Quinta-feira, 29 de Julho de 2010

Uma vitória da Europa civilizada

Carlos Loures

No Parlamento catalão, por 68 votos a favor, 55 contra e 9 abstenções, os deputados aprovaram a proibição das touradas. Será a segunda comunidade que as proíbe, pois as Canárias assumiram esta medida em 1991. Portanto, na Catalunha, em 1 de Janeiro de 2012, entra em vigor a lei que proíbe as corridas de touros. Os que defendem a “fiesta” tentarão evitar que a proibição passe da legislação ao plano prático, usando todos os artifícios processuais. Os anti-taurinos procurarão que a lei seja respeitada, Para além do problema político, em que a nação catalã afirma mais um traço da sua identidade, há dois tipos de mentalidade em confronto.

Nos debates parlamentares que antecederam a votação de ontem, depuseram a favor de uma e outra posição diversas personalidades. Por exemplo, no sentido da defesa da continuidade das touradas depuseram, entre outros, Hervé Schiavetti, «maire» de Arles e presidente da União das Cidades Taurinas de França, e o filósofo Francis Wolff, professor da Sorbonne, e autor de uma “Filosofía de las corridas de toros”. Na sua intervenção, declarou que a corrida «já não é a festa nacional de Espanha, pois agora é património mundial». As alegações basearam-se nas banalidades do costume, salientando-se no entanto, na intervenção de Schiavetti a chamada de atenção para a vertente económica do assunto: «Não se trata apenas de um elemento cultural, mas também de uma questão económica; hoje em dia criar touros e aquilo que a criação comporta, constitui um forma imprescindível da gestão do território». O que põe o dedo na ferida. Lembrou que em França a exploração que inclui a criação do touro, implica a manutenção de mais de 300 000 hectares de reservas húmidas. Um ganadeiro catalão afirmou que se os deputados catalães aprovassem a lei, seriam responsáveis pela extinção desta espécie animal. Valeu tudo. Um outro de Tarragona comparou a abolição das touradas com a censura franquista.

De Madrid chegaram ajudas aos defensores das corridas. Ignacio González, vice-presidente da Comunidade de Madrid, anunciou que o seu governo irá declarar as touradas um «bem de interesse cultural» integrando-as na Lei do Património Artístico. O que, de facto, irá ser feito Foi também invocado o interesse de grandes artistas pelo espectáculo taurino – Goya, Picasso, García Lorca, Hemingway e Orson Welles. Voltando à intervenção do tal filósofo que defende as touradas, Wolff considerou hipócrita a lei portuguesa que, não permite a morte na arena, o que não retira nada ao sofrimento o animal; sofrimento que Wolff, em todo o caso, desvalorizou. Nisto dou-lhe razão: a crueldade das touradas «à portuguesa» não é inferior á dos touros de morte – pelo que devem ser proibidas tão depressa quanto possível. O exemplo do município de Viana do Castelo deve ser seguido por todo o país.

Disse no texto anterior que sempre que se fala na tradição taurina em Portugal, é obrigatória a alusão ao conto de Rebelo da Silva «A Última Corrida de Touros em Salvaterra», o que demonstra a carência de referências. Em tempos pediram-me um parecer sobre uma edição de uma história das touradas em Portugal. Esforcei-me por encontrar material que pudesse justificar tal edição, embora o tema me desagradasse. Apenas se encontraram meia-dúzia de referências e a impossibilidade de manter um fio discursivo que ligasse as pinturas rupestres, representando bois, que os pró-taurinos insistem em reivindicar como primeiras representações da «sua» história, à actualidade. Encontram-se referências dispersas sobre as corridas de canas que se faziam no Terreiro do Paço, mas nada que permitisse alimentar uma obra de grande envergadura como a que se pretendia.

A informação volumosa (textos, pinturas, fotografias) começa apenas no século XIX. Felizmente que o estudo de mercado encomendado a uma empresa da especialidade revelou a falta de interesse do público em geral pelo tema, indiciando um fracasso editorial. De notar que, em Espanha, onde o público potencial para uma edição deste tipo seria muito maior, também não se previu uma massa crítica suficiente para a alimentar. A opinião dos meus colegas catalães, foi igualmente negativa, dada, mesmo ali, a ausência de um caudal iconográfico que permitisse ilustrar um mínimo de oito volumes com 300 páginas cada.

