Domingo, 2 de Janeiro de 2011

Sobre as avaliações, sobre os rating, sobre os professores

Júlio Marques Mota


Em tempos idos pensava que o neoliberalismo não avançava tão rapidamente na sociedade portuguesa como o está a fazer actualmente no ensino, mesmo quando o sistema dá sinais evidentes de estar quase defunto. Feita a reforma do ensino superior, dita reforma de Bolonha, pensava eu, ingenuamente, que algum pudor haveria em avançar com mais reformas antes de estabilizar esta e portanto que se passaria primeiro por uma análise em profundidade desta reforma, na óptica de quem a lançou no terreno, neste caso na óptica de Mariano Gago e de quem o acompanha, de quem o defende, de quem o serve ou d equem é obrigado a servi-lo. Mas não, mais uma vez me enganei. O ritmo de reformas avança, e agora é a avaliação dos docentes que avança, é o sentido da classificação, da quantificação da qualidade que se pretende, pretende-se assim o impossível mas como não é crível que intelectuais e técnicos assumidos andem a trabalhar para querer o que toda a gente sabe que é impossível, então o objectivo é outro, para mim é certo de que o que se pretende é garantir, agora ou depois, um certo ritmo da desclassificação, um certo ritmo de redução de custos. De resto, agora nem sequer se fala em promoções. Então avalia-se oara quê? Alguém é capaz de me dizer? Penso ter razão e, se assim é, ninguém mente pois nos tempos de crise que se vivem em que todos os cofres estão vazios, promover, significa agora despromover, e é disso que se anda à procura. Evita-se a mentira de o dizer.


Num texto sobre Bolonha afirmámos e passo a citar:


Por se seguir o caminho inverso daquele que a situação exige, inverteu-se a lógica da democracia quanto à função do Estado. Uns obscuros departamentos de trading de alguns poderosos bancos de investimento, uns poderosos e quase que anónimos hedge funds, uns obscuros especuladores, o mercado afinal, determinam num obscuro mercado os valores dos CDS, em que ninguém nos explica como funcionam, como se determinam as suas taxas; questão extraordinariamente importante quando são estas taxas que vêm a determinar o valor das taxas de rentabilidade implícita dos títulos da dívida pública e o peso do serviço da dívida soberana, quando depois é este que determina o volume de impostos a receber e o volume de despesas a cortar, os grandes investimentos públicos para o futuro a desaparecer. Tudo isto em nome das gerações futuras. E assim se determina o sentido das políticas nacionais e se anula a democracia. Quer-se agora sacrificar os próprios Estados, a própria democracia, no altar da soberania absoluta dos mercados financeiros, cada vez mais opacos, comme il faut. O resto é a plêiade de discursos dos nossos políticos e dos nossos intelectuais a glorificar o caminho imposto pelos mercados financeiros, prisioneiros que são, explícita ou implicitamente, do sentido da eficiência que a estes continua ainda a ser atribuída. E tanto é assim que até os traders, ou gerentes desses obscuros agentes, nesses obscuros mercados, com bónus na ordem das muitas dezenas de milhões de dólares por ano, são também eles classificados, avaliados, por empresas também elas internacionais, globais, e também elas sujeitas às agências de notação . Com tanta avaliação, do primeiro ao último elo da cadeia, quem se atreve a pôr em dúvida a eficiência dos mercados? E aqui a analogia com Bolonha é imediata: também a Universidade vai ser submetida à mesma lógica de eficiência, à mesma lógica dos rating, das avaliações, mas com uma grande diferença. Enquanto os rating para os traders marcam o ritmo dos bónus futuros, o ritmo dos milhões de dólares a receber, na Universidade, porque não há dinheiro, não há sequer tostões, Os rating para os professores têm apenas uma função ideológica: cumprir o modelo!

