Dia de Lisboa - evocação. Afonso X, Fiama Hasse Pais Brandão, João Zorro e Teresa Salgueiro.
Carlos Loures
Música: Afonso X Letra: João Zorro Concepção: Pedro Caldeira Cabral Arranjo: Jorge Varrecoso Gonçalves e Vasco Azevedo
É também uma cantiga de amigo (marinha), de dístico de rima toante (í-o e á-o), com refrão composto de duas partes (uma intercalada entre o 1º e o 2º verso do dístico e a outra no final da estrofe): fala a donzela (namorada) da sua decisão ou desejo de ir ver o barco / navio, que o rei mandou preparar para uma missão e nela deseja partir com o seu amigo. É seu autor João Zorro, o jogral de Lisboa e do Tejo (viveu certamente durante o reinado de D. Dinis), e sobretudo das suas barcas, tão bem evocadas no século XX por Fiama Hasse Pais Brandão. Encontra-se registada nos cancioneiros B (Biblioteca Nacional, nº 1157) e V (Vaticana, nº 759):
En Lixboa, sobre lo mar Barcas novas mandei lavrar. Ai, mia senhor velida!
En Lixboa,, sobre lo ler Barcas novas mandei fazer. Ai, mia senhor velida!
Barcas novas mandei lavrar E no mar as mandei deitar. Ai, mia senhor velida!
Barcas novas mandei fazer E no mar as mandei meter. Ai mia senhor velida!
Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)
Lisboa tem barcas novas
Lisboa tem barcas agora lavradas de armas
Lisboa tem barcas novas agora lavradas de homens
Barcas novas levam guerra As armas não lavram terra
São de guerra as barcas novas ao mar mandadas com homens
Barcas novas são mandadas sobre o mar
Não lavram terra com armas os homens
Nelas mandaram meter os homens com a sua guerra
Ao mar mandaram as barcas novas lavradas de armas
Barcas novas são mandadas sobre o mar
Em Lisboa sobre o mar armas novas são mandadas
Nota: Adriano Correia de Oliveira criou uma lindíssima versão musical deste tema. Não o encontrámos, no entanto, disponível.
E assim, 24 horas depois, chegamos ao final deste "Dia de Lisboa". Agradecemos todas as ajudas que nos foram dadas neste trabalho. Saudamos em particular o blogue "Lisboa no Guiness" onde recolhemos a canção do Alberto Ribeiro e desejamos que a campanha de Vítor Marceneiro seja coroada de êxito. Todo o material que aqui apresentamos, está ao seu dispor. Por agora, chegamos ao fim.
Três despedidas e um bilhete postal - António Gedeão, o grande poeta que vivia dentro do corpo do cientista Rómulo de Carvalho, oferece-nos um poema - "Adeus a Lisboa", cujo manuscrito podemos ver abaixo, á direita. Carlos Mendes, com música sua e poema de Joaquim Pessoa, sob o mesmo título, brinda-nos com uma bonita canção, Alberto Ribeiro, o eterno cantor de "Coimbra", sela a despedida com o seu adeus. Tudo escrito nas costas de um lindo postal de Maluda que, nascida em Goa, não podia ser mais lisboeta.
António Gedeão (1906-1997)
- ao lado: manuscrito do poema
Adeus, Lisboa
Vou-me até à Outra Banda no barquinho da carreira. Faz que anda mas não anda; parece de brincadeira. Planta-se o homem no leme. Tudo ginga, range e treme.
Bufa o vapor na caldeira.
Um menino solta um grito;
assustou-se com o apito
do barquinho da carreira.
Todo ancho, tremelica como um boneco de corda. Nem sei se vai ou se fica. Só se vê que tremelica e oscila de borda a borda.
Chapas de sol, coruscantes como lâminas de espadas, fendem as águas rolantes esparrinhando flamejantes lantejoulas nacaradas. Sob o dourado chuveiro, o barquinho terno e mole, vai-se afastando, ronceiro, na peugada do Sol.
A cada volta das pás moendo as águas vizinhas, nos remoinhos que faz, nos salpicos que me traz e me enchem de camarinhas, há fagulhas rutilantes, esquírolas de marcassites, polimentos de pirites, clivagens de diamantes,
Numa hipnose colectiva, como um friso de embruxados, ao longe os olhos cravados em transe de expectativa, todos juntos, na amurada, numa sonolência de ópio, vemos, na tarde pasmada, Lisboa televisada num vasto cinemascópio. O sol e a água conspiram num conluio de beleza, de elixires que se evadiram de feiticeira represa. Fulva, no céu incendido, em compostura de pose, a cidade é colorido cenário de apoteose. Há lencinhos agitados nos olhos de todos nós, engulhos de namorados, embargamentos na voz. Nesta quermesse do ar, neste festival de tons, quem se atreve a acreditar que os homens não sejam bons?
Adeus, adeus, ribeirinha cidade dos calafates, rosicler de água-marinha, pedra de muitos quilates. Iça as velas, marinheiro, com destino a Calecu. Oh que ventinho rasteiro! Que mar tão cheio e tão nu! Ó da gávea! Põe-te alerta! Tem tento nos areais. Cá vou eu à descoberta das índias Orientais. Não tenho medo de nada, receio de coisa nenhuma.
A vida é leve e arrendada como esta réstea de espuma. Toda a gente é séria e é boa! Não existem homens maus! Adeus, Tejo! Adeus Lisboa! Adeus, Ribeira das Naus! Adeus! Adeus! Adeus! Adeus!
Uma canção com o mesmo título, com poema de José Fanha e música de Carlos Mendes. Canta o Carlos Mendes.
Estamos quase a chegar ao termo desta longa maratona. Esperamos que tenham apreciado as dezenas de artistas que trouxemos até ao nosso modesto palco. Agora, apresentamos quatro canções, sem outra relação entre si que não seja o serem dedicadas a Lisboa. Em primeiro lugar a Ala dos Namorados - «Loucos de Lisboa» ( música de João Gil e letra de João Monge) na magnífica interpretação de Nuno Guerreiro. Não esqueçam que
São os loucos de Lisboa Que nos fazem recordar A Terra gira ao contrário E os rios correm para o mar
Mísia, uma intéprete de grande expressividade, canta-nos "Que fazes aí Lisboa?", uma composição de Amália Rodrigues.
