Terça-feira, 3 de Maio de 2011

Uma nova maneira de narrar e uma nova maneira ética - Josep Anton Vidal

 

 

Josep Anton Vidal  Uma nova maneira de narrar e uma nova maneira ética

 

 

 

Notas de leitura de Jacob’s room, de Virginia Woolf

 

A estrutura narrativa de "Jacob's room" e a técnica de Virginia Woolf sugerem a imagem de um puzzle narrativo cujas peças se integram num todo unitário sem que nenhuma peça perca, não obstante, a sua identidade própria. Assim, o resultado unitário da narração dependeria do contributo de todas e de cada uma das peças, ao mesmo tempo que cada peça se explicaria em função das imediatas e da “paisagem narrativa global”.

 

No terreno da narrativa, o símile do puzzle equivale à criação de um universo que, com o contributo de cada um dos elementos singulares, constrói um universo integral, e este, por seu turno, dá sentido a cada uma das peças que o integram. O símile do puzzle poderia, em parte, explicar a técnica narrativa de Woolf, porém não é suficiente. Visto na perspectiva do resultado final, o puzzle, pese embora a aparente complexidade que a multiplicidade das peças lhe confere, não difere da fotografia, da imagem única, entendida como representação global e total de um universo bidimensional. No entanto, a obra de Virginia Woolf não pretende ser um universo, e muito menos bidimensional, porque não se fecha em si mesma, sendo feita de janelas que se abrem para paisagens diferentes, para mundos e universos cuja presença assume potencialidade e entidade narrativa, permanecendo, no entanto, inexplicada ou apenas intuída.

 

Creio que, se queremos empregar um referencial formal de natureza não literária que possa servir como símile da maneira de narrar de Virginia Woolf, o devemos procurar nas experiências dos artistas plásticos, pintores e escultores, dos primeiros anos do século XX e, de forma muito característica, no Cubismo. Não é que a narrativa de Virginia Woolf tenha recebido a influência da experimentação cubista, mas sim, experimentando com o material narrativo, Woolf chegou a soluções literárias similares a àquelas que o Cubismo e as primeiras vanguardas elaboraram a partir de materiais plásticos e da tradição das técnicas pictóricas e escultóricas.

A penetração social e cultural da psiquiatria não só quebrou as visões unitárias e as explicações monolíticas da existência e do imprevisto humanos, como além disso, os tornou impossíveis, fechando-lhes as portas do futuro. E este não foi o único fenómeno que se foi gerando ao longo do século XIX e contribuiu para o desmoronamento com que o século XX começou. A verdade é que com esse desmoronamento se tornou impossível a partir de então a construção de um juízo moral ao abrigo de uma concepção – fosse ela qual fosse – da ordem social. Desde então sabemos que a realidade só pode ser objecto de explicações múltiplas e diversas que, ao sobreporem-se umas às outras, renunciam às explicações simplistas e ao ponto de vista único, assumindo a existência como complexidade que ultrapassa a percepção sempre limitada, do observador, do narrador ou do artista – e a do ideólogo, e a do político...

 

A multiplicidade de formas, integradas na unidade que a obra de arte lhes confere, não serão já nunca mais uma reprodução da realidade, nem sequer uma reconstrução ou recreação da realidade, mas sim uma nova realidade, que existe apenas como obra de arte, e que não é um reflexo da realidade, mas sim uma realidade em si mesma. Esta complexidade, no entanto, separa-se conscientemente, tanto quanto lhe é possível, da complexidade pessoal do autor ou do observador, que – contrariando a herança romântica – renuncia a misturar-se no espaço que compete ao objecto artístico na própria obra, e por isso, o desenho e as formas, o traço nas artes plásticas e a linguagem na literatura, se estilizam, ensaiam caminhos minimalistas, procuram a simplicidade da linha, as cores simples, o movimento… Uma simplicidade que, no entanto, está ao serviço da complexidade.

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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Sexta-feira, 18 de Março de 2011

O Desafio da Criação - Juan Rulfo

Ensaio

 


Juan Rulfo  O Desafio da Criação

 

 

Infelizmente, eu não tive quem me contasse histórias; na nossa aldeia, as pessoas são fechadas, sim, completamente, ali, uma pessoa é um estrangeiro.

 

Eles estão a conversar; sentam-se, à tarde, nos seus cadei­rões de verga a contar histórias e coisas dessas; mas assim que uma pessoa chega, ficam calados ou começam a falar do tempo: «hoje parece que vêm para aí nuvens...». Enfim, eu não tive essa fortuna de ouvir os mais velhos a contarem histórias; por isso, vi-me obrigado a inventá-las e eu creio, precisamente, que um dos princípios da criação literária é a invenção, a imaginação. Somos mentirosos; todo o escritor que cria é um men­tiroso, a literatura é mentira; dessa mentira, porém, sai uma recriação da realidade: recriar a realidade é, assim, um dos princípios fundamentais da

criação.

 
Considero que existem três passos: o primeiro destes é criar a personagem, o segundo, criar o ambiente onde essa persona­gem se vai mover e o terceiro é como essa personagem vai falar, como se vai exprimir. Estes três pontos de apoio são tudo o que é necessário para contar uma história; agora, eu tenho receio da folha em branco e, sobretudo, do lápis, porque eu escrevo à mão; mas quero dizer, mais ou menos, quais são os meus procedimentos de uma forma muito pessoal. Quando eu começo a escrever, não acredito na inspiração, nunca acreditei na inspiração, escrever é uma questão de trabalho; pormo-nos a escrever para ver o que é que sai e encher páginas e páginas para que, de repente, apareça uma palavra que nos dê a chave daquilo que há a fazer, do que é que aquilo vai ser. Às vezes acontece-me escrever cinco, seis ou dez páginas e não aparece a personagem que eu queria que aparecesse, aquela persona­gem viva que tem de se mexer por si própria. De repente, apa­rece e surge, e vamo-la seguindo, vamos atrás dela. À medida que a personagem adquire vida, já podemos, então, ver até onde vai; seguindo-a, somos levados por caminhos que desco­nhecemos mas que, estando ela viva, nos conduzem a uma rea­lidade, ou a uma irrealidade, se quiserem. Ao mesmo tempo, conseguimos criar aquilo que se pode dizer, aquilo que, afinal, parece que aconteceu, ou podia ter acontecido ou podia acon­tecer mas nunca aconteceu. Assim, creio eu, nesta questão da criação é fundamental pensar naquilo que sabemos, em que mentiras vamos dizer; pensar que, se entramos na verdade, na realidade das coisas conhecidas, naquilo que vimos ou ouvi­mos, estamos a fazer história, reportagem.

 

 

 

publicado por Augusta Clara às 19:00
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