Estamos pois a falar de ratings,, e é de ratinhos que se fala com a avaliação dos docentes. Num outro texto sobre o mesmo tema afirmei sobre a modernização do Ensino Superior de que o primeiro Ministro e Mariano Gago se orgulham tanto :

Dizem-nos ter “modernizado” o sistema de ensino superior

Flexibilizaram-se os contratos de trabalho, precarizou-se a segurança no trabalho, colocou-se, por essa via, os professores a considerarem a sua carreira como uma espécie de campeonato de futebol onde o importante é marcar pontos contra os outros e impedir que no-los marquem a cada um de nós, onde estão sujeitos a avaliação contínua como se as sucessivas provas públicas deixassem de ter qualquer significado, onde se passa a fazer não o que se deve verdadeiramente fazer mas sim aquilo que o avaliador é capaz de exigir e compreender, de quantificar e, normalmente, trata-se de coisas diferentes. Possivelmente, a partir de agora, cada professor poderá estar mais interessado em compor a montra onde se irão colocar os dados que vão ser quantificados, avaliados, medidos, do que propriamente em preocupar-se com a função para a qual é pago: ensinar. E esta última função passa-se sobretudo na sala de aulas, no que está aquém dela, no que está para além dela mas onde esta é sempre o centro. Aqui, não há métrica que valha mas a lógica neoliberal exige o impossível que é que seja quantificável o que incomensurável e é assim, pela simples razão de que o que lhe interessa não é a qualidade mas a quantidade. Primado absoluto da quantidade sobre a qualidade, primado absoluto da precariedade a que os docentes vão estar submetidos sobre a estabilidade que a estes deveria ser oferecida, primado absoluto, portanto, do número, neste caso das vias que levam à redução dos custos. O que passa a ser preciso é considerar a carreira e a vida como uma escada de acesso a um trapézio muito alto e de onde não se pode cair ou não se deve, já que a queda pode ser mortal. Por essa via, é a profissão que sai minimizada e os estudantes, esses, passam para segundo ou terceiro plano, desejando-se apenas que não nos atrapalhem na subida das escadas da vida de cada um de nós, professores. Adicionalmente, reduz-se a dimensão dos cursos, multiplica-se o número destes, vejam-se só os números de cursos em engenharia espalhados por esse país, multiplicam-se os mestrados e inventa-se a transversalidade para os diversos mestrados, em que um licenciado em direito ou em agronomia ou noutro curso qualquer, onde praticamente não teve economia, pode tirar um mestrado na área de gestão ou de economia e num tempo bem curto.


Em suma, “modernizar” o ensino superior pode vir a poder-se considerar como um custoso processo de autonomização e de conservação da ignorância dos estudantes que, em vez de verem a ignorância por si vencida, esta é a função da Universidade, passam é a ser possuidores de uma ignorância mantida ou acrescida, derivada da erosão do tempo em que não se estuda ou em que se passa por cima de quase tudo o que é estudo, com a velocidade de quem tem medo de perder um outro comboio, o de ir procurar e conseguir emprego antes dos outros, os seus colegas concorrentes. Mas, tudo isto faz parte da “modernidade” de que nos falam até à exaustão os nossos políticos .

O modelo subjacente à política do Ensino Superior é o modelo neoliberal na sua versão mais dura, naquilo que leva a que cada um de nós se molde na nossa interioridade aos parâmetros do sistema, de um contra todos, o mesmo se passando quanto à nossa exterioridade. Se queremos sobreviver, terá que ser assim, o trabalho que se faz deve ser feito fundamentalmente para a quantificação. Neste modelo a quantificação é primordial, pois não tem valor tudo o que não se possa medir, aferir, comparar, quantificar: Neste modelo é fundamental o rating, como o é em qualquer Bolsa e, descobrimo-lo agora de forma bem terrível, como o é também assim com o nosso pão de cada dia, porque as nossas vidas, dependem das políticas económicas seguidas e estas dependem, também elas do rating da dívida pública. Condenados, cercados pela lógica do rating, eis pois a condenação do cidadão moderno. Procure-se, por todas as esquinas, por todas as praças de Lisboa, por esse mundo quem nos assegure um pouco de paz, quem nos assegure um rating de qualidade e triplo A que seja!.Boa sorte.