Vamos ouvir de novo Amália Rodrigues, agora em "Lisboa não sejas Francesa" uma composição de José Galhardo e de Raul Ferrão Em 1945 estreava-se a opereta "A Invasão", escrita por José Galhardo, Raul Ferrão, Vasco Santana e outros. Tinha um elenco de luxo - Vasco Santana, António Silva, Mirita Casimiro e Amália Rodrigues, entre muitos outros. Amália ainda não era a vedeta internacional em que se converteu anos depois. A opereta, sobre a resistência lisboeta à ocupação francesa durante a primeira invasão, a de Junot em 1807, obtinha nesta canção um pico de popularidade - toda a gente a trauteava - a peça esteve dois anos em exibição.
E para terminarmos da melhor maneira este penúltimo bloco, ouçamos Jorge Palma e Mariza - "Canção de Lisboa", uma composição de Jorge Palma.
Fernando Correia da Silva diz-nos como era no Café Chiado
Na Rua Garrett, em Lisboa, o Café Chiado é uma gruta mágica. Para além da estudantada, ali abancam os surrealistas Cesariny de Vasconcelos, António Maria Lisboa, Alexandre O’Neill e Mário Henrique Leiria. Também os artistas plásticos Ribeiro Pavia, João Abel Manta, António Alfredo, o escultor José Dias Coelho. E ainda dois pretinhos angolanos, o Agostinho Neto que estuda Medicina e o Mário Pinto de Andrade que estuda Filologia Clássica, juntamente com o seu irmão Joaquim. O Agostinho é cara de pau, estou em crer que os seus lábios jamais ameaçaram sorrir. Justamente o contrário do Mário, que dá tudo o que pode por uma boa gargalhada. A este faço a vontade. Estamos em Janeiro de 1951 e faz muito frio. Digo, para quem me queira ouvir:
- Quem vir um sobretudo pelo de camelo a andar sozinho pela Rua Garrett, detenha-o e espreite lá para dentro. Verá, todo encolhido, um pretinho que atende pelo nome de Mário Pinto de Andrade.
À minha volta, o Mário e a restante malta desmancham-se a rir. Excepto o Agostinho, obviamente.
Insisto, quero verificar as diferenças até ao fim. Há um frequentador do Café, um homem de meia idade, com físico e cara de Buda. Tem um parafuso desapertado. Se ninguém lhe dá palavra, fica as tardes a contemplar uma chávena vazia de café. Chamo-lhe Sr. Engenheiro mas não sei se engenheiro ele é. Meto conversa, gosto das suas respostas que, normalmente, perdem o norte.
- Então, Sr. Engenheiro, onde é que foi ontem? - Ontem fui à Feira Popular. - Fazer o quê? - Fui à montanha russa. - E depois? - Aquilo subiu, subiu, subiu e, lá no alto, parou. - E depois? - Depois começa a descer, a descer, a descer, ai que aflição. - E depois? - Depois chego cá abaixo e como um bife com batatas fritas.
Gargalhadas, o Mário mais que todos. O Agostinho continua impávido, rigidez.
Sussurro ao ouvido do Alexandre O’Neill:
- Estes dois angolanos são muito diferentes um do outro. Um dia destes ainda vão andar à batatada, é inevitável. - Fernando, lá estás tu com a mania de adivinhar o futuro... - A ver vamos se é mania ou intuição...
Era mesmo intuição. Anos depois, durante a guerra pela independência de Angola, o Mário e o Agostinho entraram num tal confronto que o Mário teve que emigrar para a Guiné-Bissau.
Almada Negreiros na sua tertúlia da Brasileira do Chiado
Para terminar, Lia Gama canta.nos os cafés de Lisboa. Ora aqui estão três versões coincidentes.
Duas maneiras, separadas por um século e meio e por muitas outras coisas, de ver o anoitecer e a noite em Lisboa. Cesário Verde, em meados do século XIX, via assim essa hora soturna:
Cesário Verde (1855-1886)
Ave Marias
1
Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. O céu parece baixo e de neblina, O gás extravasado enjoa-me, perturba; E os edifícios, com as chaminés, e a turba Toldam-se duma cor monótona e londrina. Batem os carros de aluguer, ao fundo, Levando à via férrea os que se vão. Felizes! Ocorrem-me em revista, exposições, países: Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! Semelham-se a gaiolas, com viveiros, As edificações somente emadeiradas: Como morcegos, ao cair das badaladas, Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros. Voltam os calafates, aos magotes, De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos; Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos, Ou erro pelos cais a que se atracam botes. E evoco, então, as crónicas navais: Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! Singram soberbas naus que eu não verei jamais! E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! De um couraçado inglês vogam os escaleres; E em terra num tinir de louças e talheres Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda. Num trem de praça arengam dois dentistas; Um trôpego arlequim braceja numas andas; Os querubins do lar flutuam nas varandas; Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas! Vazam-se os arsenais e as oficinas; Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras; E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas. Vêm sacudindo as ancas opulentas! Seus troncos varonis recordam-me pilastras; E algumas, à cabeça, embalam nas canastras Os filhos que depois naufragam nas tormentas. Descalças! Nas descargas de carvão, Desde manhã à noite, a bordo das fragatas; E apinham-se num bairro aonde miam gatas, E o peixe podre gera os focos de infecção!
Lisboa tem razões para envaidecer-se da sua passagem pelo grande ecrã. Se o primeiro filme produzido e realizado em Portugal foi da autoria do portuense Aurélio da Paz dos Reis e se rodou à porta da Fábrica Confiança, na Rua de Santa Catarina, bem no centro da Invicta, depressa o cinema português tomou a capital como cenário.
