Quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010

Boaventura de Sousa Santos no Estrolabio - A Reuniversidade


Na minha última crónica descrevi um cenário perturbador do futuro da universidade em resultado dos processos de reforma actualmente em curso. Fiz questão de salientar que se trata apenas de um cenário possível e que a sua ocorrência pode ser evitada se forem tomadas algumas medidas exigentes.


Primeiro, é preciso começar por reconhecer que a nova normalidade criada pelo cenário descrito significaria o fim da universidade tal como a conhecemos. Segundo, é necessário tirar as consequências dos vícios da universidade anterior ao processo de Bolonha: inércia e endogamia por detrás da aversão à inovação; autoritarismo institucional disfarçado de autoridade académica; nepotismo disfarçado de mérito; elitismo disfarçado de excelência; controle político disfarçado de participação democrática; neofeudalismo disfarçado de autonomia departamental ou facultária; temor da avaliação disfarçado de liberdade académica; baixa produção científica disfarçada de resistência heróica a termos de referência estúpidos e a comentários ignorantes de referees.


Terceiro, o processo de Bolonha deve retirar do seu vocabulário o conceito de capital humano. As universidades formam seres humanos e cidadãos plenos e não capital humano sujeito como qualquer outro capital às flutuações do mercado. Não se pode correr o risco de confundir sociedade civil com mercado. As universidades são centros de saber no sentido mais amplo do termo, o que implica pluralismo científico, interculturalidade e igual importância conferida ao conhecimento que tem valor de mercado e ao que o não tem. A análise custo/benefício no domínio da investigação e desenvolvimento é um instrumento grosseiro que pode matar a inovação em vez de a promover. Basta consultar a história das tecnologias para se concluir que as inovações com maior valor instrumental foram desenvolvidas sem qualquer atenção à análise custo/benefício. Será fatal para as universidades se a reforma for orientada para neutralizar os mecanismos de resistência contra as imposições unilaterais do mercado, os mesmos que, no passado, foram cruciais para resistir contra as imposições unilaterais da religião e do Estado. Quarto, a reforma deve incentivar as universidades a desenvolverem uma concepção ampla de responsabilidade social que se não confunda com instrumentalização. No caso português, os contratos celebrados entre as universidades e o Governo no sentido de aumentar a qualificação da população tornam ridícula a ideia do isolamento social das universidades mas, se nem todas as condições forem cumpridas, podem sujeitar as instituições a um stress institucional destrutivo que atingirá de maneira fatal a geração dos docentes na casa dos trinta e quarenta anos. Quinto, para que tal não suceda, é necessário que a todos os docentes universitários sejam dadas iguais oportunidades de realizar investigação, não as fazendo depender do ranking da universidade nem do tópico de investigação, não sendo toleradas nem cargas lectivas asfixiantes,nem a degradação dos salários (mantendo as carreiras abertas e permitindo que os salários possam ser pagos, em parte, pelos projectos de investigação).


Sexto, o processo de Bolonha deve tratar os rankings como o sal na comida, ou seja, com moderação. Para além disso, deve introduzir pluralidade de critérios na definição dos rankings à semelhança do que já vigora noutros domínios: nas classificações dos países, o índice do PIB co-existe hoje com o índice de desenvolvimento humano do PNUD.


Tudo isto só será possível se o processo de Bolonha for cada vez mais uma energia endógena e cada vez menos uma imposição de peritos internacionais que transformam preferências subjectivas em políticas públicas inevitáveis; e se os encarregados da reforma convencerem a UE e os Estados a investir mais nas universidades, não para responder a pressões corporativas, mas porque este é o único investimento capaz de garantir o futuro da ideia da Europa enquanto Europa de ideias.


(Publicado em 23-09-2010 na revista "Visão")
publicado por Carlos Loures às 21:00
link | favorito
Quinta-feira, 23 de Dezembro de 2010

Coimbra, Portugal

Raúl Iturra



Bem sabemos que visitar Coimbra, é visitar um monumento. Não apenas o túmulo de primeiro rei de Portugal, proclamado como tal em 5 de Dezembro de 1143 após derrotar os mouros na Batalha de Ourique. O sítio em que nasceu, é incerto. Há duas hipóteses: teria nascido em Viseu em dia incerto, no ano 1109; outros defendem que nasceu em Guimarães, memos ano, mesma data incerta. Mas o túmulo que guarda os seus restos é digno de uma pessoa desse tamanho, que criou o Reino de Portugal. Curiosos, os que não temos reis para nos governar, o primeiro que chama a nossa atenção é visitar todos os sítios por onde se diz que o Rei Fundador de Portugal com reino, apagando a ideia de Condado Portucalense esse pequeno troço de terra de Guimarães, estreito para si, começou as batalhas para expulsar mouros e judeus das suas terras que passaram a ser o que hoje é a República de Portugal, faz 100 anos a esta data.