Vou-vos reproduzir uma fábula, passada num país qualquer, a que damos o nome de Numerolândia, o país do número, e claramente esse país poderia estar actualmente a ser governado por um qualquer governo da Eurolândia. Qualquer deles ficaría aí muito bem.

A fábula, portanto.


A verdade da fábula


Um dia na região onde se desenrola esta fábula, a Agência dos Avaliadores informa o Centro de Investigação Regional de que os seus Peritos viriam da capital para avaliar a investigação, as equipas, e o Instituto na totalidade dos seus serviços, com excepção dos investigadores.

Neste país entre os países, os Estatísticos pediram um dia ao governo autorização para incluir informações de ordem étnica nos seus inquéritos. O debate abriu-se. Houve gente “por”, ou gente “contra”, e a controvérsia transcendia, e de longe, a clivagem habitual entre partidos do governo e da oposição.

As pessoas que defendiam a inclusão deste tipo de dados , os do “por” explicavam que dado que se podia, a partir de agora, aceder à informação, não tinha sentido privarem-se dela: é a utilização de um saber que se revela boa ou má, não o saber em si- mesmo. E de momento, só se faziam coisas boas, porque somos todos os democratas - não é assim ? - e somos todos bem conscientes das nossas responsabilidades.

Os “Contra” sublinhavam que o número étnico, no caso, não traria nenhuma informação suplementar sobre as pessoas, mas abriria a caixa Pandora que ninguém seria capaz de controlar depois. Quem sabem entre que mãos cairiam estes inquéritos e para que fins poderão eles servir, então? Na sua grande sabedoria, o governo transigiu: poder-se-ia incluir dados étnicos nos inquéritos, mas apenas durante um tempo limitado. Dois anos. E nenhuma publicidade é feita em redor dos resultados. Então, este país esqueceu.


Mas, tecnicamente, descobriram-se desvios importantes entre as administrações, entre as administrações e o sector privado, e no interior do sector privado. Inventou-se então um índice que permitisse medir a relação de negros, árabes e judeus, num meio socioprofissional dado , número que se baptizou imediatamente como “o índice NAJ”, porque se gosta de siglas, nesse país. Não se tratava, certamente, de um número bruto de que se deduz simplesmente, no momento do inquérito, o número de Negros, Árabes ou Judeus porque então teria sido impossível proceder a comparações portadoras de significado.


Não, tomava-se o maior número de Negros, Árabes e Judaicos citados pelos seus colegas durante os cinco anos precedentes, ponderado por uma combinação linear de Negros, Árabes e Judeus efectivamente presentes, depois, dividido por uma per-equação incluindo média nacional, regional, e tendo em conta a classe profissional considerada. É munindo-se de todas as precauções que se pode explicar a precisão, e mesmo, ousamos , a equidade deste índice. O NAJ era diabolicamente interessante.


Alguns meses depois, a Agência dos Avaliadores preveniu o Instituto de Investigação


Regional - porque a região onde se passa esta fábula orgulhava-se de possuir um Instituto de Investigação - que os seus peritos viriam da capital para aplicar as suas funções e avaliar, em boa e devida forma, a investigação, as equipas, o Instituto na sua totalidade mas não os próprios investigadores, porque tal não era o seu mandato. Agitação no Instituto!

Publicou bastante?

É necessário preparar-se para o melhor como para pior, é necessário reservar o restaurante, mandar limpar as instalações sanitárias, preparar as exposições bem como o nosso balanço dos quatro anos transactos. Publicou bastante? Bastantes contratos com o privado? Bastantes patentes? Como foi o enquadramento dos estagiários? Quanto a responsabilidades internacionais? Ninguém não se interrogou: fez descobertas?


A pergunta pareceu absurda, fora de questão. Mas uma voz elevou-se na sala: “não seria necessário que estudávamos nós o nosso índice NAJ? Evidentemente, não estamos nada de acordo com este índice. Revela uma sociedade em cheia deliquescência, uma sociedade em que só vale o que é contabilizável. Mas, por outro lado, é necessário ter em conta que os nossos avaliadores não se privarão de o calcular e, se não está está conforme, atacar-nos-ão desse ponto de vista. O nosso Instituto passará então do nível A para o nível B e nós perderemos os nossos créditos. Acabam-se os contratos de trabalho de duração determinada para empregar os nossos técnicos, os nossos engenheiros. Acabam-se os postos de investigadores e de professores.

