Hoje falamos de...
A minha amiga da onça
Adão Cruz
A conversa que deveria ser com a minha amiga da onça não o é. Desta vez não quero nada, directamente, com ela. Não é que esteja zangado, mas um tanto irritado. Não quero falar com ela mas quero falar dela, ainda que me digam que é má-língua. Ouçam-me, meus caros amigos. Ouçam-me com atenção, pois a vossa compreensão é fundamental para o nosso mútuo entendimento. É com os verdadeiros amigos, independentemente do prazer e da emoção, que a nossa dialógica tarefa se pode aproximar da psicologia cognitivista contemporânea.
Eu sei que nunca pensara apaixonar-me desta forma! Lá erótica é ela! Lança as feromonas no ar, hoje e através dos séculos, e depois nada promete, nada garante e tudo atraiçoa. Tantas foram as emboscadas com que me saiu ao caminho que eu, ainda hoje, vivo aterrorizado com a hipótese de ter sido, e de ser ainda, um monte de contradições. Uma análise mais profunda e uma autocrítica mais racional parecem, finalmente, começar a libertar-me desse pesadelo. Para isso muito contribuiram os meus encontros com filósofos como Jean Pierre Changeux, Umberto Eco, Wassily Kandinsky, Alain Prochiantz, Dino Formagio, Ernst Kris, Otto Kurz, Omar Calabrese, Ortega y Gasset, Vicente Jarque e Arthur Danto, entre outros, que me ajudaram a fugir dos campos de concentração do espírito e dos gigantescos congeladores de ideias.
De uma forma ou de outra, sempre estivemos convencidos de que amanhã vamos todos acordar com uma pérola no cu. As mais sãs virtudes, as mais finas e puras partículas da nossa substância, consagradas ao fim dos anos numa pequenina preciosidade imortal! Se a ostra o consegue, por que não há-de consegui-lo o Homem, com biliões de neurónios, sessenta biliões de células, noventa e seis mil quilómetros de vasos sanguíneos e seiscentos milhões de conexões por milímetro cúbico de cérebro? Mas foi ela, valendo-se da sua atractiva figura e das suas múltiplas e polifacetadas relações, quem sempre foi criando este espírito, escondendo a própria vulnerabilidade e a fragilidade do seu equilíbrio na caminhada para novos limiares de consciência, reflectidos na pintura como descontinuidades, como roturas insidiosas, ou como profundas alterações na representação do mundo em resposta às forças da história e da vida.
No campo tremendamente complexo da sensibilidade do presente e nos domínios da estética e da filosofia da arte contemporânea, há que ter muito cuidado com as manigâncias dessa bela e maquiavélica senhora. A estética, força interpretativa do belo, o belo, sensação e não ideia, a arte, sensibilidade pura cuja essência não é possível captar racionalmente, a arte-estatuto de linguagem são questões histórico-fenomenológicas que sempre lhe coloquei, sem que, alguma vez, tivesse tido a gentileza de me responder de forma convincente e não irónica.
9. A emoção.
Se o processo educativo começa na vinculação dos seres humanos mais novos aos que os antecedem, é um processo que fica dependente da afectividade entre as crianças e os adultos que tomam conta delas. Nas sociedades primitivas, cultiva-se a afectividade entre progenitores e filhos, e entre iniciador e iniciados. O conteúdo é a explicação dos laços sociais que unem as pessoas entre si, a devoção a quem explica, o respeito ao totem e à divisão taxonómica e hierárquica entre pessoas, envolvendo direitos e obrigações mútuas. Uma grande maioria de povos africanos explica ou o Alcorão, que define principalmente onde deve estar colocado o coração de uma pessoa. Nos povos ocidentais, também desde há centenas de anos, como acontece no caso muçulmano, o código em que a infância é treinada é o do amar, respeitar, entender-se a si próprio. É deste ensino que os grupos domésticos retiram as suas maneiras de se relacionar; e ainda que entre eles existam rixas e agressividades, a relação afectiva acaba por ser a mais importante, a procura de harmonia e comunicação o alvo principal do que diz se faz. Isto não porque a lei mosaica, ou kiriwina ou Tallensi, o mandem, mas porque entre estes povos, como entre judeus, ciganos, muçulmanos, cristãos e católicos, todos eles, seres humanos enfim, a capacidade de amar existe como a pedra mármore que o pensamento e a experiência histórica vêm talhando, esculpindo, dando forma e direcção, hierarquia e orientação. À criança que aprende e desenvolve a capacidade humana de construir amor e entendimento, falta-lhe experiência de deslealdade e traição; ignora o valor de transacção como moeda de troca: confiando em quem toma conta dela, deixando correr o fluxo da confiança e prevendo um mundo de festa.
É-lhe ainda entregue ritualmente, quando está na idade estimulada de entendimento, o conhecimento, palavra a palavra, das formas de amor e estima que os seres humanos podem praticar entre si. Finalmente, a emoção é coroada pela prática específica de produzir a vida por meio do trabalho organizado na base do respeito e obediência a quem detém a autoridade: o trabalho rural, nativo, e de outras minorias mesmo ocidentais, como pescadores, operariado industrial, e a colaboração doméstica que existe em todos os grupos e classes, caracteriza-se para as crianças pela adesão. Há grupos onde parece reinar a raiva e a disputa perpétua, mas, como tenho observado, os filhos ficam mais coesos entre eles; os pais têm que ser vencidos permanentemente, mesmo quando têm que lutar para ganhar pelo grito e pela porrada aquilo que não está garantido por uma outra maneira de afectividade (a meiguice das classes burguesas como estratégia de solução). A idade da pré-iniciação é o período de treino de todas as emoções que mais tarde vão configurar o adulto. Esta etapa do processo educativo desenvolve-se ao longo da vida e repete-se nos próprios filhos que as crianças virão a ter. Exprimem-se de forma diferente nas culturas distantes e nas que estão em contacto umas com as outras.
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