Anteontem, fazia um frio medonho. Cumpri as rotinas: comprei os jornais, três, fui à pastelaria e sentei-me na mesa habitual, junto à vitrina maior. Estava embaciada e o interior do estabelecimento cheirava a café como lhe cumpre. Os clientes do costume e o ambiente de concerto falhado. O correio trouxera-me um livro de Ruben A., Um Adeus aos Deuses, editado pela devoção atenta de Liberto Cruz, chancela da Assírio & Alvim, e prefácio de Rosado Fernandes. Gostava muito do Ruben: do seu inesgotável talento para interpretar as coisas da vida, do júbilo esfuziante com que se movia, como andava, rápido, ziguezagueante, sorriso prazenteiro, transeunte sempre apressado.
Entrava na Redacção do Diário Popular, cumprimentava de fugida, sentava-se, invariavelmente, nas mesas de três jornalistas: Jacinto Baptista, José de Freitas e na minha. Por minutos. Não tinha tempo para obscuros devaneios. "Tudo na mesma. Mas um dia vai mudar. Não sei é quando." Três frases que resumiam analogias procuradas, desejos discretos, o pulsar agitado de um coração em permanente alvoroço.
Salazar detestava-o, tanto quanto ao estilo de que se servia para dizer o mundo. Despediu-o. "Este homem é destrambelhado." Não percebia a grandeza do funcionário. Tal como Marcelo Caetano injuriara Raul Brandão e o Húmus, num texto vergonhoso por ignorante e sórdido. Os tiranos execram aqueles que escapam às suas esquadrias. Ruben, sobre ser um prosador incomum, um romancista, um memorialista e um cronista de primeiríssima água, especializara-se em D. Pedro V, sua paixão de embalar.
"Tudo na mesma. Mas um dia vai mudar. Não sei é quando." Na pastelaria de bairro, sentado na segunda-feira de todas as decepções, recordo o amigo que batalhou contra as superstições da época, utilizando o adjectivo como modo de tomar partido e as espantosas criatividade e imaginação para se proteger da infâmia do tempo. Um Adeus aos Deuses é um livro único e, simultaneamente, a comovida expressão de quem ambiciona fugir para os seus mitos a fim de se refugiar das violências da realidade.
A música que Ruben A. possuía era-lhe própria e sistema de exclusividade. A sensibilidade ilimitada de um criador extraordinário, cujo estilo é o particular panteísmo de quem quer ter a lua junto de si.
Na manhã de segunda-feira, no after day acabrunhado que nos impingem como novidade e festa manifesta-se, pegajosa e escorregadia, a nefasta tristeza de um dia que se continua a outros dias glaucos e viscosos. Revejo-o, saltitante, sorridente, célere a entrar na Redacção. Vai ali e vem já. Entrega o original e corre para a a saída. Ruben A. A recordação de épocas felizes, porque alagadas de esperança, sobrevém a todas as nefastas melancolias.
"Tudo na mesma. Mas um dia vai mudar. Não sei é quando."
Ruben A. O Mundo À Minha Procura
Onde estava o amor? Ela? Toquei ao de leve na viela do Sobreirinho. Aproximei-me da casa, um monte de fantasmas expeliu saudades de outrora. Parei uma nesga. Senti as pernas tremerem. Um outro eu permanecera ali todos estes anos desde que tinha deixado o Porto. Reconheci-me. Abracei-me. Eu ficara puro à espera do amor. Disse-me a mim que Ela tinha casado. O quê! Sim, foi há quase dois anos, na Primavera, quando se casa no Porto. Ia tão bonita de noiva.
