Marcos CruzUm homem sentado no passeio estende-me a mão, e eu, lendo um cartão que ele, como se fosse a outra mão, pousara sobre os joelhos, dei-lhe dinheiro. O cartão dizia: vivo na rua e não tenho o que comer. Dentro de mim, parecia que aquelas duas mãos haviam entrado para um debate político em linguagem de surdos: uma acenava-me com o sofrimento do homem, a sua necessidade; a outra procurava convencer-me de que, ao dar-lhe dinheiro, não o estava a ajudar a levantar-se. Pelo que já revelei, deduz-se que o primeiro argumento me emocionou mais, mas não é verdade: o debate das duas mãos era anterior àquele momento e continuou para lá dele. Agora mesmo ele mantém-se vivo, e não sei até se morrerá antes de mim. Mas, na dúvida, dei-lhe dinheiro. Há quem, na dúvida, não dê. Eu gosto de confiar nas pessoas até prova em contrário. Confiar não só no que me contam, mas confiar também na sua bondade.
Para tal, porém, ajuda-me vê-las, tê-las à frente. Percebo isso hoje muito mais nitidamente, com a globalização das relações. Esta manhã, por exemplo, ligaram-me do Japão. Era um homem bem educado, embora a pender um bocadinho para o autómato, à imagem do que acontece um pouco com os operadores das redes telefónicas aqui em Portugal e julgo que por todo o mundo, e paulatinamente foi-me encaminhando para o que queria: saber se eu estava interessado em investir na limpeza da costa norte-americana, vítima de um dos maiores desastres ambientais de que há memória. A vantagem que eu tinha, segundo ele, era que, entrando com 60 dólares, sairia garantidamente com pelo menos 90, e o meu nome ficaria associado a um acto de nobreza planetária. O processo era esquisito, a qualidade da chamada e o problema da língua também não ajudaram, claro, mas, no essencial do que eu pude entender, havia uma empresa, altamente reconhecida pela Casa Branca, destinada a angariar fundos para combater a maré negra. Escusado será dizer que só este programa, enunciado assim, me fez lembrar o presidente Obama e o seu drama pessoal, que hoje não é um drama e sim um motivo de orgulho mas que ao longo da vida foi, se não um drama, pelo menos uma fonte de reflexões tensas, umas gratificantes e outras corrosivas, ou não houvesse ainda muitos americanos a dar-se chapadas para tentarem perceber como é que a maré negra chegou à Casa Branca, como é que um sujeito chamado Barack Obama rompeu com uma História, relativamente curta, tudo bem, mas imaculada na sua alvura. Para que a tal empresa tivesse êxito em tão humanitário projecto, era necessário que eu disponibilizasse a minha quota-parte de responsabilidade cívica - em dinheiro, obviamente. Neste caso, e avançando pela linha telefónica, não eram duas as mãos que eu visualizava, mas três: uma estendida, pedindo; a outra, de polegar erguido, aludindo à boa causa; e a última, de palma em riste, garantindo-me que a recompensa financeira chegaria. Eu, na minha ingenuidade, e sem ter captado com suficiente rigor os trâmites do negócio, supus que os lucros da investida ao petróleo submerso, que o mesmo é dizer os lucros do prejuízo, me tocariam também na devida percentagem. Estive quase uma hora a falar com o Mr. Banks (um nome bem a propósito, diga-se de passagem), tendo os últimos 15 minutos sido empregues na minha tentativa de o fazer compreender, sem me levar a mal, que eu não estava interessado, não em ajudar a limpar a costa americana, não em contribuir para fazer do planeta um lugar melhor, mais justo, mais respirável, mas em lucrar, e ainda por cima de forma ínvia, complexa, sinuosa, com a catástrofe ambiental, abrindo inclusivamente assim um precedente para que, no futuro, depois da BP, viesse a CP, a DP, a EP, a FP e outras multinacionais identificadas pelo P do petróleo, da porcaria, da perversidade e, numa dimensão mais religiosa (agora tão cara, como pretexto, aos fazedores de guerras), do pecado, provocarem novos desastres, novas tragédias, destinadas a levar ainda mais para a frente um sistema económico que, justamente pelo seu impacto social, já mostrou à saciedade que tem, ele sim, e mais do que a maré negra, de ser travado. Se o fosse, talvez o mundo entrasse na mão.