Percorrer a cidade realiza-se ser todo um monumento. Há a parte antiga dos Conventos e Mosteiros, e a parte nova, a Baixa de Portugal, para escritórios e comércio. Mal apareci em Portugal, corri a conhecer a cidade universitária, na que fui durante cinco anos Catedrático Visitante para proferir aulas todos as segundas férias. Hospedava-me numa casa de mais de trezentos anos, convertida num húmido e frio hotel, mas que ficava ao começo da rua que subia até a faculdade em que ensinava.


Não eram apenas os monumentos que, pela sua antiguidade e história estavam sempre a ser percorridas por turistas. O que mais curiosidade prestava, eram a reitoria e a sala capitular, em que se realizavam os júris de doutoramento bem como as imensas ruas e avenidas que faziam de Coimbra um caminho aos Alpes ou aos Andes. Parece-me que Coimbra é como uma cidade estado dos anos 500 da nossa era: um aglomerado de casas que se foram construindo ao pé dos mosteiros. Esta imagem mostra o refúgio que as pessoas procuravam nos mosteiros.


Cidade de ruas estreitas, pátios, escadinhas e arcos medievais, Coimbra foi berço de nascimento de seis reis de Portugal, da Primeira Dinastia, assim como da primeira Universidade do País e uma das mais antigas da Europa. Aliás, pelas minhas contas, é a quinta Universidade da Europa: Bolonha e Pádua primeiro, na Itália, La Sorbonne em Paris, a seguir, Cambridge e Oxford na Grã-Bretanha, todas nos anos 1200, Salamanca mais tarde e Edimburgo. Era a maneira de ensinar os frades direito canónico, economia, latim, mais tarde, direito civil


Tive a grande alegria de orientar, junto com Pierre Bourdieu, a tese da hoje doutora Maria Eduarda do Cruzeiro, exactamente sobre a Faculdade de direito e a sua transformação, faculdade fundada em 1290, l de Março por Bula Papal: Faculdade de Direito, ainda a funcionar na Reitoria da Universidade.


Foi um prazer para mim ser Catedrático da Universidade, a 5ª mais antiga do mundo. Não consegui deixar de andar pelas ruas antigas, pavimentadas com pequenas pedras retiradas do rio Mondego, que banha a cidade, após abandonar essa terceira mais antiga, a de Cambridge, UK.


Como é natural, uma cidade com uma Universidade de mais de mil anos, era toda ela um grupo de arte, música e sabedoria bem guardada entre os docentes e os estudantes, que viviam, praticamente na Biblioteca, a mais rica da Europa, a seguir à de Cambridge.


Deve ser para os turistas um regalo percorrer ruas por onde a sabedoria se desliza, os debates nos cafés são sobre teoria com prova e hipótese retirada dos livros e da investigação. Coimbra sempre foi famosa pelo seu saber em Direito e pela museologia africanista que começara ser cultivada mais de 500 anos antes, no tempo das Descobertas e da exibição, para comparar culturas, dos tesouros trazidos da África, da Índia, Japão e a China.


É isso que os turistas vem e é isso os que coimbrões são. É assim a cidade de Coimbra, uma universidade com rituais, escrita, música e saber acumulado ao longo dos séculos, melhorado pelas investigações dos seus docente e equipa e famosa, hoje em dia, por ter descoberto como combater o cancro da mama.


É assim como vejo, entendo e ensino numa cidade com Universidade, que me obriga a saber mais…



publicado por Carlos Loures às 03:00
link | favorito
Quarta-feira, 22 de Dezembro de 2010

Boaventura de Sousa Santos no Estrolabio -


Transformar as propinas em democracia participativa.


O que leva a considerar em crise, num dado momento histórico, certas instituições tem menos a ver com o desempenho do que com o grau de coerência delas com o modelo civilizatório dominante. Depois de vários séculos de domínio económico e político, o capitalismo global conseguiu nos últimos trinta anos consolidar o domínio cultural e, ao fazê-lo, construiu um novo modelo civilizatório assente na absoluta primazia do mercado e na extensão da sua lógica a todos os aspectos da vida social. À luz deste modelo, tudo o que é público está, quase por definição, em crise. A crise da universidade pública não decorre, pois, de um problema de financiamento. Apesar do seu corporativismo e burocratismo, a universidade foi desde sempre uma instituição cultural dominada por uma forma de competição alternativa à do mercado, a competição pela excelência e pelo mérito, sendo a eventual tradução do mérito em valor mercantil um processo exterior à universidade.

