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Foto: Maria Monteiro |
Marcos CruzNão vão muitos anos, a Praça da Liberdade no Porto exibia um brilho próprio, único, e não era apenas o dos sapatos de quem não prescindia da sua engraxadela. Era o que lhe emprestavam os próprios engraxadores, tripeiros retintos, línguas soltas, peças típicas de um 'puzzle' hoje a desfazer-se
"Estado civil: mouro!", antecipou, em passo apressado, um habitué da Praça da Liberdade, quando José Almeida, engraxador surdo-mudo, mostrava à reportagem do DN o seu bilhete de identidade, substituto possível da voz sumida. Em breve, não será a única. O barulho das escovas, dos panos e, sobretudo, das apimentadas cavaqueiras dos abrilhantadores de sapatos, autênticas bandeiras do mais retinto espírito tripeiro, corre sério risco - não de ir para o olho da rua, que aí já ele está há alguns anos - de desaparecer de uma vez por todas do quotidiano público do Porto.
Neste momento, são seis os resistentes de uma profissão outrora fundamental à mecânica da Baixa. Futebol, política, sexo, era aquele o palco principal dos temas quentes, abordados com um humor típico, imbatível, de quem sabe que, para alguém cair em graxa, vale a pena ser engraçado. Na rua, nas bancas interiores ou nos cafés das redondezas, o cliente vinha, lia o jornal, dava o seu "bitaite" e, enquanto o profissional puxava o lustro ao calçado, ele puxava o lustro ao profissional. Uma partilha que não raro reverberava nos transeuntes.
"Às vezes, a cidade parece vazia." A frase, deslocada, é de hoje, vertida pelo olhar nostálgico de Eduardo Marques, 12 anos de praça, o suficiente para criticar as obras de requalificação a que a autarquia de Rui Rio a sujeitou. "Ficou feia. O jardim dava-lhe outra graça, as pessoas estacionavam ali, passeavam, vinham engraxar. Este passeio enorme, agora, é para quê? Perdeu-se o movimento que isto tinha", diz, secundado por Maria José Rodrigues, florista, coisa rara naquele amplo cenário de pedra: "Olhe, daqui a pouco passa aí a polícia e multa tudo. Há clientes que vão a correr só com um sapato para tirar o carro, que eles não perdoam."
O discurso inevitável aparece pela boca de José Ferreira. "Diziam mal do Salazar, mas, no tempo dele, a gente trabalhava a valer. Hoje falamos de política. E quê? Vivemos pior!" O engraxador reconhece que a culpa não cabe só à política, até porque "a malta nova prefere andar de sapatilhas" e, além disso, a sociedade não tem os costumes de antigamente. "Os ardinas acabaram, os cauteleiros para lá caminham. É assim...", parece resignar-se, até novo surto de indignação. "Não custava nada à câmara montar aqui umas barraquinhas. Assim, quando chovesse, já podíamos trabalhar. Estamos dispostos a pagar um aluguer pequeno", adianta, qual porta-voz de uma solução acordada.
A verdade é que, sendo este o sentimento geral, a proposta não resulta de nenhum plenário. Afinal, mesmo unidos no declínio, os engraxadores da praça não se solidarizam. "Alguns clientes vêm aqui e, se eu não estiver, vão embora. Os outros sentem um bocadinho de inveja, mas eu acho que não têm de levar a mal. Isto é como ir ao barbeiro", alega Marques, o mais solicitado. "Eu com aqueles gajos quero pouco paleio", diz José Ferreira. "Juntei-me aqui com este meu colega, o Zé [José Gesto, 60 anos], devido à amizade antiga que temos. Falamos os dois e chega."
Armando Monteiro, por sua vez, juntou-se a Marques, mas é como se cada um estivesse sozinho. Nem sombra de relação. Conversas ficam para os clientes, que se vão fidelizando a este ou àquele. Ironicamente, o elo de ligação entre todos é o único que não pode falar: José Almeida, surdo-mudo, de quem ninguém ali diz mal, mesmo sendo "mouro". Infelizmente para ele, está longe de ser um mouro de trabalho.