nada menos do que um baú de recordações que tive a coragem de abrir, este texto:
Aurora passou toda a mocidade na Quinta dos Três Castelos.
» Foram os tempos mais lindos da minha vida. Tive uma novice como ninguém. À noite recebíamos senhoras e senhores da alta roda do Porto. Até um senhor francês, Monsieur Valladier, mais tarde professor da tua mãe. Vinha todas as noites ensinar francês à minha prima. Íamos também ao cinema e ao teatro Sá da Bandeira, antes Príncipe Real. Os meus tios nunca saíam connosco. Acompanhavam-nos o meu primo e a esposa. Vi o Amor de Perdição, as cartas de Simão e Teresa lançadas ao mar por Mariana. A minha prima Laurindinha até chorou. Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão!.
Na rua Trinta e Um de Janeiro havia, antes de eu estar no Porto, o teatro Baquet que
ardeu por completo. Um dia, contavam os meus tios, estavam preparados uns amigos, pais e filha, para irem ao teatro. A menina mostrou-se indisposta e foi uma desmancha-prazeres. Naquela noite, apesar da insistência dos pais, ficaram em casa, e nessa mesma noite deu-se uma das maiores tragédias da cidade do Porto. O teatro Baquet ardeu por completo e lá morreu muita gente queimada. Quando ao outro dia se soube a notícia, os pais beijaram a filha, de contentes. Vê lá tu, ela assim salvou a vida aos três. A criança adivinhou a tragédia que se ia dar.
* És muito tolinha, avó, a menina não adivinhou nada, calhou assim, avó, calhou assim.
» Há coisas que ninguém sabe explicar.
* E tu sabes, avó?
» Não sei tudo mas há coisas que tu não sabes e eu sei. Está mas é caladinho e não digas a ninguém que vais daqui!
O teatro Baquet, na Rua Trinta e Um de Janeiro foi construído em meados do século XIX e passados vinte anos, um terrível incêndio reduziu-o, realmente, a cinzas e destroços. Morreram cerca de duas centenas de pessoas.
O incêndio começou no palco. Uma bambolina foi incendiada por uma gambiarra. Um actor ainda gritou para cortarem uma corda da bambolina mas a desorientação foi tal que o incêndio alastrou e tomou proporções desastrosas. No alvoroço, os espectadores correram para as portas de saída que, por azar, eram de abrir para dentro. No desespero esmagaram-se uns contra os outros. Foram dadas ordens para desligar o gás, como medida de segurança, mas o escuro aumentou o pânico e só o clarão sinistro do incêndio passou a iluminar aquele inferno. Foi um tal horror que pôs de luto a cidade inteira, e durante gerações o Porto não esqueceu a tragédia do incêndio do teatro Baquet. Aurora lembra-se de uns versos que correram na época, mas lamentava não os saber de cor, ela que tanto gostava de rimas e a propósito de tudo ou nada rimava.
Na verdade, entre os muitos textos escritos nos jornais da época, alguns poemas do jornal Charivari mostram o sentimento público perante tal tragédia:
É triste a nossa tarefa
N’este momento de lucto
Também pagamos tributo
Á mágoa que vai lá fora.
Não póde ter nossa penna
Zombeteiras ironias
Perante as magoas sombrias
D´uma cidade que chora.

Envolve a cidade inteira
Da morte o manto funerio.
As vallas do cemiterio
Abrem-se tôrvas, hiantes.
Sente-se um vento de morte
Estranho, frio, gelado,
Sobre o montão desolado
Das ruinas fumegantes.

Ha pranto nos nossos olhos
Tristeza infinda na alma
E tão cedo não se acalma
A magoa que nos invade.

Tamanha dôr e pavor
Nos punge n’este momento
Que em ondas de sentimento
Choramos com a cidade.

(ilust. Adão Cruz)

publicado por Carlos Loures às 19:30

editado por João Machado em 14/04/2011 às 00:17
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Sexta-feira, 26 de Novembro de 2010

Dia do Porto: Tempo de Castanhas

Eva Cruz

Adão Cruz





















Já lá vai meio século.