No momento em que o capitalismo global conquista o domínio cultural, a competição pelo mérito só faz sentido enquanto competição pelo mercado e, para isso, é preciso transformar o mérito em mercado do mérito, não apenas fora, mas também dentro da universidade. E para funcionar o mercado do mérito é preciso que o mérito se redefina pelo seu valor mercantil.


A resistência da universidade pública a esta transformação explica que ela esteja em crise não só no nosso país como no mundo inteiro. Em face disto, as forças sociais e políticas interessadas em transformar esta resistência, de sinal de crise, em estratégia de saída da crise, têm de tomar consciência que não irão muito longe se mantiverem a luta no plano do sim ou não às propinas. Terão de procurar o elo fraco deste modelo civilizatório, algo que ele tenha dificuldade em deslegitimar mesmo quando lhe é contrário. Em meu entender, esse elo fraco é a democracia participativa.


Daí a minha proposta para o caso de ser politicamente inviável a gratuitidade do ensino publico: uma vez garantida a igualdade de acesso, o pagamento das propinas deve ser um exercício de democracia participativa que permita à universidade reorientar estrategicamente o seu futuro, decidindo democraticamente o grau de consonância ou dissonância que pretende em relação ao modelo civilizatório dominante.


A proposta consiste no seguinte. As universidades devem reorganizar a sua contabilidade de modo a tornar transparente e clara a distinção entre despesas correntes e despesas de investimento. O Estado assegura a totalidade das despesas correntes e parte das de investimento; as propinas, que serão consideradas contribuições da sociedade e não dos estudantes, destinar-se-ão a complementar as despesas de investimento.


No primeiro ano em que for adoptada a utilização participativa das propinas, uma assembleia universitária constituinte decidirá sobre o método a seguir. Proponho um método com o seguinte perfil. Haverá três assembleias interfacultárias, uma por cada corpo (docente, estudantes e funcionários). Cada assembleia deve incluir entre duas e três faculdades. As assembleias terão dois objectivos: 1) discutir a definir as grandes áreas de investimento e o grau de prioridades de cada uma; 2) eleger os delegados (1 delegado por x número de participantes) ao Conselho das Propinas (CP). Ao CP compete: 1) harmonizar as propostas vindas das assembleias; 2) hierarquizar as áreas de investimento e definir o montante financeiro disponível para cada área. Nas votações do CP haverá uma ponderação do peso do voto dos delegados dos diferentes corpos. As decisões do CP serão explicadas em assembleias de faculdades abertas a todos os corpos. Tornadas públicas as áreas, as hierarquias e os montantes, será dado um prazo para a apresentação de projectos. Estes podem ser apresentados por qualquer grupo de docentes, estudantes e funcionários, pelas faculdades, centros de investigação, Reitoria e seus serviços centrais.


O CP nomeará uma comissão de peritos para avaliar os projectos. Os projectos científicos serão avaliados por uma comissão constituída exclusivamente por docentes e investigadores. Todos os outros projectos serão avaliados por comissões com representantes dos três corpos. Em qualquer caso, os membros das comissões serão recrutados noutras universidades portuguesas ou estrangeiras. Feita a avaliação, compete ao CP decidir o montante a atribuir a cada projecto aprovado, tendo em conta o mérito do projecto e o grau de prioridade da área de investimento em que se integra. Os resultados serão amplamente difundidos. O CP nomeará uma comissão de acompanhamento encarregada de monitorar a realização dos projectos aprovados, que apresentará um relatório a ser discutido no CP e nas assembleias interfacultárias do ano seguinte.


Um método com este perfil garantirá a transparência na utilização das propinas, mobilizará a universidade, e fará dela um testemunho da única alternativa à lógica do mercado: a democracia participativa.




(Publicado na revista "Visão" em 11 de Dezembro de 2003)
publicado por Carlos Loures às 21:00
link | favorito
Domingo, 25 de Julho de 2010

Reflexões sobre Bolonha - 3

Júlio Marques Mota*

(Continuação)

ANEXO (1)

Nota Prévia (de um texto de Economia Internacional)

O presente trabalho é a reformulação e a simplificação de um texto do mesmo nome que foi durante anos utilizado nesta disciplina. A redução da carga horária, ao abrigo das normas e dos objectivos decorrentes do chamado processo de Bolonha levou a que neste texto se procedesse a certos e, por vezes, prolongados “cortes”, de modo a adaptá-lo aos tempos de leccionação estabelecidos e ao momento na licenciatura em que genericamente estes conteúdos são estudados. Não é a mesma coisa ensinar dada matéria a alunos do quarto ano ou do terceiro ano, e também não pode ser indiferente se é ensinada no primeiro semestre ou no segundo.

