Quinta-feira, 15 de Julho de 2010

Mundo fantasma

Marcos Cruz

Quando eu era pequeno, diziam-me para não acreditar em fantasmas, que eles não existiam. Hoje dizem-me o contrário: há-os por todo o lado. Os últimos de que ouvi falar, devido ao novo filme de Polanski, em estreia nas salas portuguesas, foram os escritores-fantasmas, gente que escreve por encomenda e vende a própria autoria, ou seja, permite que o cliente assine o trabalho, como se fosse seu. Eu acho que isto merece uma reflexãozinha, convocando a sociedade em todas as suas frentes. É que talvez estejamos a abusar da paciência de Platão e a esticar demasiado a corda que ele nos deixou para podermos aceder ao nosso estado puro. A metáfora de sermos sombras de nós próprios é isso mesmo, uma metáfora. Serve para desenvolvermos as virtudes que temos e perseguir a utopia de nos tornarmos iguais ao nosso melhor. Não serve, ou não devia servir, para comprarmos sombras que façam de nós sombras de sombras, para desenvolvermos os defeitos que temos e fincar pé na distopia de nos tornarmos parecidos com o nosso melhor. A verdade é que, assim, a mentira alastra.

Os mistérios (como, aliás, os ministérios, ou não se falasse há muito de governos-sombras e coisas do género) tornam-se cada vez mais densos. As sociedades, em lugar de se desnudarem, ganham camadas. A floresta, que não a verde, escurece. E todos nós sentimos razões para voltar a ser crianças com medo do escuro. O que é, neste cenário, a informação? Vejamos, sem qualquer tomada de partido, ou seja, apenas a título de exemplo, o caso dos prisioneiros políticos de Cuba. Não poderão ser eles homens pagos para dizer o que dizem, mártires-fantasmas? Que certificados temos? E, se os houver, não poderão ser certificados-fantasmas? E assim sucessivamente, até um infinito lodoso, até esgotos nunca dantes navegados?

Eu não me comprazo na profecia da conspiração, não contem comigo para gastar energias na espiral da desgraça, mas preocupa-me a falta de visão global com que estes actos-sombra, alegadamente inocentes na sua estrita dimensão profissional, são cometidos. Um escritor-fantasma deve ter noção de que, ao escrever a autobiografia de alguém que, podendo ser analfabeto, vai mentir ao seu público, se torna também um mentiroso-fantasma. Ou seja, não pode ficar só com a parte boa e dizer que o que fez foi por trabalho. O dinheiro que ganha na escrita-fantasma é pelo menos equivalente à credibilidade que perde na mentira-fantasma. Devia ser assim. Mas não é. Estamos numa fase do mundo em que, para o bem, todos nos dizemos contribuintes, mesmo que seja precisa alguma benevolência, ou a alusão ao efeito-borboleta, para atribuir uma quota-parte de responsabilidade nesse bem à actividade que exercemos.

Para o mal, nenhum de nós ajudou, nenhum de nós sequer viu, de tão comprometido que estava com o com o seu labor inóquo, no seu departamentozinho estanque. Isto, esta forma de pensar, contemplando o benefício próprio apenas dentro da sua dimensão mais mesquinha, mais pequena, mais egocêntrica, e desprezando a evidência da globalidade do ser, do cordão umbilical que nos une a todos, está a levar a sociedade para um patamar de irresponsabilidade assustador. A própria ciência, no seu afã evolutivo, parece às vezes caminhar sozinha, obcecada consigo mesma, esquecendo a complexidade do mundo em que vive e o facto de as descobertas só se poderem considerar benéficas após a avaliação do seu aproveitamento. Aliás, os próprios cientistas, na sua qualidade de homens como os outros, estão à mercê de convites para se converterem em cientistas-fantasmas, em cientistas-sombras.

Temos ouvido falar, com insistência, do neuronegócio, e isso, evocando Huxley, prefigura um arrepiante mundo novo. Não se infira daqui que eu me oponho ao desenvolvimento científico. Bem pelo contrário, toda a observação me parece imprescindível, essencial. Mas, tanto em termos de princípio como de método e objectivo, ela não deve descartar, como pano de fundo, a conexão entre sujeito, objecto, domínio específico e contexto global. Se os cientistas idóneos, responsáveis e dignos, que serão muitos, estou convicto, não o fizerem, cedendo a uma pressão crescente de interesses também eles cada vez mais sombras, tornar-se-ão responsáveis, tanto como quem os suborna, e ainda que queiram, em prol da ciência, varrer para debaixo do tapete a consciencialização desse suborno, pelas consequências nefastas que o planeta venha a sofrer. O problema que se põe aqui, no fundo, é o da consagração de uma coisa foneticamente próxima da meritocracia: uma mentirocracia. Um mundo-fantasma, com homens-fantasmas (assinale-se, a propósito, o visionarismo de Sérgio Godinho), leis-fantasmas, governos-fantasmas, empresas-fantasmas, dinheiro-fantasma, instituições-fantasmas e valores-fantasmas, onde a luta já não é por um lugar ao sol, mas por um lugar à sombra.
publicado por Carlos Loures às 11:00
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