Preparar uma argumentação idónea

Enquanto se formos nós a calculá-lo, nós saberemos antecipadamente o que é que temos que enfrentar e podemos assim preparar uma argumentação idónea. É certo, o nosso índice NAJ é mais elevado -ou mais baixo , isto será assim o resultado do estudo - que a média internacional. Mas é necessário ter em conta que se trata de uma herança histórica. Na nossa disciplina , os negros eram naturalmente os primeiros, enquanto que os judeus e os árabes só de longe seguem a média indicial. É por esta razão, dada a nossa preocupação total com a excelência preocupámo-nos em empregar mais negros, ou menos árabes e menos judeus, adaptar-se-á a argumentação, guiados, voltemos a sublinhá-lo por outras palavras, em melhor convencer os nossos respeitados avaliadores e provar também o nosso entusiasmo, unicamente, pela ambição de sermos os melhores num contexto internacional altamente competitivo e de elevar bem alto a bandeira do nosso país”.

Os investigadores estavam contentes. Como eles se saíram, uma vez mais brilhantemente, da armadilha estendida pelo Governo! Com uma tal inteligência, eles não arriscaram verdadeiramente nada. Foram os investigadores do outro Centro que tiveram problemas para se desenrascarem, mas não estes. Estes simplesmente iam ganhar velocidade e ultrapassar os Avaliadores que - surpresos e contentes, saciados igualmente porque se lhe tinha reservado um muito bom restaurante - mantiveram a classificação ao nível A. Tinham escapado de boa .

As comparações com o sistema são totais. Produz-se um produto NAJ, sem sentido, e é-se avaliado com A, produz-se um produto tóxico qualquer, sem sentido, igualmente, precisa-se de um rating, obtém-se este rating triplo A, pela avaliação externa, a saagências de notação, lança-se na bolsa, e tudo está bem. Viva Numerolândia, viva o rating, vivam os mercados financeiros. Esta é a lógica do neoliberalismo.
publicado por Carlos Loures às 21:00
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Quinta-feira, 30 de Dezembro de 2010

Boaventura de Sousa Santos no Estrolabio - A Reuniversidade


Na minha última crónica descrevi um cenário perturbador do futuro da universidade em resultado dos processos de reforma actualmente em curso. Fiz questão de salientar que se trata apenas de um cenário possível e que a sua ocorrência pode ser evitada se forem tomadas algumas medidas exigentes.


Primeiro, é preciso começar por reconhecer que a nova normalidade criada pelo cenário descrito significaria o fim da universidade tal como a conhecemos. Segundo, é necessário tirar as consequências dos vícios da universidade anterior ao processo de Bolonha: inércia e endogamia por detrás da aversão à inovação; autoritarismo institucional disfarçado de autoridade académica; nepotismo disfarçado de mérito; elitismo disfarçado de excelência; controle político disfarçado de participação democrática; neofeudalismo disfarçado de autonomia departamental ou facultária; temor da avaliação disfarçado de liberdade académica; baixa produção científica disfarçada de resistência heróica a termos de referência estúpidos e a comentários ignorantes de referees.