De entre as primeiras longas-metragens, ainda mudas, realizadas em Portugal várias tiveram Lisboa como cenário: “O Rapto de Uma Actriz” (1907), de Lino Ferreira, “O Quim e o Manecas” (1916), de Ernesto de Albuquerque, “O Primo Basílio” (1922), de Georges Pallu, “Lisboa, Crónica Anedótica” (1930), de Leitão de Barros.
E esta tendência confirma-se nas primeiras longas-metragens sonoras, a começar pela primeira que se realizou em Portugal, “A Severa”, de Leitão de Barros, realizada em 1931, e a que se seguiria, dois anos depois, “A Canção de Lisboa”, de Cottineli Telmo, do qual se poderia dizer que ainda hoje dificilmente se encontra algum português maior de dez anos que não o tenha visto pela menos uma vez.
A marcha do “Olh’o balão”, o “Fado do estudante”, a canção da agulha e do dedal, o esternocleidomastoideu, “Chapéus há muitos, seu palerma!”. Quantos filmes poderiam orgulhar-se de se terem perpetuado de tal forma na memória de gerações de espectadores como “A canção de Lisboa”?
Os anos seguintes corresponderiam ao "período de ouro" da comédia portuguesa, com uma sucessão de filmes cuja acção decorre em Lisboa: “O Pátio das Cantigas” (1932), de Francisco Ribeiro, cuja acção decorre num típico pátio lisboeta, “O Pai Tirano” (1941), de António Lopes Ribeiro, centrado nas desventuras amorosas de um empregado dos armazéns Grandela, ou ainda “O Leão da Estrela” (1947) e “O Costa do Castelo” (1943), ambos de Artur Duarte. Comédias de costumes, nas quais se exaltam os valores do regime: a honradez na pobreza, a humildade abençoada pela Divina Providência, a casinha modesta e alegre.
Novos ventos soprarão no cinema português a partir dos anos 60, com aquilo a que se convencionaria chamar “cinema novo”. “Verdes Anos” (1963), de Paulo Rocha, com a extraordinária música de Carlos Paredes, rodado na zona do café Vává, traçava o retrato de uma geração encerrada numa Lisboa claustrofóbica.
Seguem-se-lhe “Belarmino” (1964), de Fernando Lopes, retrato em grande plano desse filho de Lisboa caído em declínio, e “Domingo à tarde” (1965), de António de Macedo, adaptação do romance homónimo de Fernando Namora.
Os anos 80 são inaugurados com uma entrada triunfal da Lisboa de má fama nas salas de cinema: Intendente, Bairro Alto, Alfama. É por lá que se passeiam Kilas e a sua amante, a artista de variedades Pepsi-Rita, notáveis Mário Viegas e Lia Gama, cujos passos errantes são embalados pela banda sonora de Sérgio Godinho. “Kilas, o mau da fita” (1980), de José Fonseca e Costa, continua a ser um dos maiores êxitos de bilheteira do cinema português.
“Saudades para D. Genciana” (1983), de Eduardo Geada, transpõe para o cinema o universo literário de José Rodrigues Miguéis e recupera a Lisboa dos anos que antecederam a instauração do Estado Novo, centrando a acção numa pensão da Avenida Almirante Reis.
Nos anos seguintes, Lisboa será cenário recorrente dos mais emblemáticos filmes portuguesas da década de 80: “Crónica dos Bons Malandros” (1984), de Fernando Lopes, “O Lugar do Morto” (1984), de António Pedro Vasconcelos, “O Vestido cor de Fogo” (1985), de Lauro António, “Recordações da Casa Amarela” (1989), de João César Monteiro, este último premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza.
“A Caixa” (1994), de Manoel de Oliveira, cuja acção decorre nas Escadinhas de S. Cristóvão, onde um mendigo cego (Luís Miguel Cintra) defende a custo a caixa das esmolas;
“Corte de Cabelo” (1995), aclamada primeira longa-metragem de Joaquim Sapinho, rodada na totalidade em Lisboa e em particular no Amoreiras Shopping;
“Ossos” (1997), de Pedro Costa, retrato documental da vida no gueto, o bairro das Fontainhas.
E “Capitães de Abril” (2000), de Maria de Medeiros, relato épico das 24 horas mais marcantes da história contemporânea portuguesa.
Recentemente, estreou-se “Desassossego”, de João Botelho, audaciosa adaptação do “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa, a obra fragmentária de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na baixa de Lisboa.
Lisboa no cinema estrangeiro
No cinema Lisboa já foi Assunción, a capital paraguaia (em “The boys from Brazil”, 1978, de Franklin J. Schaffner) e Santiago do Chile (em “A Casa dos Espíritos”, 1993, Billie August), já foi pano de fundo nunca identificado em filmes como “The Ninth Gate” (1999), de Roman Polanski, mas foi igualmente cenário privilegiado, quando não protagonista de uns quantos títulos, dos quais o primeiro terá sido “Lisbon” (1956), de Ray Milland, filme de espionagem que incluía na banda sonora o tema “Lisboa antiga”.
Em 1969, James Bond chegava a Lisboa, haveria de instalar-se no Estoril, e acabaria por casar-se e rapidamente enviuvar num dos piores filmes da saga: “007, Ao Serviço de Sua Majestade”, de Peter Hunt.
Amália Rodrigues canta “Barco Negro” em “Amantes do Tejo” (1955), de Henri Verneuil, filme desengraçado mas que vale hoje pela interpretação de Amália e por se ter tornado um documento da Lisboa dessa década.
A luz de Lisboa ficaria eternizada em “Dans la ville blanche” (1983) de Alain Tanner, o que em muito se deve ao trabalho do português Acácio de Almeida, director de fotografia neste filme.
Em “Lisbon Story” (1994), Wim Wenders lança-se numa busca enigmática dos sons de Lisboa, cruzando-se com os Madredeus e com o realizador Manoel de Oliveira numa súbita aparição chaplinesca.
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Ao longo das últimas décadas, Lisboa foi cenário em filmes tão diferentes como “A Casa da Rússia” (1990), de Fred Schepisi, “Noites Bravas” (1992), de Cyrill Collard, “Des Nouvelles Du Bon Dieu” (1996), de Didier Le Pêcheur, “Afirma Pereira” (1995), do realizador italiano Roberto Faenza, ou “The Dancer Upstairs” (2002), primeiro filme realizado pelo actor norte-americano John Malkovich, protagonizado pelo espanhol Javier Bardem e que incluía no elenco Luís Miguel Cintra e Alexandra Lencastre.