Trata-se pois de fazer as respectivas adequações que no fundo se traduzem numa simples expressão: trata-se de fazer as simplificações adequadas, de modo a que o nível de ensino se enquadre no primeiro ciclo do ensino universitário pós processo de Bolonha.

Tal como antes, mantemos a certeza de que é fundamentalmente a “trabalhar” sobre as matérias que se ensinam, reconstruindo-as de acordo com as matrizes dos alunos a que se destinam, e sem que isso signifique a redução na capacidade de conceptualização e abstracção, que se pode aprender a ensinar, ou seja, que se pode igualmente aprender a trabalhar sobre um dos mais delicados e abstractos objectos de trabalho que se conhecem: a inteligência dos outros. Se a tarefa já não era nada fácil, continuar a fazê-lo com a mesma qualidade nos tempos que se adivinham pode ser mesmo muito difícil. Outros tempos, outros tempos de resistência, de que também não se pode abdicar, por muito fortes que sejam as forças em sentido contrário. Haverá com certeza tensões naqueles para quem ensinar é ainda um trabalho difícil de construção e reconstrução do saber, para se poder assim chegar ao ensino sobre o concreto.

Na Declaração de Bolonha, reconhece-se que “[se assiste] a uma consciencialização crescente em grandes áreas do mundo político e académico assim como na opinião pública da necessidade de criar uma Europa mais completa e alargada, nomeadamente considerando e dando solidez à sua dimensão intelectual, cultural, social, científica e tecnológica.”[1] Não conseguimos é compreender como é que reduzindo cargas horárias, reduzindo o número de anos lectivos, aligeirando os currículos com simplificação dos níveis de abstracção na própria leccionação, se pode conseguir o que afinal se diz pretender.

Por tudo isto, concordamos plenamente com Luís Reis Torgal[2] quando afirma que o processo de Bolonha “era apresentado pelos governos e pelos seus ideólogos em operação de marketing, feita de aparências e representações, apontando para uma imagem ‘mais inteligente de se ensinar e aprender’ (como se ‘saber ensinar’ e ‘saber aprender’ fosse uma descoberta do século XXI!) e escondendo outras motivações económicas (num mundo em que a Economia é conduzida fora do domínio dos Estados). Assim, sob a bandeira do ‘Progresso’ e da ‘Modernização’, deram-se passos para trás, num verdadeiro ‘regresso’ a um ‘futuro-passado’.”

Os objectivos do processo de Bolonha assentam numa das mais profundas contradições em que pode cair um pedagogo primário: dizem-nos que precisamos de um ensino assente nas competências, mas basta então perguntar como se pode criar competências sem o saber que as suporte, que as produza. Que este processo seja conduzido por alguém especialista em física é ainda mais de espantar, porque nessa ciência, hoje tão exacta como probabilística, não há competência que valha sem o suporte teórico que a gere. Que se leia a resposta do “velho” Einstein ao “jovem” Heisenberg, resposta de um velho que viveu para a ciência e para a democracia a um jovem que ficou, na Alemanha de Hitler, a servir o nazismo e que pode ser expressa, em síntese, da seguinte forma: não há facto em física que não precise da teoria para o definir como facto.

Sem uma sólida base teórica não pode haver prática consistente, que resista a um mundo em permanente mudança. Querer substituir um ensino abstracto por um ensino prático imediato, querer substituir um ensino assente no raciocínio abstracto por um ensino assente num concreto imediatista é, inegavelmente e em simultâneo, destruir a possibilidade de conseguir o primeiro tipo de ensino, com o qual todos nós nos formámos, e destruir a capacidade de criar as bases necessárias à obtenção das competências de que tantos falam. Os físicos sabem-no bem, mas, ironia das ironias, para isso devem então estar fora do poder e das malhas de qualquer pacto de estabilidade com o qual ninguém afinal se quer justificar. De resto, em Lisboa adoptou-se, no ano de 2000, a Estratégia de Lisboa que tinha como objectivo tornar a Europa “no espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo baseado no conhecimento”, o que implicava um enorme acréscimo de esforços em matéria de investigação e desenvolvimento, de inovação, de tecnologias da informação e de comunicação. Tudo isto deliberadamente falhou. Da ideia de economia mais dinâmica em matéria de conhecimento quase dez anos depois nada resta e, em Lisboa, a alternativa parece ser agora dotar o país com um ensino e formação o mais simplificado e mais barato possível. Ainda aqui vale a pena citar Luís Reis Torgal quando afirma: “Em nome do “actual movimento de modernização de universidades e politécnicos para desenvolvimento de sociedades e economias de conhecimento”, como reza o prólogo da proposta de lei, com chavões que falam por si, poderá estar a matar-se, sem o dizer, a Universidade como um espaço científico e um espaço crítico”.