Terceiro, o processo de Bolonha deve retirar do seu vocabulário o conceito de capital humano. As universidades formam seres humanos e cidadãos plenos e não capital humano sujeito como qualquer outro capital às flutuações do mercado. Não se pode correr o risco de confundir sociedade civil com mercado. As universidades são centros de saber no sentido mais amplo do termo, o que implica pluralismo científico, interculturalidade e igual importância conferida ao conhecimento que tem valor de mercado e ao que o não tem. A análise custo/benefício no domínio da investigação e desenvolvimento é um instrumento grosseiro que pode matar a inovação em vez de a promover. Basta consultar a história das tecnologias para se concluir que as inovações com maior valor instrumental foram desenvolvidas sem qualquer atenção à análise custo/benefício. Será fatal para as universidades se a reforma for orientada para neutralizar os mecanismos de resistência contra as imposições unilaterais do mercado, os mesmos que, no passado, foram cruciais para resistir contra as imposições unilaterais da religião e do Estado. Quarto, a reforma deve incentivar as universidades a desenvolverem uma concepção ampla de responsabilidade social que se não confunda com instrumentalização. No caso português, os contratos celebrados entre as universidades e o Governo no sentido de aumentar a qualificação da população tornam ridícula a ideia do isolamento social das universidades mas, se nem todas as condições forem cumpridas, podem sujeitar as instituições a um stress institucional destrutivo que atingirá de maneira fatal a geração dos docentes na casa dos trinta e quarenta anos. Quinto, para que tal não suceda, é necessário que a todos os docentes universitários sejam dadas iguais oportunidades de realizar investigação, não as fazendo depender do ranking da universidade nem do tópico de investigação, não sendo toleradas nem cargas lectivas asfixiantes,nem a degradação dos salários (mantendo as carreiras abertas e permitindo que os salários possam ser pagos, em parte, pelos projectos de investigação).


Sexto, o processo de Bolonha deve tratar os rankings como o sal na comida, ou seja, com moderação. Para além disso, deve introduzir pluralidade de critérios na definição dos rankings à semelhança do que já vigora noutros domínios: nas classificações dos países, o índice do PIB co-existe hoje com o índice de desenvolvimento humano do PNUD.


Tudo isto só será possível se o processo de Bolonha for cada vez mais uma energia endógena e cada vez menos uma imposição de peritos internacionais que transformam preferências subjectivas em políticas públicas inevitáveis; e se os encarregados da reforma convencerem a UE e os Estados a investir mais nas universidades, não para responder a pressões corporativas, mas porque este é o único investimento capaz de garantir o futuro da ideia da Europa enquanto Europa de ideias.


(Publicado em 23-09-2010 na revista "Visão")
publicado por Carlos Loures às 21:00
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Sexta-feira, 17 de Dezembro de 2010

Reforma de Bolonha: Porquê, como, para quê? - 1*



Júlio Marques Mota




Sobre o caos em que se tornou o ensino universitário abateu-se o chamado processo de Bolonha, obcecado pela uniformização, baralhando os títulos e graus, e eivado por uma pedagogia simplista. O primeiro acto de qualquer governo com um mínimo de sensatez tem de ser a revogação das abstrusas disposições desse pseudo-acôrdo feito à revelia de professores e investigadores, que não tiveram a coragem de o rejeitar e se sujeitaram a passar sob as forcas caudinas.

(Vitorino Magalhães Godinho, Os problemas de Portugal, os problemas da Europa, 2.ª ed., Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 62).

Introdução


Num documento da Comissão Europeia, Educação & Formação para 2010: A urgência das reformas necessárias para o sucesso da Estratégia de Lisboa, pode ler-se: “Na recente reunião que realizaram em Berlim, os Ministros da Educação reafirmaram firmemente o seu empenho na criação de um quadro europeu de referência para as qualificações de nível universitário e solicitaram a aceleração das reformas necessárias na arquitectura dos diplomas, nos sistemas de garantia de qualidade e no reconhecimento mútuo de qualificações” .

Este excerto é elucidativo das intenções da reforma de Bolonha. O que aqui está em causa é o reforço da construção do mercado único europeu e, em particular, a intensificação da mobilidade do trabalho no espaço da União Europeia. Pretende-se assim que o “quadro europeu de referência” seja um espaço de homogeneização e de medida das diferentes habilitações que cada um dos Estados-membros possui e que no mercado devem ser valorizadas, avaliadas, certificadas, como investimento.