E se é certo que nele Lisboa nunca é mais do que uma miragem longínqua, como poderia ficar de fora desta lista o filme em que Lisboa é sinónimo de liberdade, ainda que em trânsito para outro continente? Lisa e Lazlo partem para Lisboa, Rick fica para trás. Podemos ver muitas vezes esta cena, ele nunca tomará aquele avião para Lisboa e no fundo sabemos que foi melhor assim. “Casablanca” (1942), de Michael Curtiz, pois claro.
A primeira referência escrita que se encontra sobre Lisboa, feita por um romano, é a do académico Marco Terêncio Varrão (116 – 27, a. C.). Informa que as éguas locais concebem pelo vento, sem necessidade de terem contacto com os machos, lenda provavelmente transmitida pelos povos locais, (ver na Revista Municipal de Lisboa, n.º 56 (1953), o artigo de Arlindo de Sousa, Antologia de Lisboa).
Encontram-se também referências a Lisboa em Pompónio Mela ( (no De Situ Orbis), em Estrabão e Ptolomeu.
Vários viajantes ingleses de nomeada, a partir da Restauração (1640), visitaram Portugal e estiveram em Lisboa, tendo-se referido à nossa capital nos seus escritos, em prosa e em verso. Falamos a seguir de alguns dos mais conhecidos:
No século XVIII, há a referir Henry Fielding (1707-1754), autor de Tom Jones, tido como o pai do romance inglês. Escreveu Journal of a Voyage to Lisbon, em que conta a sua viagem para Portugal, onde veio procurar descansar do esgotamento provocado pelo seu trabalho como magistrado. Foi a sua última obra, pois Fielding faleceu em Lisboa em 8 de Outubro de 1754.
William Beckford (1760-1844), , político e viajante inglês, autor de obra variada, com destaque para o conto oriental Vathek esteve em Portugal nos fins do século XVIII, e escreveu, com bastantes anos de atraso, narrações das suas viagens intituladas, Italy, With Sketches of Spain and Portugal e Recollectionsof an Excursion to the Monasteries of Alcobaça and Batalha. Na segunda obra descreve pormenorizadamente um passeio, feito a partir da sua casa de Lisboa.
Byron (1788 – 1824), um dos grandes poetas românticos ingleses, esteve em Lisboa em 1809, no início de uma grande viagem pelo sul da Europa. No Childe Harold’s Pilgrimage, canto I, estrofe XVII, dá uma imagem de Lisboa bastante negativa, embora comece por gabar o aspecto à primeira vista. Aliás Byron dá uma imagem negativa dos portugueses em geral, chegando a lamentar que a natureza tenha sido excessivamente pródiga com eles, quanto à paisagem. Transcreve-se a seguir a estrofe acima referida:
But whoso entereth within this town, That, sheening far, celestial seem to be, Disconsolate will wander up and down, Mid many things unsightly to strange e’e; For hut and palace show like filthily, The dingy denizens are reared in dirt, No personage of high or mean degree Doth care for cleaners of surtout or shirt, Though shent with Egypt’s plague, unkempt, unwashed, unhurt.
No número 60 da Revista Municipal, do ano de 1954, no artigo Lisboa no folclore e na poesia culta do Brasil, Gastão de Bettencourt faz uma resenha muito variada, que inclui desde Evocação lírica de Lisboa, de Cecília Meireles, Entre-mar e Rio, do diplomata Ribeiro Couto, até ao Auto dos Fandangos, dos mestiços do Nordeste Brasileiro.
Mais recentemente, o alemão Thomas Mann (1875-1955), faz decorrer parte do seu último romance, Bekenntisse des Hochstaplers Félix Krull (As Confissões de Félix Krull, Cavalheiro de Indústria), em Lisboa. Trata-se aliás de um romance, que decorre vagamente no fim do século XIX, e que ficou por acabar, devido à morte do autor. Félix Krull assume a identidade do marquês de Venosta, nobre luxemburguês, e substitui-o numa viagem a que este pretende escapar, devido a um problema de amores. E numa Lisboa não muito real vive algumas peripécias.
O último romance de Erich Maria Remarque (1898-1970), Die Nacht von Lissabon (Uma noite emLisboa) trata do problema dos refugiados durante a II Grande Guerra Mundial, que passam por Lisboa em trânsito para a América.
John Le Carré (1931 - ), em The Russia House, um romance de espionagem que decorre no fim da Guerra Fria, põe o herói a ser interrogado pelos serviços secretos ingleses em Lisboa. É famosa a referência ao Príncipe Real, e aos discursos de um velho místico que seria o professor Agostinho da Silva.
António Muñoz Molina (1956 - ) escreveu El Invierno en Lisboa, o qual, na modesta opinião de quem escreve estas linhas, nada tem a ver com a capital de Portugal. Usa a sonoridade do nome, e do personagem central da novela (?), Biralbo. Alguns dizem que é uma homenagem ao romance negro, e ao jazz. Será?
A Morte Branca, de Pierre Kyria (1938 - ), recebeu referências elogiosas na imprensa francesa. O crítico do Nouvel Observateur comparou o romance de Kyria a uma obra de Agatha Christie, onde se está sempre à espera de revelações fulgurantes, e o do Magazine Littéraire considerou-o um grande livro. É uma história em que um jovem romântico se vê envolvido em situações complicadas, decorrendo a trama numa pensão familiar de Lisboa. Kyria revela um conhecimento grande da cidade, embora a história pudesse decorrer em qualquer outro local. Este escritor também escreveu Lisbonne, livro sobre o qual não temos referências.
A Small Death in Lisbon, de Robert Wilson (1957 - ) é um romance policial, que trata de sequelas do tempos dos nazis, e de crimes actuais.