O mundo fugira-me naquele momento. As casas tornaram--se baças, os jardins secos, queimados vivos, os seres petrificados, as almas em busca de um norte que eu não sabia onde pairava. Por ali eu entrara, dali eu saíra. Ainda sofria. A pele arrepiada, as portas fechadas, janelas corridas, silêncio de um momento a sós em que o espírito parece Deus. Como era possível Ela ter casado? Não esperara por mim! Surgia, no encontro das coisas da vida, uma certeza de que há pessoas que não esperam por outras. Têm mais pressa. Como poderia falar com Ela?l Sentia-me ludibriado pelo destino. Ela fora habitar um cemitério que eu não sabia onde situar. Talvez na periferia, debruçado sobre a paisagem, como todos os cemitérios que querem as almas bem ricas de horizontes. E quem seria o guarda daquele corpo? Um mundo rodava, o livro virava a primeira grande página, a contagem para a frente trazia cicatrizes que precisavam de muita habilidade no disfarce. Mais ainda: as operações de beleza eram estéreis nos casos sentimentais. Como é que Ela podia ter casado?
Havia outras verdades que eu não entendia. O azul do céu?! Chegara tarde às coisas, aos seres, às cores. Quando quis levantar voo, fui agarrado por uma força brutal que me prostrou inerte no sangue daquele mundo que lá longe ria de mim. Cheguei a casa da Tia Teodora e tirei a roupa da mala, arrumei a tralha a uma banda, e no esbracejar ia sendo novamente inundado por bagas sucessivas, enormes, de Amor. — No meu quarto, isolado, vendo as correntes de alta tensão eu afogava o requeimado vivo. Abri a janela, olhei para o muro que me viu cair, horas certas em que E. C. passava. Lá ia empurrando o carrinho com o cão à trela. Inglesa segura, bem penteada, sem desalinhes, inglesa de peito escondido como manda a regra puritana. Ela, casada? Sim, meu filho da Mãe, casou-se para arrumar o fim da guerra. E a quem tinha de pedir autorização? Não era a mim, pedaço de asno a fazer cortesias, pateta das luminárias a representar de bobo no palanque de Cascais. Ela estava de perfil, quase silenciosa, ouviam-se palavras de viés, de quase amor. Com quem? E a noite de núpcias? E eu não assisti! Chiava atolado de lassidão, uma baba de gozo por um triz azarou a vista, marrei forte, virei a cabeça para os fundos e os olhos pousaram no Campo Alegre. Não esfrangalhara a virgindade, menos a dela. Casada?! E eu de alegria lorpa, ah, ah, ah, ah, risotas de quem salta de casota, mordaça na dentaça, ah, ah, ah, pistoleiro de matar, pantomineiro gargalhando a frio. Espinhela caída, debruçado, turvo, oftálmico, eu agarrava o destino na sequência de uma razão que agora me pertencia. Tinha perdido o comboio, aquele comboio jamais voltaria ao ponto de partida, entrara numa via única, a toda a brida, nem o cheiro eu lhe podia olfatar. Mexi os pés, cavalo de mim próprio, manco, só me sobrava um novo par de solas, boas ferraduras que aguentassem o terreno onde esperneava de saudades.
(Ruben A. é o primeiro a contar da direita)
Ia eu ali passar quanto tempo? Que importava isso, as contagens desgrudam-se quando os sentimentos atarracham o nosso humo. O dia da boda! Um dia em que não fui convidado, pois o rifão bate certo, e quando seria o baptizado? De quem? Caluda, juízo. Poderia ser parecido comigo, teria sido tão fácil, tão humano, um esperma a passear no Campo Alegre, distraído dava entrada onde alguém distraído o esperava. Ah! E era bom. Sim, cabeça, tronco e membros, a geografia humana para amaciar com os dedos, às vezes marotos de ternura, quase com tiques nas formas mais salientes, tímidos ao galgar nas divisórias do corpo para os membros; é preciso ter cuidado. E Ela esquecera-se de mim? E eu esquecera-me com a Mafalda, verdade que custava caro na contabilidade severa que às noites eu fazia.
