(publicamos hoje, embora atrasada, a carta que Israel Cohen, cardiologista, enviou ao seu e nosso amigo Adão Cruz, igualmente cardiologista, em resposta ao artigo do Adão que foi publicado na Revista da Ordem dos Médicos e, também, aqui no Estrolabio)
Acabo de ler a tua"OPINIÃO" na Revista da O.M. sobre Materialismo e Espiritualismo. Gostei do texto,acho-o claro e conciso, concordo inteiramente com o que dizes e senti que o escreveste com entusiasmo.
Curiosamente, acabei de ler o livro de A. Damásio "O Livro da Consciência". Pelas tuas palavras, na introdução e em algumas passagens do texto, chego a pensar que o possas ter lido tambem.
Li os três anteriores livros dele publicados cá e gostei muito...mas este último torna-se, talvez mais pela forma do que pelo conteudo, muito complexo e vou ter que o ler de novo, desta vez talvez com fichas e esquemas... Tal como está escrito, traz-me à cabeça duas citações: "...Tive pouco tempo para escrever menos...", eu diria tambem "melhor", e outra, que nunca mais esqueci, que foi dita por um Prof. meu da Faculdade: "Inteligência é saber explicar um assunto, por mais complexo que seja, de maneira que até um guarda republicano o consiga entender!". Neste caso, o guarda republicano sou eu...confesso que nunca soube muito de anatomia (cartografia) cerebral para conseguir entender muito do que foi escrito nesse livro, mais ainda quando se descrevem as numerosíssimas conecções e relações existentes entre todas essas estruturas.
Na realidade sabemos que a cartografia cerebral está em grande parte feita, que a fisiologia dos neurónios e seus componentes é já bastante conhecida, que a neuro-química e a neuro-biologia estão em boa parte desvendadas, que muitos circuitos intra e extra-cerebrais já foram convenientemente percorridos, que muito se sabe já da formação e mapeamento das imagens, quais as estruturas muito presumivelmente responsáveis pelo aparecimento e evolução do proto-eu, do eu nuclear e do eu auto-biográfico, da mente e da consciência, dos sentimentos e das emoções, que há já portanto um longo e meritório caminho percorrido,que a genética, os ambientes físico e cultural são palavras-chaves em tudo isto de que estamos a falar, que a neuro-ciência e a psiquiatria terão cada vez mais tedência para se tornarem indistintas, provavelmente com o nome justamente de neuro-ciência... o que, até este ponto do conhecimento, possivelmente faltará...será resumir tudo isto de uma maneira simples, de modo a ser bem entendido por uma pessoa "mediana", até porque é um assunto muito sério e de gande utilidade para uma visão correcta de nós próprios e de tudo o que nos cerca...Não digo que seja fácil. Digo que é importante.
Penso sinceramenta que neste livro o António Damásio complicou as coisas e não deu a oportunidade a muita gente de ficar, tanto quanto possível, esclarecida.
Acho que, se ele escreveu só para neuro-investigadores, terá sido "curto", e se escreveu para pessoas "normais", não atingiu, de todo, os seus objectivos...
E o mais curioso é que na FNAC e em outras livrarias, este livro se manteve durante imenso tempo e ainda se mantem nos Top Ten...será que o público português está tão culto???!!!, ou serei eu que sou de uma enorme ignorância?
Bem, desculpa este desabafo...por teres escrito um bom texto, claro e simples, não merecias levar com isto tudo em cima.
O mal do homem não está em pensar e ter ideias, o mal do homem está em não pensar e não ter ideias.
Por isso, na sequência de um artigo anterior aqui publicado, sinto necessidade de correr um pouco mais atrás de ideias e de fazer mais algumas reflexões em relação a este tão aliciante tema. Os que acham que sou tolo e desprovido de senso têm uma solução fácil, não leiam. Mantenham as suas valiosas ideias fechadas no cofre do deixa andar e não te rales.
Costuma dizer-se que a ciência é um cemitério de hipóteses e eu concordo. No entanto, cada hipótese perdida é um degrau de acesso à hipótese situada acima, e no meio desse cemitério de hipóteses a ciência vai-se consolidando e conquistando verdades que ganham raízes bem fundas no conhecimento humano. Se, por exemplo, as conclusões de uma sonda espacial dizem que provavelmente não há água em Marte, e as conclusões de uma sonda enviada posteriormente dizem que provavelmente há água em Marte, a primeira hipótese não foi negativa nem inútil, pois sem ela, com certeza, não se chegaria à segunda hipótese.