O Homem de Lisboa, de Thomas Gilfford, conta a história da burla de Alves dos Reis.
Em El Club Dumas, Arturo Pérez-Reverte (1951 -), faz Lucas Corso, o personagem central, passar por Lisboa a caminho de Sintra, procurando um livro. E contar recordações de outra viagem a Lisboa.
Leslie Charteris (1907 – 1993), criador de O Santo, fez decorrer em Lisboa uma das aventuras do seu herói, The Saint in Pursuit. O título da obra em português é O Santo e o Mistério de Lisboa.
O primeiro romance do norte-americano Richard Zimler (1956 - ), O Último Cabalista de Lisboa, decorre na Lisboa do início do século XVI, e tem como pano de fundo os massacres de cristãos novos.
Pierre Mercier, suíço de língua francesa, escreveu Comboio Nocturno para Lisboa, a história de um suíço que impede o suicídio de uma portuguesa, e a seguir lê um livro de um português resistente à ditadura. Desperta-se nele a curiosidade de saber mais sobre este homem, e assim vem até Portugal.
Muitos estrangeiros escreveram sobre Lisboa. Cervantes, Voltaire. Lord Byron... É matéria de que se ocupou o João Machado. Aqui, registamos dois desses olhares sobre a cidade - a do compositor australiano Percy Grainger (1882.1961) e a do chileno Pablo Neruda (1904-1973).
Não abunda a música sinfónica sobre Lisboa. Tentámos encontrar uma gravação de "Lisboa em Camisa" op.53", do maestro António Victorino d'Almeida, inspirada na obra homónima de Gervásio Lobato, mas não a encontrámos disponível. Ouçamos Lisbon, o primeiro andamento da sinfonia Lincolnshire Posy , de Percy Grainger, dedicado a Lisboa, interpretado pela Bay Brass Ensemble:
Pablo Neruda, o grande poeta chileno, Prémio Nobel da Literatura de 1971, dedicou este seu longo poema, La Lámpara Marina, a Álvaro Cunhal. Foi escrito em 1953 quando o dirigente do PCP estava preso e se temia pela sua vida. Sobre uma Lisboa prisioneira da ditadura salazarista, disse o poeta:
La Lámpara Marina
I
El puerto Color de cielo
Cuando tú desembarcas en Lisboa, cielo celeste y rosa rosa, estuco blanco y oro, pétalos de ladrillo, las casas, las puertas, los techos, las ventanas, salpicadas del oro limonero, del azul ultramar de los navíos.
Cuando tú desembarcas no conoces, no sabes que detrás de las ventanas escuchan, rondan carceleros de luto, retóricos, correctos, arreando presos a las islas, condenando al silencio, pululando como escuadras de sombras bajo ventanas verdes, entre montes azules, la policía bajo las otoñales cornucopias buscando portugueses, rascando el suelo, destinando los hombres a la sombra.
(inPoemas de Obras, 3 ª ed.., Buenos Aires, Editorial Losada, 1967)
Podemos agora ouvir o poema completo, excelentemente declamado pelo actor Tavares Marques, numa tradução eivada de castelhanismos e de erros, mas que, dada a beleza do original, resiste a esses equívocos linguísticos. A gravação foi feita durante uma homenagem prestada pelo PCP à memória de Álvaro Cunhal e realizou-se no claustro do Tribunal da Boa-Hora, onde funcionou o sinistro "Plenário".
A canção "Lisboa menina e Moça", com letra de José Carlos Ary dos Santos e música de Paulo de Carvalho, é mais conhecida através da interpretação de Carlos do Carmo. Mas a versão do compositor, de Paulo de Carvalho é também excelente. Aqui está ela:
"Maria Lisboa", de David Mourão-Ferreira e de Alain Oulman, também se tornou famosa na voz da inimitável Amália Rodrigues. Mariza, não imita, recria - esta versão é diferente e igualmente de grande qualidade:
Gigliola Cinquetti uma italiana e a espanhola Pasión Vega cantam Lisboa em castelhano - Gigiola Cinquetti, a mesma de "Non ho l'età", canta a versão espanhola da famosa canção de José Galhardo, Amadeu do Vale e Raul Portela.
Estes autores criaram-na para a voz de Hermínia Silva. Foi estreada no Teatro Variedades, em 1932, na revista Pirilau. Hemínia apresentou-a e foi dela a primeira gravação em disco. No entanto, sendo o «Olhai, senhores» já um êxito a nível interno, seria Amália Rodrigues, nos anos do pós-guerra quem tornaria a canção mundialmente conhecida.
A interpretação da Gigliola é interessante, mas talvez um pouco descolorida.
A madrilena Pasión Vega inclui no seu repertório a canção "Lejos de Lisboa", de Ernesto Haffter e Pablo Guerrero. É uma cantora muito em voga e tem uma voz bem timbrada, dando à melodia (vulgar) intencionais sonoridades de fado.
Até 1963 só conhecia de Lisboa a estação de Santa Apolónia e a Praça do Chile onde vivia um tio meu que visitei uma ou duas vezes com os meus pais. A única coisa que recordo dessa época era a de que brincava com os meus primos, no terraço existente por cima do último andar (3º) do prédio onde viviam.
A ideia de vir para Lisboa começou desde cedo a germinar no meu cérebro como o único objectivo a alcançar. A partir dos 13 anos senti que tinha de sair da cidade onde nasci (Castelo Branco) e que nada tinha para me oferecer no futuro.
Foi assim que em Setembro de 1963, desembarquei em Santa Apolónia, acompanhado da minha mãe para fazer exame de admissão ao Instituto Comercial de Lisboa. Fiquei aprovado. Matriculei-me no ensino nocturno, pois precisava trabalhar para me sustentar.
Voltei definitivamente a Lisboa em Outubro de 1963 e, depois de responder a vários anúncios, fui admitido em Novembro para a contabilidade de uma empresa, nas Escadinhas da Praia, no Bairro de Santos.