Entrava num Porto amedrontado de mim. Uma cidade no fumo das fábricas, nos cestos das padeiras, em bafos de rufo de tambor, eléctricos que se ouvem no outro mundo. — Porto cem vezes corrigido de fonemas, Porto que vira Belzebu comprar homens como quem merca em Norte de África, a cidade estava sem novidades, estava, simplesmente, com bolo-rei da Oliveira, no Natal, amêndoas torradas do Costa da Foz, logo na abertura das Páscoas, castanhas a saírem do saco, quentes e boas, quentes e boas, panos secos nas bermas dos armazéns, cheiros fétidos de sarjetas empestadas, sol que não entrava na Rua de Cedofeita, burgo honesto como se de amor não tratasse. Ela aonde? Com casa, mesa e roupa lavada! E na manhã depois da noite? Onde estaria eu? Comandante destronado, ministro despedido, marechal sem exército, esgalgado na voz de ordem, nem para a frente nem para trás. O remédio? Haverá remédio para o desengonçado da sarna do Amor? Onde está? Sim, a casa dela fora ali ao pé de mim, ainda estava ao pé, não de mim, separada por um tabique e com alguém que eu não conhecia, «Sim senhor, tem a bondade, faz favor de entrar.» — «Não demoro nada.» «Também era o que faltava.» «Como é que se fazem os filhos?»
Olhei de frente, as lições, os compêndios, manuais que os falhanços agrupavam na minha biblioteca, universidades, sabedorias de quê? Se fosse capaz, ia puxá-la por um gasganete, voltava-me e dizia: «O cavalheiro faz favor de se retirar, deve estar enganado, isto não lhe pertence, deve ser outro número de casa.» «Perdão.» «Para estes casos não há perdão.»
«Mas eu casei-me enquanto o senhor andava a viajar lá pelas Alemanhas, depois a jogar bridge em Cascais, esqueceu--se.» Não sabia responder. «E o senhor sabe muito bem que está noivo.» Só de muletas eu podia arrancar do parapeito da janela. Virado ao avesso, esfrangalhado. «Entretanto, eu casei.» Ah, Ah, Ah, um intervalo que me custou caro. «Ela também casou, casámos. Está a perceber, e aqui o senhor não tem mais nada que fazer. Case também para ver como é. Anjinhos e música, presentes e bolo, piteireiros e fotografias, filhoses com sabor erótico, e à noite, tirado o vestido de cauda, ver.» «O senhor está a cometer um crime, fazzzz.» As palavras no nicho de uma igreja deserta enfriavam-me a alma. Ele tinha razão, há pessoas que erradas de nascença têm razão. E ele casara. Ela ainda continuava virgem, estava a sair do Colégio da Boavista, lá no alto da rua, cinco horas da tarde, acabou a aula, o último recreio foi às quatro, o lanche à espera, e eu a aguentar o 31 a dar mais carambolas e a levar-me o milho que a Tia Teodora emprestadava às escondidas. Qual bilhar, qual tacho! «Ó pá, tenho de apanhar o 4 que vai para a Fonte da Moura. Já.» «Este gajo está doido, dá-te as pressas, a pequena é mesmo boa, ela espera-te? Faz sofrer, elas gostam que a gente diga e não faça, no fundo todas gostam da mesma coisa. Vê lá, se precisares de ajuda...» Poucas falas, as mulheres na minha vida foram sempre de poucas falas, vocabulário restrito, seguro, limitado, sem indemnizações, estolas de passeio, alcavalas postas por mim, um dez por cento de não-te-rales.