Julgamos ser tempo de corrigir o erro em vez de se estar sucessivamente a aumentá-lo, conforme se pode inferir no horizonte quanto às dotações orçamentais para o ensino superior. Bertrand Russel tinha razão, quando afirma que “os cientistas esforçam-se por tornar possível o impossível, e os políticos por tornar o possível impossível”. E aqui o possível, como pensável, seria querer aumentar os níveis de formação e de investigação como resposta e como defesa face à economia cada vez mais globalizada, onde as pressões do “mercado” e as tensões sobre os níveis de conhecimento e sobre os quadros altamente formados são cada vez maiores. Que o digam os engenheiros da Renault e da Peugeot, que o diga a direcção da EADS quando deslocaliza centros de concepção e de investigação fundamental, e assim sucessivamente. Que o digam todos eles porque seguramente estes sabem do que se está a falar. Em vez disso perdeu-se uma oportunidade histórica de criar uma Universidade para responder aos mais intensivos desafios que hoje são colocados às sociedades modernas e, por essa via, como sublinha Luís Reis Torgal, “tendo perdido a Universidade uma excelente oportunidade para reflectir sobre o seu presente e sobre o seu futuro”.

Tal como o texto anterior que lhe serviu de base, o presente trabalho é produzido no âmbito da disciplina de Economia Internacional e corresponde agora, como já foi dito, à necessidade de sistematizar, simplificar e tornar mais acessível ou menos trabalhoso para os alunos alguns dos principais resultados da teoria neoclássica sobre o comércio internacional, o crescimento económico e a evolução dos termos de troca. Sendo esta a origem deste texto, é lógico que a preocupação máxima que presidiu à sua elaboração tenha sido de ordem pedagógica, mesmo com risco de várias repetições, quer do ponto de vista temático, quer de apresentação, o que transparece na sucessiva representação gráfica das ideias expostas, assim como no cuidado extremo na formalização matemática. Por esta razão, pensamos que os especialistas em teoria do comércio internacional não irão aqui encontrar nada de original, o que, por um lado, se deve provavelmente à minha incapacidade para o fazer, por outro, porque pretendemos apenas escrever para quem se defronta pela primeira vez com estas matérias e basicamente alunos do primeiro semestre de um terceiro ano.

Por este motivo, não se procurou aqui fazer a crítica aprofundada à teoria exposta nem sequer o pretendemos fazer mais tarde, porque esta exige conhecimentos mais aprofundados do que os possíveis de serem leccionados nesta disciplina. No entanto, a necessidade de uma análise crítica capaz de fornecer aos estudantes uma perspectiva diferente da do universo do Dr. Pangloss, que é transmitida pela teoria neoclássica, é tanto mais importante e necessária quanto os modelos desta teoria “escondem, por detrás de uma imponente fachada de símbolos algébricos, um impalpável conteúdo positivo de raciocínio”. Não temos quaisquer dúvidas que à teoria neoclássica assenta que nem uma luva a crítica de Herbert Simon quando diz: “penso que submeter os espíritos jovens e impressionáveis a este exercício escolástico é um escândalo. Eu, verdadeiramente, não espero dos economistas que retirem dos seus textos os elementos teóricos não válidos, é uma tarefa que não é para já. Mas não conheço nenhuma ciência que tenha a pretensão de falar de fenómenos do mundo real e que faça textos e discursos em tão flagrante contraste com a realidade”[3]. É neste sentido que ainda tentamos fazer com que algumas linhas críticas estejam inseridas no presente trabalho.