Começou assim o meu contacto com a cidade de Lisboa. Todos os dias apanhava o eléctrico na Praça do Chile para Santos (Como andava sempre atrasado depressa aprendi a saltar para o eléctrico em movimento – era giro). Ia a almoçar a casa e voltava para a empresa, de onde saía por volta das 18 horas, seguindo depois a pé para o Instituto Comercial (chamado “Cortiço”) na Rua das Chagas ao Calhariz. As aulas começavam ás 19 horas.
Em 1963 já havia o metropolitano de Lisboa – troço Restauradores/Rossio; em 1966 o troço Rossio/Anjos e em 1972 a ligação Anjos/Alvalade. N altura não gostava muito de andar debaixo da terra como as toupeiras e por isso privilegiava o eléctrico e os autocarros.
A adaptação ao novo modo de vida (trabalhar de dia e estudar de noite), mas principalmente o fascínio por conhecer a cidade de Lisboa (mais à noite do que de dia), tiveram como consequência que no primeiro ano lectivo só passei a duas disciplinas (cadeiras) e no segundo ano a quatro.
Foram dois anos de descoberta desta cidade que, de tal modo me fascinou, que nunca mais daqui saí (já lá vão 47 anos). Aqui aprendi a ser homem, do dia e da noite. Tenho na memória muitas estórias dessa vivência. A cidade era tão grande e oferecia tanto que num dia podia viver várias vidas.
Tudo era diferente para melhor e para pior. Por exemplo na casa de meus pais havia uma casa de banho, com sanita e chuveiro. Aqui em Lisboa vivi em alguns bairros antigos onde não havia casa de banho. Existia apenas uma “Sanita” que estava no exterior da casa (no vão das escadas traseiras). Tomava banho num balneário público na Rua do Poço do Borratém.
Frequentei os bares/cabaret do Intendente, do Cais do Sodré, da Praça da Alegria da Baixa, da Av. da Liberdade e todos os outros onde (ainda jovem) me deixavam entrar.
Ia aos bailes na Casa do Alentejo, na Casa de Trás-os-montes e Alto Douro, na Casa do Algarve, na Casa de Lafões, na casa das Beiras, na casa da ….. Espanhola (na Rua da Trindade, próximo da cervejaria) e até em sociedades recreativas na zona do Beato e outras.
Havia também bailes no fim do ano e Carnaval em quase todos os cinemas e teatros de Lisboa (Monumental, Roma, Império, Condes, Éden, S. Jorge, Jardim Cinema, Paris, Promotora, etc.). Nas festas dos Santos populares dançávamos nas Ruas do Bairro Alto, Alfama, Mouraria, Bica, e outros.
Também dançávamos nas casas de algumas meninas que, como não iam a outros bailes, convenciam as mães a organizar pequenas festas.
Quando as festas se prolongavam até de madrugada, íamos beber cacau à Praça da Ribeira.
Estudava no “Paladium” à noite no piso superior, onde estavam os bilhares, junto a uma porta que diziam em tempos fazer ligação com o cabaret “Príncipe Negro” na Calçada da Glória.
Nesse café conheci pela primeira vez a figura do “chulo”, situação que de inicio me incomodou mas a que depois me habituei. Sentava-se à mesa com uma mulher na frente; Pedia “o dinheiro”. Ela colocava notas sobre a mesa. Ele dizia que era pouco e dava pontapés nas pernas da senhora, por debaixo da mesa. Os pontapés só terminavam quando o “chulo” entendia que as notas sobre a mesa eram suficientes.
Vivi o ambiente do Parque Mayer. Lembro-me de ver o teatro de Revista, em particular e várias vezes aquelas em que entrava uma jovem mulher, que deixava todos a suspirar:
Vi pela primeira vez a polícia a bater nas pessoas de forma indiscriminada na Rua Áurea, quando estava à espera da minha namorada que trabalhava num Banco. Apenas tive tempo de me esconder num vão de escada.
Como o dinheiro era pouco fiz-me sócio da “Livrelco” (próximo da feira Popular) Em Entrecampos, para poder ler os livros que gostava. Era uma cooperativa de estudantes, consumidores de livros, que teve uma grande importância histórica na última época do regime fascista, o período marcelista. Foi extinta pelo governo em fins de 72 ou princípio de 73. Em relação há música o sistema era outro. Todos os sábados ia com a namorada à loja “Discoteca Melodia” na Rua do Carmo. Entrávamos, escolhíamos vários discos (single) e depois ouvíamos, por uns “headphones”, durante cerca de duas horas os últimos êxitos que iam sendo publicados de música estrangeira. Para podermos estar todo aquele tempo, no final comprávamos um disco.
No verão ia à praia de Carcavelos, com as raparigas que viviam no Bairro onde morava. Apanhávamos o eléctrico e depois o comboio nos Cais do Sodré às 6 horas da manhã. Naquela praia aprendi a nadar sem mestre.
Vi quase todos os espectáculos de música Rock dos anos 60, que se exibiam em Lisboa (geralmente no Monumental), portugueses e estrangeiros.
Como amante de música desde pequeno, nunca gostei muito do fado por achar que era tudo uma grande tragédia mas, chegado a Lisboa depressa entendi que o Fado era parte da cidade e não era só “choraminguices”. O fado tinha várias expressões que retratavam a vida social de Lisboa (os bairros pobres, a classe média, os ainda "fidalgos", estórias de cavalos e touradas, a exaltação do património da cidade, das suas vistas, do mar e dos seus poetas.
Frequentei por isso também todas as casas de fado que havia nos bairros típicos de Lisboa.
Vivi nas ruas de Lisboa o dia 25 de Abril de 1974 e senti a verdadeira liberdade no 1º de Maio de 1974 na Alameda D. Afonso Henriques. Todos se sentiam livres e falavam entre si de igual para igual.
Por tudo isto e o muito que tenho na memória, fica a imagem desta linda cidade de Lisboa, que me adoptou aos 17 anos e cuja beleza redescubro cada vez que a revejo de um miradouro, da ponte 25 de Abril, de um cacilheiro ou de um avião.
Da minha janela não vejo o Tejo. A pior coisa que pode acontecer a uma alfacinha. Não tem água que chegue é só meio alface. Já mo tinham dito mas por outras razões.