Na concepção do mercado único europeu está o primado da livre concorrência e do indivíduo como agente económico, sendo o colectivo apenas visto como um conjunto de indivíduos e não como uma sociedade. De acordo com isto, passou-se a assumir a formação como um investimento individual da responsabilidade cada vez maior do estudante. Inversamente, cria-se assim condições para se ir indo desresponsabilizando o Estado pelas Universidades. Neste quadro, para além disto, a educação passa a ser vista como uma acumulação de saberes e/ou competências, mais destas do que daqueles, a serem negociadas num espaço mais vasto que anteriormente.

Bolonha representa mais uma componente deste grande mercado do ensino e formação, vem trazer o primado das competências negociáveis no mercado, dos marketable skills, sobre os saberes. Ou seja, o que se pretende desde logo é que seja o mercado a ditar às instituições universitárias os conteúdos e as práticas de aprendizagem, com a consequente desvalorização dos saberes. Isto é assim na medida em que se quer que seja o mercado o normalizador e quem valida, em última instância, essas formações escolares e os trajectos individuais de cada estudante. Assim se compreende a multiplicidade de opções escolares em muitos cursos, em que as licenciaturas são equivalentes a autênticos menu à la carte, em nome da liberdade e da responsabilidade individual do estudante investidor arbitragista, do estudante que para escolher tem que ser já conhecedor do que precisa de saber, como se fosse possível sabê-lo a priori apenas a partir dos dados presentes do mercado de trabalho, como se este não fosse instável e, por isto, muitas das vezes imprevisível, como se a decisão individual nunca entrasse em colisão com a de muitos outros que individualmente tomaram a mesma opção.

Neste contexto, a função da Universidade é pois a de criar “especialistas” dotados de um stock de competências que se vendam bem no mercado e ao menor custo, ou seja, que permitam a cada futuro trabalhador entrar no mercado de trabalho. O resto, o que faltar à formação para que cada um se adapte às condições exigidas pelo mercado em cada momento caberá de novo à decisão individual, trabalhador ou empresas, num contexto de um vasto mercado de ensino e formação que se pretende que seja cada vez mais resultante do sector privado.

A lembrar tudo isto está um conjunto de declarações da ministra do Ensino Superior em França, Valerie Pècresse, feitas em Outubro de 2010, quando lhe perguntaram para que serve a publicação do Palmarés das Universidades:



Nous devions cette information aux familles et aux étudiants. Car, pour s'orienter à l'université et pour réussir ensuite sur le marché du travail, il faut être correctement informé sur les performances des différentes filières. Longtemps, les universités ont considéré que leur responsabilité s'arrêtait à la délivrance du diplôme. Depuis la loi de 2007 sur l'autonomie des universités, l'insertion professionnelle et l'orientation sont devenues leurs nouvelles missions, comme le souhaitaient les étudiants, aux côtés de la formation et de la recherche.
C'est aussi un instrument de pilotage pour tous. Pour les universités elles-mêmes, afin qu'elles puissent réfléchir aux améliorations nécessaires des filières les moins professionnalisantes, et pour l'Etat, qui en tiendra compte dans ses dotations financières aux campus. D'ici à 2012, nous allons pouvoir bâtir de vrais indicateurs de performance nationaux qui seront intégrés dans le calcul de l'allocation des moyens, comme le prévoit la loi de 2007 .


Este é pois o quadro de Bolonha, este é o quadro de regulação do espaço europeu onde homens e empresas podem ser vistos de igual para igual, objecto de investimentos produtivos, cuja rentabilidade depende exclusivamente das condições dos mercados. Mas a ministra francesa chama a atenção para uma outra implicação de tudo isto: no caso de não haver empregos para os licenciados, tal facto não representa um disfuncionamento do sistema económico e político nem um disfuncionamento do mercado, porque este é sempre eficiente, representa antes a incapacidade ou a incompetência da Universidade em responder às necessidades daquele e, por isso, deve ser sujeita a uma revisão das suas dotações orçamentais.

É neste contexto, cremos, que se pode perceber a lógica da Comissão Europeia que no documento já citado refere que as grandes questões que ao ensino superior são postas são o financiamento, a diversidade das instituições nas suas funções e nas suas prioridades e a criação de pólos de excelência, o que parece indicar o caminho para a existência de Universidades a duas ou mais velocidades.