Também a filosofia pode ser, muitas vezes, um amontoado de disparates, e não deixa de ser importante e muito útil como pré-ciência, isto é, como proposição, umas vezes credível outras não, em que a investigação científica, sem qualquer preconceito, assenta muitas vezes os pés. Veja-se, por exemplo, o caso, muito actual, de Espinosa e António Damásio.
Sempre que um assunto é complexo, temos uma tendência generalizada a abordá-lo de forma complexa, confusa, metendo os pés pelas mãos e embrulhando-nos em labirintos onde as contradições aparecem a cada esquina. Sempre me recusei a complicar ainda mais o que, com boa vontade e necessidade de aprender, pode ser analisado de forma simples, sem ser simplista e irresponsável, dentro da complexidade fenomenológica de qualquer tema. É um pouco como explicar a um doente a sua doença por mais complicada que seja. Tudo pode e deve ser explicado a um doente, conquanto o façamos com boa vontade e interesse de o esclarecer, numa linguagem que para ele seja entendível. Nunca por nunca dizer: não posso explicar-lhe porque você não entende.
Vem isto a propósito de um tema actualíssimo, um tema que nos absorve a todos nós, os que lidamos com a vida, com a ciência médica e os que consideram o pensamento como um metabolito essencial da existência. E o tema é aquilo que pode ser designado, abusivamente ou não, por “Biologia do Espírito”, isto é, a doutrina filosófica que admite como realidade apenas a matéria, negando a existência da alma e do mundo espiritual como pertencente ao sobrenatural ou ao divino. A velha questão Materialismo- Espiritualismo, em que o Materialismo não nega a existência do “espírito”, da vida dita psíquica, igual à do espírito do espiritualista. Simplesmente, ela decorre de uma complexa e ainda pouco conhecida actividade cerebral, ainda assim dificilmente contestável pela razão e pela ciência, e não de uma concepção imaterial, sobrenatural, do domínio da crença, como acontece no Espiritualismo. A matéria é a substância de todas as coisas. A geração e a degeneração do que existe, dentro do pensamento racional, obedecem a leis físicas. A matéria encontra-se em permanente transformação, faz parte da natureza e obedece às suas leis.
Já aqui falei, em artigo anterior, de Thomas Insel, mais conhecido por Tom Insel. Tom Insel dirige, desde 2002, a maior agência de financiamento público da investigação em saúde mental do mundo: os National Institutes of Mental Health (NIMH) dos EUA, com um orçamento anual de 1500 milhões de dólares. Psiquiatra de formação, Insel já foi investigador - estudou a neurobiologia e a genética de comportamentos complexos, como o amor e os laços sociais -, mas agora diz que o seu papel consiste em "falar sobre maneiras radicalmente diferentes de pensar a doença mental" para fomentar a "inovação disruptiva" nesta área.
E ele diz peremptoriamente: “A menos que levemos em conta a biologia das doenças mentais, não há tratamento para essas doenças. Para se conseguir um dia diagnosticar a tempo e tratar eficazmente as doenças mentais vai ser preciso encará-las, não como doenças puramente comportamentais, mas como doenças cerebrais, abrindo assim a psiquiatria às neurociências e à genética”. Por isso, diz ele, a tendência hoje é acabar com a distinção entre disciplinas como psiquiatria e neurologia e fundi-las naquilo que podemos designar por Neurociências.
As lesões em muitas doenças, ditas orgânicas, como o cancro da mama ou um enfarte do miocárdio são visíveis, palpáveis, objectivas, noutras nem tanto, é necessário recorrer a análises sofisticadas e marcadores indirectos. Nas doenças cerebrais, também há lesões que são facilmente observáveis do ponto de vista orgânico e que levam a doenças mentais, de cuja origem na lesão detectada ninguém duvida. Mas as doenças mentais propriamente ditas causam alguma perplexidade quanto à sua natureza física e material, pelo simples facto de não vermos e de não conhecermos, por enquanto, a lesão ou alteração que está na sua origem. Mas, a despeito do muito que já se sabe neste campo, será lógico pensar que há uma alteração funcional, uma ou várias lesões celulares, uma ou várias alterações dentro dos milhões de neuro-transmissões do complexo mundo neuronal do nosso cérebro, igualzinho no materialista e no espiritualista, responsável quer no materialista quer no espiritualista, por toda a nossa vida psíquica, por todos os nossos pensamentos, emoções, sentimentos e afectos. Responsável por toda a nossa vida global, pelo todo da nossa vida, por mais que a queiramos cindir, fatiar e hipotecar ao que quer que seja.