Com as alfaces é muito complicado. Têm as folhas tenras, precisam de água. Duras é que elas não são e com a secura não se dão.
Por isso, quando saio, é para lá que me viro. Vou descendo, descendo, até chegar à beira da água e apetecia-me ficar lá a morar.
Sou a Menina do Mar da Sophia e, se encontrasse o rapazinho da casa branca, havíamos de mergulhar os dois à procura dos golfinhos do Mar da Palha que eu via quando era do tamanho dele e atravessava o Tejo no cacilheiro.
Eram nossos amigos, não nos tinham medo. Nós debruçados na amurada com os pés no ar e eles nadavam, nadavam com a espuma e connosco, à frente, ao lado do barco. Felizes, fazíamos uma algazarra. E eles respondiam.
Nem nos apetecia largar o barco. Mas, na volta, lá estavam eles para nos levar a casa.
Para onde foram os meus golfinhos do Mar da Palha? Quem os maltratou para já não nos quererem acompanhar na travessia?
Agora, sempre que alguma emoção forte me toca, há um pólo magnético que me convoca a ir vivê-la para a beira-rio. Seja um sentimento feliz, um desgosto ou, apenas estar comigo própria, com um bom livro ou só a olhar o movimento do Estuário.
No meio desta cidade turbulenta onde está a ser cansativo viver, é lá que encontro paz.
Nunca mais vi os golfinhos. Agora tenho as gaivotas. E o Tejo, sempre o meu Tejo.
“E mesmo que esteja frio e os barcos fiquem no rio, parados sem navegar”…eu gosto de lá estar.
Três momentos teatrais, começamos com Eunice Muñoz evocando Ivone Silva em "Passa por mim no Rossio"
Luis Mariano numa opereta parisiense La Caravelle d'Or, canta uma canção dedicada a Lisboa - Lisbonne. Ouçamo-lo:
E agora, andemos um pouco mais para trás - Estevão Amarante na revista "O Tremoço Saloio" que subiu à cena em 1929, no palco do Teatro São Luiz: - cantava o famoso «Fado do 31». Podemos agora escutar esse fado cantado por Rodrigo.
Olisipo se chamava antes de ser tomada pelos Romanos, que a baptizaram de Felicitas Julia Olisipo. Os Árabes vieram depois chamaram-lhe Aschbouna. Olisipo, Felicitas Julia, Aschbouna. Tanto faz. É, teimo eu, pois sou quem manda e tudo pode no território desta crónica (já que não mando em nada mais), uma nave orgulhosa. E guardada por dois corvos. Assim dizem as suas armas inspiradas na história, ou, se melhor preferirmos, na lenda de São Vicente, ou talvez mesmo em ambas as cousas.
Segundo a Legenda Aurea, um texto hagiográfico que o frade dominicano Iacopo de Varazze escreveu na Itália do século XIII, nos alvores do quarto século da era Cristo, talvez em 304, um clérigo de nome Vicente, nascido em Huesca, oriundo de uma família ilustre, foi nomeado arquidiácono da diocese de Saragoça, na romana província Tarraconense. O seu superior, o bispo diocesano, que sofria de um defeito na fala, pois seria gago, encarregara Vicente de falar em seu nome aos fiéis. Ouvindo rumores de que as prédicas de Vicente eram demasiado eloquentes e podiam predispor o povo contra o domínio romano, Daciano, o magistrado encarregado de executar as leis imperiais e os éditos de Roma naquela região, mandou que o bispo e o arquidiácono fossem trazidos à sua presença.
Vicente falou pelo bispo gago e por si mesmo, reafirmando as suas convicções. O resultado não foi o melhor: o tartamudo apenas foi desterrado, mas Vicente foi barbaramente torturado em Valência por ordem de Daciano, tendo-lhe sido dilacerada a carne com garfos de ferro em brasa, deitando-o depois os torcionários numa cama feita também de ferro que previamente aqueceram até ficar incandescente. Meteram-lhe depois o torturado corpo num cárcere de reduzidas dimensões, com os pés apertados em cepos de madeira. Na Legenda Aurea conta-se que, em dada altura, a cela ficou inundada por uma incandescente luminosidade e que as estacas pontiagudas que revestiam o sobrado se transformaram num colorido tapete de flores. Em redor, os anjos entoavam cânticos divinos... Em suma, eu imagino que deve ter sido tudo muito bonito. Neste ponto, um descancarado diabinho que me povoa a mente e que dá pelo nome de lucidez, sussurra-me que o martirizado corpo de Vicente e o seu cérebro atormentado pela tortura, o levaram a estas celestiais alucinações. (…) Prossigamos. Diz-se que Daciano, ouvindo falar destes prodígios, ainda ordenou que tratassem os ferimentos ao arquidiácono e deixou mesmo que os cristãos o visitassem. Contudo, o mal estava feito – Vicente não resistiu às torturas que sofrera e morreu. O seu corpo destroçado e ensanguentado, embora exposto, por ordem de Daciano, ao apetite das aves de rapina e dos carnívoros necrófagos, permaneceu incorrupto, pois nenhum dos animais que o veio farejar o ousou devorar. Ante este insucesso, Daciano mandou então que os restos mortais de Vicente fossem metidos num saco a que foi atada uma grande pedra, e lançado ao mar. Contudo, também o mar se recusou a tragar o corpo e Vicente foi trazido pelas ondas até à praia. Consta que os pedaços de tecido das suas roupas, manchados de sangue seco, foram depois piamente recolhidos por alguns crentes e, segundo se diz, terão também produzido diversos milagres.