É necessário que os estudantes reconstruam, readquiram a sua própria visão do mundo, mas fazê-la é já estar a compreendê-lo, o que só pode ser feito com a ajuda de teorias e conceitos dotados de um poder descritivo e explicativo dos fenómenos. É importante, por isso, ir mais longe nesse sentido pois, caso contrário, corremos o risco de ficar apenas ao nível de “conhecimentos”, com um conjunto de pretensas certezas em que a própria teoria neoclássica prodigamente assenta. Esta pode levar os estudantes a tomar a sua representação do mundo como sendo o próprio mundo e isto quando esta teoria, como reconstrução do real, o deixa, do nosso ponto de vista, quase que completamente de lado. No mesmo sentido, Jacques Généreux vai ao ponto de afirmar “que a cultura neoliberal encontra a sua força na ignorância e na dissimulação dos seus fundamentos…, sendo a sua finalidade formar [pessoas] viradas para a acção e não para a reflexão.”[4] Contra as certezas da teoria dominante, rolo compressor do nosso imaginário e do nosso quotidiano, contra as certezas do “pensamento zero”, para utilizar a feliz expressão de Emmanuel Todd[5], por ausência ou por exclusão da necessidade de qualquer pensamento, julgamos que o papel do professor e dos textos feitos é, não o de oferecer certezas, mas o de procurar levar o estudante a ganhar a capacidade de ter dúvidas, a capacidade de pôr questões.

Parece-nos que hoje estamos cada vez mais distantes dessa lógica mas continuamos a defender que se deve ir mais longe na análise, mas isto significa fazer um outro percurso teórico no interior das hipóteses que sustentam a teoria neoclássica, tais como a ordenação das curvas de indiferença colectivas independentemente da repartição, a formação dos preços ao seu custo marginal, a remuneração dos factores segundo a sua produtividade marginal, a possibilidade de definir uma função de produção ou uma dotação de factores, tão importante na formalização desta corrente na explicação do comércio internacional, a capacidade de definir um stock de factores, a possibilidade de ultrapassar as dificuldades levantadas pela heterogeneidade de bens de capital, não se podendo aceitar a proposta de Magee quando nos diz “if the reader feels uneasy the use of the term ‘capital’ here with its attendant complexities completely ignored, then he should substitute the world ‘land’ for ‘capital’”[6]. Sem comentários! Claramente, o presente trabalho deveria exigir a sua continuação, até pela necessidade de uma visão crítica desta teoria, de modo que os estudantes não fiquem prisioneiros da lógica do “pensamento zero”. Mas isso deixa agora, com a reformulação efectuada, de ser possível, deixa de haver espaço e apetência. Mas não será esse o objectivo pretendido e confesso, com a convicção de que chegamos ao modelo ideal?

Nesta linha de resistências, também não será por acaso que Mário Soares, numa recente visita a Coimbra, nos alertou para o facto de um dos grandes problemas políticos de hoje é a triste realidade de se confundir socialismo com neoliberalismo.

A terminar esta nota prévia não posso deixar de agradecer aos docentes Margarida Antunes e Luís Peres a leitura crítica do texto que a este serviu de base, pela escuta atenta, ao longo de anos, das dificuldades sentidas pelos estudantes na aprendizagem das respectivas matérias, na perspectiva adquirida da melhor forma de os ajudar a compreenderem os temas em análise, pelas suas múltiplas sugestões e pelas propostas de alteração sugeridas e aceites ao longo da sua própria elaboração, sendo para mim claro que sem a sua contribuição não teria sido viável nem o anterior trabalho, nem a sua versão simplificada agora apresentada nas páginas que se seguem a esta introdução muito pessoal. Por isto, podemos mesmo afirmar que o presente texto é também o fruto da contribuição de duas gerações de professores.

Coimbra, Novembro de 2007

ANEXO II

Excerto de uma carta enviada a um antigo ministro da tutela do Ensino Superior

Coimbra, 18 de Abril de 2008

Caro Professor:

Tomo a liberdade de lhe escrever esta carta assente em dois pontos: o primeiro, a expressar a desilusão de quem está a assistira lenta agonia das Universidades, o segundo, para lhe apresentarmos um recente trabalho de grupo sobre a crise actual.

Sobre as Universidades e numa referência rápida quero agradecer-lhe a leitura cuidada que fez dos meus dois textos sobre o ensino superior. A escrevê-los hoje seria mais duro, pois, parafraseando um dos homens que mais me marcou em questões de educação e um texto que lhe mando em anexo, Antoine Prost, tenho o sentimento e a certeza de que estamos perante um Munique pedagógico e científico: capitulamos face à destruição rápida das Universidades, hoje a serem transformadas em liceus de má qualidade. Estamos silenciosamente a destruir ou a impedir que se crie a inteligência futura do nosso país. O termo Bolonha, mas não a declaração de Bolonha que é claramente muito mais séria, é o pretexto, é a capa, apenas isso, sabemo-lo hoje. O objectivo é a redução do défice, é a aplicação estrita de um modelo neo-liberal puro e duro, conduzido desta forma por socialistas, o que é estranho, é a aposta exclusiva nas formações curtas e num momento da curva da História que nos diz que tudo deve ser repensado, curva esta que, no dizer de Fukuyama, se iniciou com Regan e se conclui com a actual crise financeira. A actual política do ensino superior é ao mesmo tempo a aplicação cruel duma lógica de desrespeito total pelos nossos filhos e netos numa sociedade cada vez mais insensível e mais implacável, mais desregulamentada e a partir do próprio Estado, o que ainda é mais estranho. É esta mesma lógica que leva a que jovens com apenas 20 anos, diplomados e desinformados, credenciados por um diploma superior garante da sua não empregabilidade e da nossa incapacidade, sejam atirados para a fogueira do mercado, onde tudo é valido pela ausência de valores que neste predomina, como se tem estado a ver. Mas, agora, atiramo-los em nome da responsabilização individual. Os romanos davam a isto um outro nome, professor!