O nosso amigo Adão Cruz, num belo e elucidativo texto fala-nos no Homem como um ser constituindo um todo, onde o "material" e o "espiritual" são uma e a mesma coisa, sem um não existe o outro e vice-versa. Essa diferença resulta das conexões que existem entre as partes que constituem o todo, há uma "causa-efeito" que funciona sempre, resultado das condições em que se formam, das circunstâncias de cada um e de todos os seres humanos.
Subscrevo inteiramente, não acredito em algo que não se possa explicar, aí estaremos no domínio da Fé, do acredito porque sim, o que não quer dizer que não exista( se existir um ser humano que acredite em Deus, eu acredito em Deus,Saramago dixit). A formação científica do nosso aventador, ainda para mais sendo médico, não poderia deixar de o levar a essa conclusão tão objectiva, tantas foram as vezes em que se viu perante a vida e a morte do seu semelhante, sabendo que para aquela "causa" só há um "efeito", fosse ele um ente que pudesse tudo e muito sofrimento seria evitado. Não há pois nada para além daquilo que está ao alcance da ciência, e mal estaríamos se "um ente que pode tudo" não quisesse!
Há muito, no que me diz respeito, que percebi que eu na minha pequenez sou muito melhor do que "alguem" que pode tudo mas não quer. Seria um ser desprezível. Não parece no entanto, que a riqueza "espiritual" se possa reduzir a resultados "materiais" como a pintura, e a escrita, a música e o amor, o que seria por si só algo de extraordinário, mas que fazem parte do "todo" ser humano, onde tudo nasce e tudo morre, cada um de nós é a vida, o universo. E, no entanto...
Quantas vezes o médico dedicado se confrontou com situaçãoes miraculosas, o mesmo médico que aprendeu a dissecar cadáveres, como os grandes da medicina ensinaram e descobriram, um após outro, os segredos do corpo humano e foram, um a um, afastando preconceitos, doutrinas sem fundo de verdade, bruxedos e "maus olhados"...
O jovem médico alemão que perante uma plateia de "professores" mostrou, nele próprio, que o coração não é mais que um músculo e que se podia trabalhar nele como em qualquer outro orgão, o amor não mora lá; ou o cientista que vai de férias e que quando volta descobre a penincila numas "culturas" que ía deitar fora, salvando milhões de vidas humanas; como a primeira operação a uma grávida, salvando mãe e filho foi feita por um médico à sua própria mulher e, hoje sabe-se, que não tinha conhecimentos cirúrgicos bastantes, há altura, para fazer uma cesariana...
Tudo se explica porque há um sistema "vivo" que encontra respostas para a sua própria sobrevivência, sem o que pereceria como todos os sistemas que não conseguem a autoregeneração? É por isso que nascem os talentos, os homens e mulheres capazes de fazerem o "mundo pular e avançar"?
Nestes tempos futebolísticos, nomeadamente neste malogrado Portugal-Espanha, assunto de que não percebo nada, nem estou interessado em perceber, é preciso muita coragem e muito arrojo, para vos vir falar de Materialismo e Espiritualismo. Precavi-me no entanto, com a ingestão de uma boa dose de ameixas vermelhas, pequeninas, pouco maiores do que cerejas, deliciosas, do quintal de minha saudosa mãe, regadas com meia garrafa de Mouchão tinto. Dizem que tais frutos, com um bom tinto, produzem um belíssimo resultado em termos de equilíbrio metabolismo-catabolismo, e, por conseguinte, de homeostasia, termo que já aqui tenho utilizado várias vezes, e que significa uma total harmonia do todo do ser humano.