Afastei-me da janela aberta, encandeado o olhar. A carta de Mafalda devia chegar no amanhã. E eu ia casar? O quê? Ali no Porto? Ter filhos ao lado dela, perto dela, dormir, trocar, virar na cama, tufos, ziguezagues de cortesias, tumba! Com os dentes desmanchava febra a febra, uma riqueza... A carta de Mafalda vinha de um outro mundo. Aguentava firme, abalava as estruturas de betão armado, sismos poderosos, vagas que de Leixões subiam os molhes, inundações na Ribeira de Miragaia, um escorrer sangue, caudal de escabeche, e eu vivo no terramoto, vivo, chusma de sensações comigo, alturas de magirus, estátuas dentro de mim, descerrando as lápides do Amor nas encruzilhadas de terras do Minho, com minha avó — A Velha Máquina — de Fafe à Trofa e de Trofa a Fafe, pão-de-ló de Felgueiras, o melhor, lamber o papel, comer os beijinhos em Vila do Conde, e as broas de ovo em Viana, parar à entrada da ponte do rio Cávado e dar dez tostões ao ceguinho, enquanto o velho Daimler metia água no bucho para as rectas da Póvoa, com Sezé Resende atento aos furos. Ela não me roubara nada, nem a larica dos dias feriados. Mas seria possível olhá-la, de frente, com a coragem de quem não tem coragem. E eu! E nós!, um de nós que não mais existiria, no cemitério talvez com datas na campa, flores em Novembro quando todos no Porto vão a Agromonte lembrar os que lá estão, dia dos mortos, dia em que não se morre, não há enterros, estão proibidos, no dia seguinte avisa-se o cangalheiro, e enterros bons só no Porto, com fanfarras, dirigidos superiormente pelo comendador Santos da Silva, essas montadas nos altares, símbolos. Ah, ah, ah, ah, no funeral de Belzebu, na Igreja da Trindade, música para aquele diabo, esqueceram-se das maldades, mas um dos mais sabidos, à saída do enterro, mandou deitar foguetes, cada estoiro, aviso para levar-lhe a alma para os Infernos, podia haver uma distracção e...
Amanhã com a carta de minha noiva, Mafalda prometera escrever todos os dias! Sim, voltava a Coimbra, rapidamente, postumamente, um giro sem graça, possidónio às vésperas tardias de um casamento, daí a quantos meses? Talvez seis, a contagem era minha, o resto agenda de calendário para satisfazer as repartições públicas. Ali, eu, de boca aberta para mim, eu ia viver com missa aos domingos e dias santificados. Podia ir vê-la, quem sabe a hora, de escondidas, os corpos conhecem--se como os bichos, se eu estivesse presente ao pé dela, daí a pouco um mexer de nada agitava o livro de missa, voltava-se para trás, e eu ali, distraído, sem bulir nas folhas, Ela parara enquanto o padre deitava os santos óleos, estava estremunhada já ao meio-dia, quis certificar-se melhor, e voltou de novo a cabeça. Sim, não fora ilusão, era mesmo eu. Estava a guardada, ao pé, como era isso possível?! E o mundo, todo passado a ferro, sem tugir, via uma bezerra morrendo ao longe, julgava que Ela deixara cair qualquer coisa, talvez o véu. Sim, era fácil, eu no domingo saber da missa, saber onde Ela vivia. E, como quem não quer a coisa, ao jantar perguntava à Tia Teodora, discreto a deixar o lamiré. A Tia desfiava o rosário, contava-me tudo, e naturalmente ainda acrescentaria: — E está bem bonita, fez-lhe bem casar. Também estas meninas se não casam... Sim, vive na Foz. Era. isto que eu queria apanhar, uma palavra com um mundo lá dentro, podia esperar. Entretanto receberia várias cartas da Mafalda, carta de Meu Querido Amor, Meu Adorado Querido, Meu Amor Adorado, cartas que me encostavam à cruz, pregavam de alfinetes. Fazer de faquir, tartamudear as veias, laquear as palavras. Não, hoje não escrevo. Cheguei bem. se chegasse mal, os jornais contariam. Cheguei mesmo muito bem, muitíssimo bem, nunca devia ter partido, nem os amores de Verão na Parada me prendiam, amores estivais, de aperta-mão, amores de beijos longos por trás das barracas junto à babugem, amores de pouco significado, amores para daí a pouco passarem, com a abertura das aulas, distracções para aprender, sempre nas aulas. Allons enfants de la Patrie le jour de gloire est-arrivé — tirava da mala os cosméticos, os fanados de indumentária. O que interessava na vida? Sabia lá. Precisava de comprar atacadores, ir às Carmelitas e ao Bolhão, descer até à Praça, passar frente à casa do Lino num adeus ao meu Tio João, companheiro na caça à galinhola que todos os anos pousava na mata do Campo Alegre.