Analisar a reforma do ensino universitário, dita reforma de Bolonha, analisar os seus efeitos presentes e perspectivar as suas consequências no futuro cremos ser hoje imperioso, necessário e urgente, se quisermos escapar à lógica redutora do ensino universitário que está a ser imposta em nome da ideia de eficiência dos mercados inerente à concepção do mercado único europeu.

Curiosa esta concepção do espaço económico europeu e o quadro em que se inserem as políticas aí praticadas que nos levaram à situação de crise em que nos encontramos, curiosa arquitectura institucional da União Europeia que não é capaz de dar nenhum sinal, não é capaz de utilizar nenhum instrumento de política económica — porque provavelmente não é capaz de o conceber — como resposta contra a quase morte lenta em que estão política e economicamente a colocar a ideia original de Europa comunitária, tudo isto em nome, sublinhe-se, da soberania dos mercados.

Ser-se contra a situação presente é ser-se igualmente contra Bolonha e é neste plano que se vai inserir o nosso discurso.


Sobre a crise, sobre Bolonha


Neste texto, optámos por apresentar um exemplo tirado da economia americana para caracterizar e ilustrar a profundidade de conhecimentos que se deve exigir a um estudante de Economia no mundo de hoje, o que é completamente o contrário do que é possível com a reforma de Bolonha. O exemplo escolhido foi a análise do mercado dos cereais e em particular o do trigo na principal Bolsa de mercadorias do mundo, o Chicago Mercantile Exchange. Não foi por acaso que escolhemos este exemplo e escolhemo-lo por uma série de razões, todas elas graves no contexto de crise presente, razões que passamos a expor:


1. O trigo é um produto base na alimentação de muitos milhões de pessoas, cujos preços têm sido sujeitos a fortes oscilações e objecto de subida continuada durante um certo período de tempo, o que levou muitos milhões de pessoas à situação de fome.


2. Trata-se de um mercado determinante no estabelecer do preço de um bem fundamental, o pão, preço esse que serve de referência para os agricultores de todo o mundo.


3. Sobre o mercado do trigo, tomámos conhecimento de um documento de Junho de 2009 do Senado americano intitulado Excessive Speculation in the Wheat Market que é um claro exemplo do que deve ser um trabalho feito a nível governamental. Não conhecemos nada na Europa de equivalente. A análise em questão debruça-se em profundidade sobre o que são os produtos derivados nestes mercados, produtos estes que como sabemos foram elementos-chave na presente crise. Neste texto sublinham-se bem as diferenças entre as políticas da Administração Roosevelt e as políticas neoliberais das últimas décadas que desregularam completamente estes mercados.


4. A partir do documento referido, podemos discutir, no limite do possível, a problemática dos efeitos da especulação sobre os mercados de matérias-primas e de produtos alimentares bem como a necessidade de que esta seja contida em certos limites, os limites de bona fide, e que pressupõem uma vigilância constante da especulação nestes mercados se queremos que eles cumpram os objectivos para que desde longa data foram criados.


*Observatório Pedagógico do ISEG – 3.º Seminário anual
Bolonha: Diferentes Olhares, 3 de Novembro de 2010


(Continua)
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publicado por Carlos Loures às 21:00
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Quinta-feira, 16 de Dezembro de 2010

Carta aberta ao Presidente da República

Coimbra, 15 de Dezembro de 2010


Ex.mo Senhor Presidente da República


Com conhecimento: ao Primeiro-Ministro, ao Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e aos líderes parlamentares.


Senhor Presidente, tomo a liberdade de lhe escrever esta carta porque, enquanto professor e cidadão, estou altamente preocupado com a erosão do tecido social em Portugal, e na Europa também, fruto não só da terrível situação de crise dita financeira pela qual estamos a passar e que é, sobretudo, o resultado do modelo económico, social e político que lhe está subjacente e preocupado igualmente estou, e muito, com a situação de crise que atravessa a Universidade em Portugal, fruto sobretudo de políticas anteriormente seguidas, fruto sobretudo da reforma de Bolonha, fruto portanto do mesmo modelo de referência que nos levou à situação actual. Uma Universidade em profunda crise e tão grande, na minha opinião, que não posso deixar de colocar aqui e de deixar à sua apreciação as razões do meu descontentamento.