O indivíduo materialista, no sentido filosófico e científico do termo, é aquela pessoa que acredita no ser humano como um todo, um todo indivisível, indissociável, uma única substância como dizia Espinosa. Aquela pessoa para quem não há qualquer fronteira entre a pele e a carne, entre a carne e o sangue, entre o sangue e o cérebro, entre o cérebro e a mente, entre a mente e o pensamento, do qual decorre toda a vida dita psíquica do indivíduo. Assim como o aparelho circulatório se encarrega de toda a distribuição de fluidos no organismo, assim como ao aparelho respiratório cabe toda a oxigenação dos tecidos, assim como ao sistema endócrino pertence todo o complexo mundo hormonal do organismo, assim ao sistema cerebral corresponde toda a vida “psíquica” do ser humano. O cérebro é o receptor e emissor de todos os estímulos, exógenos e endógenos do organismo. É ele que, através de tais estímulos cria imagens, das quais decorrem emoções que, por sua vez, geram sentimentos que levam à consciência, à reflexão, à vontade e à decisão. E o pensador materialista baseia os seus conceitos numa intuição natural, numa investigação científica permanente, progressiva, dia a dia mais convincente, e, a não muito longo prazo, pensa ele, acabando por atingir verdades irrefutáveis.
A realidade de uma vida psíquica em nada se encontra em contradição com o materialismo. A vida psíquica, entendida como a vida decorrente da actividade cerebral, e, logicamente, de toda a actividade pensante, não contradiz, de modo algum, o pensamento materialista. O termo “psíquico” está de tal modo enraizado na nossa linguagem e na nossa sociedade que não é possível eliminá-lo, nem interessa. Quando um materialista diz, por exemplo, em conversa ou num texto literário, “a alma do poeta ou do pintor”, quer dizer o íntimo, o mais nobre do poeta e do pintor, e não, como é óbvio, se refere à alma do poeta ou do pintor em sentido espiritualista. Quando um materialista diz “ele é um espírito vivo”, logicamente que quer dizer que ele tem uma actividade psíquica intensa, perspicaz e arguta, e, de modo algum, se refere ao imaterial espírito contido no conceito espiritualista.
Para o espiritualista existe um dualismo corpo-espírito. Há duas realidades distintas no todo do ser humano, o corpo e o espírito, ou alma, interligadas em vida mas separadas depois da morte. Logo que a alma se separa do corpo, este vê-se reduzido à sua condição de matéria, logo putrefáctil, sem vida, enquanto a alma segue por outros insondáveis caminhos. Enquanto o materialista baseia os seus conceitos nas poderosas investigações científicas, sobretudo na área da Evolução e das Ciências Neurobiológicas, o espiritualista, sem qualquer base racional científica e convincente, baseia os seus conceitos numa crença, apenas numa crença, legítima, mas uma crença. Mas é assim e quem sou eu para tentar convencer alguém da “minha” verdade?
Não queria terminar sem deixar aqui bem explícita, a finalidade deste artigo. E esta resume-se no seguinte: Perpassa por aí a ideia, e muitas vezes em mentes de aventadores bem formados, de que o materialismo, em termos de sentimentos, está a léguas do mundo sentimental do espiritualista. Disparate total! Disparate absoluto! Faz lembrar aquela pergunta de uma amável e intrigada senhora: como é que o senhor, sendo materialista, pinta, escreve, faz poesia e tem sentimentos tão bonitos?
A vida psíquica, isto é, a actividade cerebral e mental de qualquer ser humano , não pessoalizada, evidentemente, é idêntica, seja materialista ou seja espiritualista. Um e outro pensam, raciocinam, amam, choram, riem, fazem poesia, são capazes das mais profundas emoções e dos mais nobres sentimentos. Quantas vezes um materialista tem sentimentos e vivências “espirituais” muito mais profundas e mais nobres do que um espiritualista e vice-versa! A única diferença reside no conceito de “esfera psíquica”que cada um tem. No primeiro caso, materialista, esta faz parte integrante, material, do ser humano no seu todo biológico, conceito bem firmado na dificilmente negável investigação evolucionista e neurobiológica, e, no segundo caso, pertence a um ser humano feito de duas partes, uma terrena e outra sobrenatural, mera questão de crença, legítima, repito, mas sem qualquer base racional e científica.
Acabemos de vez com o sentido pejorativo atribuído, de ânimo leve, tantas vezes acintosamente e irracionalmente, ao materialismo científico. Tal atitude, sobretudo nos dias de hoje, não eleva nem dignifica ninguém.