Certo da sua atenção, pedimos desculpa pela liberdade assumida e pelo tempo tomado e apresentamos sinceramente os nossos cumprimentos.

Atenciosamente

Júlio Mota

* Docente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

______________________________

[1] Declaração conjunta dos ministros da Educação europeus, assinada em Bolonha, em 19 de Junho de 1999.



[2] As citações de Luís Reis Torgal são extraídas do seu artigo “O processo de Bolonha e a gestão do ensino superior”, Diário de Coimbra, de 16 de Julho de 2007.


[3] Herbert A. Simon, “The Failure of Armchair Economics”, Challenge, 1986: 18-25.


[4] Jacques Généreux, La Dissociété, Paris, Seuil, 2006, p. 328 e s.


[5] Emmanuel. Todd, L’illusion économique, 1998.


[6] Stephen Magee, International Trade and Distortions in Factor Markets, 1976, p.15.

(Continua)
publicado por Carlos Loures às 21:00
link | favorito
Sexta-feira, 23 de Julho de 2010

Reflexões sobre Bolonha - 1

Júlio Marques Mota*

«Sobre o caos em que se tornou o ensino universitário abateu-se o chamado processo de Bolonha, obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista. O primeiro acto de qualquer governo com um mínimo de sensatez tem de ser a revogação das abstrusas disposições desse pseudo-acôrdo feito à revelia de professores e investigadores, que não tiveram a coragem de o rejeitar e se sujeitaram a passar sob a forcas caudinas.»

in Vitorino Magalhães Godinho, Os Problemas de Portugal, Os Problemas da Europa, pág. 62, Edições Colibri, Edição revista e aumentada, 2.ª edição, Abril de 2010.

Não estarei presente nas reuniões, na Universidade, a discutir as melhorias do ensino no âmbito da reforma de Bolonha. A razão é simples, não acredito na eficácia de nenhuma melhoria do ensino universitário no âmbito e no interior desta reforma. Antes, a Universidade estava mal, estava doente, mas estava estruturalmente recuperável, enquanto agora, com Bolonha, ficou gravemente enferma, ferida de morte, diríamos mesmo, a exigir uma reforma que esteja nas antípodas da de Bolonha o que não é pensável dentro do modelo e da situação actual.

Da mesma forma que não acredito nas propostas de reformas na política económica, deste país ou de qualquer outro na Europa, enquanto se continuar a pensar que a saída da crise está numa maior intensidade na aplicação dos instrumentos que a geraram, creio que é impossível pensar uma outra Universidade dentro do quadro formal que criou a actual, o quadro de Bolonha.

Continuando a analogia com a crise actual, os governos europeus estão todos a optar, repentinamente, diga-se, pela redução drástica dos défices orçamentais, sendo claro para toda a gente que se trata de imperativos impostos pelos mercados financeiros. Com alguma tristeza, assistimos à dança não das cadeiras mas das afirmações que deixam de ser verdade de um momento para outro e nas mesmas pessoas, todas elas com altas responsabilidades políticas. É agora comum assistirmos a afirmações como por exemplo: a crise acabou e por isso acabam os estímulos económicos, acabam-se as medidas de protecção e de apoio social entretanto estabelecidas. Retiram-se as políticas porque deixaram de ter sentido? Produzem-se então os discursos que salvaguardam os mercados, os mesmos que geraram a crise, geram-se as políticas que satisfazem a sua ganância, para rapidamente recomporem o valor dos seus activos, impondo contra as populações e contra possivelmente o futuro dos respectivos países, fortes medidas de austeridade em tempo de crise. Mais do mesmo sistema como solução e, assim, nem sequer percebemos, como o afirma a Alta Autoridade dos Mercados financeiros francesa, Jean-Pierre Jouyet, “que nous étions en juin au même point qu'à l'automne 2008, mêmes incertitudes sur la capacité de résistance de nos banques, mêmes angoisses sur le tarissement du financement de nos économies et sentiment que la finance n'a en rien perdu de son opacité, de sa volatilité et de sa voracité. A la seule différence que les marchés seraient plus encore qu'hier instrumentalisés par des algorithmes qui arbitrent à la place des hommes et que les Etats n'ont plus les réserves suffisantes pour se porter au secours de leurs banques”.