(in O Mundo À Minha Procura III, Assírio & Alvim)
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(Continuação)
No Porto, permaneceram fiéis à Ditadura, elementos do Regimento de Infantaria 18, do Regimento de Cavalaria 9 e o Regimento de Artilharia 5 , instalado em Gaia, na Serra do Pilar. A GNR declarou-se neutral, declarando-se disposta a garantir o policiamento das ruas da cidade. Informadas do que se passava, as forças fiéis ao Governo, mais numerosas e dispondo de mais meios, iam, mesmo antes de receber reforços, preparando o cerco. Logo às primeiras horas de sedição, houve esporádicas trocas de tiros nas Ruas de Barros Lima e Montebelo (actual Avenida de Fernão de Magalhães); no Marquês de Pombal; na Praça dos Poveiros e no Largo do Padrão. Porém, os 12 feridos do primeiro dia de revolta atestam a brandura dos primeiros confrontos. Na madrugada do dia 3, a artilharia da Serra do Pilar entrou em acção. Dois obuses atingiram, na Rua de Gonçalo Cristóvão o quartel de Sapadores Bombeiros.
As forças governamentais, depois de algumas horas de desorganização, passaram a ser constituídas por uma parte reduzida do Regimento de Infantaria 18,, que tinha como comandante o coronel Raul Peres, o Regimento de Cavalaria 8 e o Regimento de Artilharia 5, este aquartelado na Serra do Pilar. Na tarde do dia 3 de Fevereiro, sob o comando do coronel João Carlos Craveiro Lopes, chefe do estado-maior da Região Militar e governador militar da cidade, concentraram-se no quartel da Serra do Pilar e abriram fogo de artilharia contra os revoltosos. Na própria manhã de 3 de Fevereiro, o Ministro da Guerra, coronel Passos e Sousa, saiu de Lisboa num comboio com destino a Vila Nova de Gaia, onde chegou ao fim da tarde. Assumiu o comando das forças governamentais até então comandadas pelo coronel Craveiro Lopes.
Durante essa primeira manhã da sedição, chegaram aos revoltosos reforços vindos de Valença. Desembarcaram na estação da Boavista, na Avenida da França, e marchando pela Carvalhosa, Cedofeita, Clérigos, Praça da Liberdade, Rua de 31 de Janeiro, atingiram a Batalha, onde se juntaram às forças rebeldes. O cerco ia-se apertando, no entanto. O navio "Infante de Sagres" aportou a Leixões com reforços. Em Valbom, tropas governamentais tinham atravessado o rio e dirigiam-se a marcha forçada para o centro do Porto. Os combates tornavam-se, de hora para hora, mais renhidos. Violentos tiroteios ouviam-se perto da Batalha, no Bonfim, em Santo André (Poveiros), Padrão, Campo de 24 de Agosto, Rua do Duque de Loulé, Fontainhas, S. Lázaro… No dia 4 de Fevereiro, e nos dias imediatos, juntaram-se aos revoltosos do Porto forças vindas de Penafiel, Póvoa do Varzim, Póvoa do Varzim, Famalicão, Guimarães, Valença, Vila Real, Régua e Lamego. Vinda de Amarante chegou mais artilharia, a qual foi posicionada perto de Monte Pedral. A artilharia da Figueira da Foz foi detida na Pampilhosa quando se dirigia para o Porto. Começaram a chegar notícias de adesão de diversas unidades: Viana do Castelo, Figueira da Foz e Faro, Olhão, Tavira e Vila Real de Santo António. No entanto, a notícia mais esperada, a da adesão da guarnição de Lisboa não chegava e esses levantamentos locais foram jugulados rapidamente.
Eva Cruz
A minha mãe morreu com 101 anos. Teria hoje 103 se fosse viva.
Viveu de recordações. Mesmo muito velhinha contava, cantava, fazia rimas e versos e numa semi-lucidez foi feliz e fez os outros felizes até ao fim.
Nas suas recordações, o Porto, onde viveu a sua mocidade, estava sempre vivo.