Quando os Árabes ocuparam a Península, no oitavo século da nossa era, o primeiro emir omíada de Córdova, Abderramão I decretou que as igrejas cristãs fossem transformadas em mesquitas e que as relíquias dos santos fossem destruídas. Os despojos mortais de São Vicente foram então sigilosamente trasladados para um cabo no extremo ocidental do Algarve. Al-Idrisi, o geógrafo árabe, apontou mesmo para o origem do topónimo Cabo de São Vicente, no Algarve, o facto de o corpo do santo ali ter estado depositado, escondido e protegido de islâmicas profanações. Segundo a narrativa do cónego Estêvão, no século doze, pensa-se que em 1173, para evitar a profanação por parte dos maometanos que teriam dado com o esconderijo, o corpo de São Vicente foi trasladado do Algarve para Lisboa num navio. Dois dos muitos corvos que, dizia-se, pousavam sobre o secreto túmulo do santo no também chamado Cabo Sacro, vieram até Lisboa vigiando o corpo. (…)
No brasão de armas mais antigo que se conhece da cidade, figura um navio com dois corvos, um postado à ré e outro à proa. El-rei D. Manuel ordenou que o brasão passasse a ser um escudo partido, arvorando de um lado as armas reais e, do outro, em cima, um navio. Em baixo, a esfera armilar, simbolizando o guia que tem orientado as nossas navegações. Mais tarde, voltou a ser apenas de um galeão com as vergas em funeral e ladeado por dois corvos, pois um douto arcebispo de Lisboa disse avisadamente: «Temos de tornar Lisboa ao Santo Mártir por padroeiro seu, e por armas a nau, em que o santo lhe foi trazido, com os dois corvos, que vieram seguindo, em memória dos quais perseveraram sempre nesta sé outros semelhantes». Teve nestas palavras razão o arcebispo: e assim voltaram os dois simpáticos corvos a pousar no brasão de armas da nossa cidade.
Outra curiosa lenda sobre Lisboa, se de lenda se trata, é a que nos conta Damião de Góis – sábio e honrado varão que tenho o privilégio e a honra de conhecer em pessoa e de muito estimar e admirar – na sua Descrição da Cidade de Lisboa (Urbis Olisiponis Descriptio), fala-nos sobre tritões e sereias, dizendo que, segundo Plínio em Naturalis Historiæ, tinha sido visto e ouvido em determinada gruta um tritão a cantar com uma concha, apresentando-se com o aspecto tradicionalmente atribuído aos tritões. Diga-se que o aspecto que lhes era conhecido seria o de possuírem escamas espalhadas por quase todo o corpo. Segundo Góis, ainda «nos nossos dias» existem homens-marinhos, habitantes da área litoral, que apresentam esses vestígios da sua antiga raça.
As sereias eram também frequentemente avistadas. Refere ainda que nos Antigos Arquivos do Reino, de cuja chefia estava nessa altura o douto Damião encarregado, existia ainda um manuscrito de um contrato celebrado entre el-rei D. Afonso, o terceiro de tal nome, e Paio Peres, mestre da Ordem dos Cavaleiros de São Tiago, segundo o qual se determina o imposto a pagar pela referida Ordem pelas sereias e outras espécies animais pescadas nas suas praias. Daqui, acrescenta Damião, «se deduz obviamente que as sereias eram então frequentes nas nossas águas, visto que sobre elas se promulgou uma lei». De tágides, ninfas do Tejo, nos falaram André de Resende e outros jovens poetas, como esse talentoso Luís Vaz, vate de que tanto agora e mui justamente se fala. Lisboa, era terra de muitos e variados prodígios.
Como sempre acontece nestes casos, destrinçar a lenda da verdade histórica, onde começa o nebuloso território de uma e o diáfano império da outra termina, não é tarefa fácil. Por isso, o cronista, para mais se, como eu, for um simulacro de cronista, sujeito a crises de cepticismo, se deve limitar à sua função de descrever aquilo que ao seu conhecimento vem chegando, sem muito cuidar de distinguir a verdade da ilusão, o corpóreo do invisível, o real do irreal. Como alguém que, na praia, vá colhendo elementos: peixes, estrelas-do-mar, medusas, seixos, búzios, espuma, o sibilar do vento, a canção das ondas e o odor a sal, sem pretender estabelecer qualquer diferença entre a natureza fisicamente perene de uns e a constituição, efémera e volátil, dos outros. (…)
Quanto aos corvos, aves geralmente consideradas de mau agouro, talvez por serem negras, mas que os lisboetas carinhosamente adoptaram e passaram a tratar por «vicentes», podemos vê-los às portas de algumas das muitas tavernas da cidade, crocitando as suas filosofices ou dizendo uma ou outra palavra, inconveniente ou mesmo inocentemente obscena.
(Excertos do Antelóquio de O Hortelão de Palavras) ________________
Arranjo: Jorge Varrecoso Gonçalves e Vasco Azevedo
É também uma cantiga de amigo (marinha), de dístico de rima toante (í-o e á-o), com refrão composto de duas partes (uma intercalada entre o 1º e o 2º verso do dístico e a outra no final da estrofe): fala a donzela (namorada) da sua decisão ou desejo de ir ver o barco / navio, que o rei mandou preparar para uma missão e nela deseja partir com o seu amigo. É seu autor João Zorro, o jogral de Lisboa e do Tejo (viveu certamente durante o reinado de D. Dinis), e sobretudo das suas barcas, tão bem evocadas no século XX por Fiama Hasse Pais Brandão. Encontra-se registada nos cancioneiros B (Biblioteca Nacional, nº 1157) e V (Vaticana, nº 759):
En Lixboa, sobre lo mar
Barcas novas mandei lavrar.
Ai, mia senhor velida!
En Lixboa,, sobre lo ler
Barcas novas mandei fazer.
Ai, mia senhor velida!
Barcas novas mandei lavrar
E no mar as mandei deitar.
Ai, mia senhor velida!
Barcas novas mandei fazer
E no mar as mandei meter.
Ai mia senhor velida!
Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)
Lisboa tem barcas novas
Lisboa tem barcas
agora lavradas de armas
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terra
São de guerra as barcas novas
ao mar mandadas com homens
Barcas novas são mandadas
sobre o mar
Não lavram terra com armas
os homens
Nelas mandaram meter
os homens com a sua guerra
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
Barcas novas são mandadas
sobre o mar
Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas
Nota: Adriano Correia de Oliveira criou uma lindíssima versão musical deste tema. Não o encontrámos, no entanto, disponível.