Por se seguir o caminho inverso daquele que a situação exige, inverteu-se a lógica da democracia quanto à função do Estado. Uns obscuros departamentos de trading de alguns poderosos bancos de investimento, uns poderosos e quase que anónimos hedge funds, uns obscuros especuladores, o mercado afinal, determinam num obscuro mercado os valores dos CDS, em que ninguém nos explica como funcionam, como se determinam as suas taxas; questão extraordinariamente importante quando são estas taxas que vêm a determinar o valor das taxas de rentabilidade implícita dos títulos da dívida pública e o peso do serviço da dívida soberana, quando depois é este que determina o volume de impostos a receber e o volume de despesas a cortar, os grandes investimentos públicos para o futuro a desaparecer. Tudo isto em nome das gerações futuras. E assim se determina o sentido das políticas nacionais e se anula a democracia. Quer-se agora sacrificar os próprios Estados, a própria democracia, no altar da soberania absoluta dos mercados financeiros, cada vez mais opacos, comme il faut. O resto é a plêiade de discursos dos nossos políticos e dos nossos intelectuais a glorificar o caminho imposto pelos mercados financeiros, prisioneiros que são, explícita ou implicitamente, do sentido da eficiência que a estes continua ainda a ser atribuída. E tanto é assim que até os traders ,ou gerentes desses obscuros agentes, nesses obscuros mercados, com bónus na ordem das muitas dezenas de milhões de dólares por ano, são também eles classificados, avaliados, por empresas também elas internacionais, globais, e também elas sujeitas às agências de notação. Com tanta avaliação, do primeiro ao último elo da cadeia, quem se atreve a pôr em dúvida a eficiência dos mercados? E aqui a analogia com Bolonha é imediata: também a Universidade vai ser submetida à mesma lógica de eficiência, à mesma lógica dos rating, das avaliações, mas com uma grande diferença. Enquanto os rating para os traders marcam o ritmo dos bónus futuros, o ritmo dos milhões de dólares a receber, na Universidade, porque não há dinheiro, não há sequer tostões. Os rating para os professores têm apenas uma função ideológica: cumprir o modelo! Quando na verdade o que deve ser posto em causa, e em primeiro lugar, é o próprio conceito de eficiência. Se não é assim, como perceber que , estando a caminho da terceira grande recessão e em que estamos a colocar em risco milhões de desempregados e lançar muitos mais milhões de crianças, que vão deixar de ter futuro por mergulharem em situação de pobreza de onde não poderão mais sair, como perceber que estamos a criar situações de redução de ritmos de crescimento e por aí a aumentar o risco de incumprimento dos países, a aumentar então e de novo os famosos CDS, a aumentar então a dívida soberana outra vez, enquanto garantida, passo a passo da cadeia de ligações, a eficiência dos mercados, e de acordo com as normas de eficiência próprias de cada elo da cadeia de ligações que caracteriza o sistema. Em suma, como aceitar que se corra o risco de pagarmos cada vez mais para passarmos a dever cada vez mais? Em suma, e em paralelo, como aceitar que se corra o risco de ter cada vez mais estudantes a saberem cada vez menos, sem que a responsabilidade possa ser deles? E, francamente, não o é. Mas também tenho a certeza de que dos professores também não é: só se ensina o que os outros aprendem e aqui ensinam ao máximo o que lhes é possível, mas o drama é que o possível é cada vez mais reduzido. Mas discutir o que queremos como possível, o que queremos como outra realidade e outra profundidade de ensino, é então discutir o sistema que produz e alimenta esta crise no ensino. Mas isso não se faz, porque estamos no melhor dos mundos possíveis de Pangloss, portanto, não questionável. De um lado, a crise financeira, e, do outro, a crise do ensino., em nenhum lado há culpados. É uma questão de mercado, de sistema! Por isso, ser-se contra o actual sistema de mercados financeiros é igualmente ser-se contra o sistema de Bolonha ., são duas realidades aparentemente distintas, mas são apenas duas esferas de actividade diferentes mas com a mesma raiz de fundo: o modelo neoliberal!

(Continua)
_______________
 
* Docente na Faculdade de Economia  da Universidade de Coimbra
publicado por Carlos Loures às 21:00
link | favorito

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links