Retirei de um livro que escrevi sobre a sua vida e que não é nada mais nada menos do que um baú de recordações que tive a coragem de abrir, este texto:
Aurora passou toda a mocidade na Quinta dos Três Castelos.
» Foram os tempos mais lindos da minha vida. Tive uma novice como ninguém. À noite recebíamos senhoras e senhores da alta roda do Porto. Até um senhor francês, Monsieur Valladier, mais tarde professor da tua mãe. Vinha todas as noites ensinar francês à minha prima. Íamos também ao cinema e ao teatro Sá da Bandeira, antes Príncipe Real. Os meus tios nunca saíam connosco. Acompanhavam-nos o meu primo e a esposa. Vi o Amor de Perdição, as cartas de Simão e Teresa lançadas ao mar por Mariana. A minha prima Laurindinha até chorou. Adeus! À luz da eternidade parece-me que já te vejo, Simão!.
Na rua Trinta e Um de Janeiro havia, antes de eu estar no Porto, o teatro Baquet que
ardeu por completo. Um dia, contavam os meus tios, estavam preparados uns amigos, pais e filha, para irem ao teatro. A menina mostrou-se indisposta e foi uma desmancha-prazeres. Naquela noite, apesar da insistência dos pais, ficaram em casa, e nessa mesma noite deu-se uma das maiores tragédias da cidade do Porto. O teatro Baquet ardeu por completo e lá morreu muita gente queimada. Quando ao outro dia se soube a notícia, os pais beijaram a filha, de contentes. Vê lá tu, ela assim salvou a vida aos três. A criança adivinhou a tragédia que se ia dar.
* És muito tolinha, avó, a menina não adivinhou nada, calhou assim, avó, calhou assim.
» Há coisas que ninguém sabe explicar.
* E tu sabes, avó?
» Não sei tudo mas há coisas que tu não sabes e eu sei. Está mas é caladinho e não digas a ninguém que vais daqui!
O teatro Baquet, na Rua Trinta e Um de Janeiro foi construído em meados do século XIX e passados vinte anos, um terrível incêndio reduziu-o, realmente, a cinzas e destroços. Morreram cerca de duas centenas de pessoas.
O incêndio começou no palco. Uma bambolina foi incendiada por uma gambiarra. Um actor ainda gritou para cortarem uma corda da bambolina mas a desorientação foi tal que o incêndio alastrou e tomou proporções desastrosas. No alvoroço, os espectadores correram para as portas de saída que, por azar, eram de abrir para dentro. No desespero esmagaram-se uns contra os outros. Foram dadas ordens para desligar o gás, como medida de segurança, mas o escuro aumentou o pânico e só o clarão sinistro do incêndio passou a iluminar aquele inferno. Foi um tal horror que pôs de luto a cidade inteira, e durante gerações o Porto não esqueceu a tragédia do incêndio do teatro Baquet. Aurora lembra-se de uns versos que correram na época, mas lamentava não os saber de cor, ela que tanto gostava de rimas e a propósito de tudo ou nada rimava.
Na verdade, entre os muitos textos escritos nos jornais da época, alguns poemas do jornal Charivari mostram o sentimento público perante tal tragédia:
É triste a nossa tarefa
N’este momento de lucto
Também pagamos tributo
Á mágoa que vai lá fora.
Não póde ter nossa penna
Zombeteiras ironias
Perante as magoas sombrias
D´uma cidade que chora.
Envolve a cidade inteira
Da morte o manto funerio.
As vallas do cemiterio
Abrem-se tôrvas, hiantes.
Sente-se um vento de morte
Estranho, frio, gelado,
Sobre o montão desolado
Das ruinas fumegantes.
Ha pranto nos nossos olhos
Tristeza infinda na alma
E tão cedo não se acalma
A magoa que nos invade.
Tamanha dôr e pavor
Nos punge n’este momento
Que em ondas de sentimento
Choramos com a cidade.
(ilust. Adão Cruz)
Aspecto da cidade do Porto na época em que ocorreu o episódio da Patuleia (1846-47) |
A ponte pênsil a que se faz alusão no romance. |
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