As fontes, são escassas e inconclusivas. Quem quer provar a ancestralidade da tourada vai buscá-la às referidas pinturas rupestres, a pré-históricos sacrifícios cerimoniais ou ao circo romano. Há quem defenda que os romanos colheram a arte de lidar touros na Península Ibérica. Há quem diga exactamente o contrário, que foram eles que a trouxeram. Há relatos medievais de festas com touros. No que se refere a Portugal, em “Ensinança de Bem Cavalgar toda a Sela, D..Duarte refere-se, entre outras, à arte tourear a cavalo. E há referência a uma lide de D, Sebastião nas vésperas de partir para Alcácer Quibir e alusões dispersas e inconsistentes.

Segundo parece no Século XVIII as corridas de touros eram um divertimento muito popular. O conto de Luís Augusto Rebelo da Silva (1822-1871), não sendo literariamente a melhor obra deste autor do Romantismo, ganhou fama pelo seu teor dramático – o velho conde de Marialva, cujo filho, o conde dos Arcos, é morto por um touro, para o vingar o velho desce à arena e mata o touro. Passa-se durante o reinado de D. José I, governo do marquês de Pombal. e este pede ao rei que proíba as touradas. Diz Rebelo da Silva: “Sebastião José de Carvalho voltava de propósito as costas à praça, falando com o monarca. Punia assim a barbaridade do circo. — Temos guerra com a Espanha, Senhor. É inevitável. Vossa Majestade não pode consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassalos! Se continuássemos neste caminho... cedo iria Portugal à vela. — Foi a última corrida, marquês. A morte do conde dos Arcos acabou com os touros reais, enquanto eu reinar.”

Parece existir nisto alguma base histórica, mas o escritor ficcionou os factos que nem sequer se passaram em Salvaterra nem no reinado de D. José que nunca proibiu as touradas. Isso aconteceu no reinado de D. Maria II e em todo o território nacional, aconteceu em 1836, doze anos antes de Rebelo da Silva publicar o seu conto, o ministro do Reino Passos Manuel promulgou um decreto proibindo as touradas, como referi no texto de ontem. O estranho é que esta ficção se transformou num recorrente argumento dos que defendem as corridas de touros. Um fado relata a história criada pelo escritor romântico como se de um facto histórico se tratasse. Um outro homem da família morreu em Tânger, e aqui não há ficção. Conta-se que durante a tomada da praça, em 1464, cego de fúria, D. João Coutinho, o velho marquês de Marialva, entrou sozinho a cavalo dentro do templo (onde se haviam refugiado os não-combatentes) e, com a sua espada, matou muitas dezenas daquelas gentes indefesas, até que, já sem forças, encharcado em sangue dos pés à cabeça, foi, pelas mulheres, velhos e crianças, puxado de cima da montada e literalmente despedaçado.

No Século XIX, o rei D. Miguel era também conhecido pela sua fina arte do toureio, sendo, durante o seu reinado, inaugurado o Campo de Santana em Lisboa e o decreto de Passos Manuel reflecte a sua posição de homem moderno, liberal, face ao obscurantismo conservador dos miguelistas. Duas mentalidades. Porém, nove meses depois as Cortes Gerais revogaram o decreto de Passos Manuel.

Voltemos então à luta travada Parlamento da Catalunha – ele pôs frente a frente dois tipos de mentalidade. E não estou a falar em catalães metódicos e nos álacres castelhanos. Não precisamos de sair de Portugal ou mesmo da cidade em que vivemos para encontrar esses dois tipos de enfrentar a realidade. Os que condenam a barbárie e os que a defendem (mesmo que invocando os valores supremos da cultura, da tradição, da identidade nacional e até, para meu espanto, da conservação das espécies.

É aquilo a que vulgarmente se chama civilização. Oxalá a Catalunha consiga na prática o que já conseguiu no plano jurídico - erradicar este espectáculo, de beleza ímpar para uns e para outros uma manifestação do que de mais obscuro existe na mente humana. São lapidares as palavras de uma crónica sobre este tema do Prof. Carlos Fiolhais publicada no Público em 5 de Dezembro de 2008: «Aos defensores dos espectáculos tauromáquicos têm-se oposto os defensores dos direitos dos animais. Se os primeiros dizem que “se há alguém que cuida e que ama os touros são os próprios toureiros", os segundos ripostam que isso "é o mesmo que dizer que os pedófilos são os melhores amigos das crianças"»
publicado por Carlos Loures às 12:00
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