Vinda da verde campina, enfrentava a grandeza e a imponência do Carolina Michaëlis, o terror desses tempos. Liceu feminino, só mulheres, professoras, alunas e empregadas.

Do cimo das suas escadas monumentais, avistava-se ao longe, em frente, o D. Manuel II. Liceu masculino, só homens, professores, alunos e empregados.

As alunas não podiam ser vistas acompanhadas por rapazes num raio de 300 metros.

Conceitos. Preconceitos. Regras que não deixavam saltar o muro do atavismo.

No meu uniforme cinzento, ostentando os seis botões indicadores do antigo sexto ano, percorria eu a rua de Cedofeita num cair de tarde de Outono. As aulas estavam no início e não havia muito que estudar. Um passeio pelas redondezas do Liceu com algumas colegas amainava as saudades de casa.

A atmosfera era fria . A rua pintada de gente que se movia em tarefas rotineiras ostentava as modas de Inverno nas vitrinas e às portas das mercearias e frutarias os artigos da época. As castanhas sorriam para os transeuntes no seu brilho outonal.

Cedofeita era um mundo. As pastelarias faziam crescer água na boca com as bolas de Berlim a escorrer creme, as natas tostadinhas e os croissants a luzir de manteiga.

Por toda a rua havia uma neblina de fumo branco que aquecia. E um cheirinho a castanha assada saía das brasas dos carrinhos dos assadores.

Abeirei-me do assador.

Dê-me dez tostões de castanhas.

Ali logo fez um cartucho de jornal e meteu lá dentro meia dúzia de castanhas, cheirosas cobertinhas daquela cinza branca das brasas.

Perante a magreza da compra saiu-me a expressão. “ Tão poucas?!

“ E vai com sorte menina, porque metade são podres:”

Vivi apenas dois anos no Porto. O resto do meu percurso académico seguiu-se em Coimbra. O Porto ficou , porém, gravado na minha alma .É uma cidade mágica no seu rosto escuro, na profundidade do rio, nas suas pontes desalinhadas, no colorido das ribeiras, nos rochedos negros Foz.

Mas a alma do Porto está nas suas gentes. Na autenticidade da sua linguagem, no sotaque cortado a pique como o rio, no realismo das suas imagens, na nudez dos sentimentos.

E metade das castanhas eram realmente podres. Mas o delicioso sabor das que aproveitei é o mesmo de hoje e de há meio século.
publicado por CRomualdo às 10:00
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Terça-feira, 23 de Novembro de 2010

Na outra margem

Eva Cruz


De junco tecidos

os teus pés descalços

voam por entre os lírios amarelos

não do Letes

mas do teu Vigues.

Águas de vida e não de esquecimento.

Nem quero que te redimas na outra margem.

Não tens nada a purificar.

Na gota de orvalho reconheces

a seiva da tua mãe

que te leva pela mão.

É a energia condensada

da tua inexistência

a organizar a matéria.

O som de címbalos e trombetas

neutrões e protões

desperta o Letes

para um novo sol.

Talvez reencontres o teu Deus de amor.

Vive na outra margem.

De lá para cá é só um passo

e o teu ser é tão infinito

que cabe neste espaço.

(Ilustração Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 08:00
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Quinta-feira, 18 de Novembro de 2010

Evento - As palavras de Saramago

Eva Cruz
As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpas. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes.

Algumas palavras sugam-nos, não nos largam... As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras. E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do disse ou tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do verbo. E as palavras escorrem tão fluidas como o "precioso líquido".

Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envoltos também num murmúrio manso, represo e conciliador... E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares. Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não ouça outra palavra.

A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça. Daí que seja urgente moldar as palavras para que a sementeira se mude em Seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato. Há também o silêncio.

O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio.
Mas só o trigo dá pão.

As minhas palavras a Saramago


Levantado do chão
como só os Homens são capazes
não há morte que te leve.
A Lucidez da tua obra
curará os olhos da cegueira.
E as palavras de ternura do teu Evangelho
correrão límpidas como um rio
regando a terra
onde só o trigo há-de crescer
e dar pão.
publicado por Carlos Loures às 22:30
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