Senhor Presidente, a crise da dívida soberana portuguesa amainou, o espectáculo oferecido pelos políticos dos dois maiores partidos, esse transitoriamente ao mesmo nível ficou, nos grandes bancos o nosso dinheiro, esse se embolsou, e o povo, esse continua a não perceber o que ninguém nunca lhe explicou: porque está a sofrer cada vez mais, a pagar cada vez mais e a dever cada mais e em nome de quê ou porquê? Que terá ele feito de mal para sofrer esta violência, agora? Num mundo e numa sociedade onde impere a honestidade, a justiça, a transparência, numa sociedade de profunda raiz democrática portanto, cada um deve ser responsável pelos seus erros e deve saber assumi-los; mas então que alguém lhes diga, a eles e a nós também, senhor Presidente, quais os erros que cada trabalhador desempregado neste sistema cometeu para que agora se deva sentir penalizado, quais os erros que levam a que cada criança com fome nele e dele se possa sentir culpada, quais os erros que cada velho que passou a vida a trabalhar duramente deles se possa sentir responsável para que veja os seus direitos de há muito tempo adquiridos agora fortemente anulados? Que haja alguém que lhes explique, pelo menos a eles, aos desempregados, às crianças com fome e com pobreza garantida como futuro, aos velhos que do passado foram bem enganados, para onde foram os vários milhares de milhões de euros que do bolso de cada um deles e de todos eles foram retirados para no BPN serem aplicados sem que nada tenha sido tocado na Sociedade Lusa de Negócios nem em ninguém que deles muito antes os delapidou e então, aqui, foi a favor de quem? Ninguém, nunca ninguém lhes disse nada, senhor Presidente, e todos nós lamentamos que assim tenha sido.



Um economista moderado, Thomas Piketty, a lembrar um outro intelectual importante dos tempos de Marx, Proudhon, num recente artigo sobre o salvamento da Irlanda, sobre o resgate dos bancos irlandeses, chama a tudo isto um nome. Passo a citar: “Digamo-lo claramente. Deixar que países que se enriqueceram graças ao comércio intra-europeu absorvam em seguida a base fiscal dos seus vizinhos, isto não tem rigorosamente nada a ver com os princípios da economia de mercado ou com o liberalismo. Isto só tem um nome e chama-se: roubo. E ir emprestar dinheiro às pessoas que nos roubaram, sem nada exigir em troca para que isso não se reproduza, a isto chama-se estupidez”.


Senhor Presidente, no país em que o senhor é Presidente, como em toda a Europa aliás, porque a massa da classe política actualmente no poder é toda ela a mesma ao nível das atitudes e dos princípios, é assim que genericamente as pessoas se sentem, isto é, sentem-se materialmente roubadas e intelectualmente de estúpidas consideradas. Um dos muitos exemplos possíveis, vemo-lo agora na Irlanda com o banco Anglo Irish Bank em que, falido, nacionalizado, pelo contribuinte a ser financiado, vem agora declarar que vai dar de bónus este ano 400 milhões de euros. E que responde o Governo de lá? Que vai sobretaxar os bónus do ano que vem! Um outro exemplo vemo-lo aqui e agora, em Portugal, como noutros países e por outros governos socialistas chamados, a permitir-se a antecipação de dividendos para evitar o pagamento de impostos que seriam exigidos para o ano, ou ainda o regime de favor que se criou aos grandes grupos financeiros com a isenção fiscal sobre as mais-valias ganhas com a venda da Vivo pela PT, tudo isto acompanhado por um discurso a nunca esquecer proferido recentemente na nossa Assembleia da República em nome dos grandes accionistas, pelo líder do maior grupo parlamentar, a outros tempos nos fazer lembrados. A lógica é a mesma, o comportamento é o mesmo, e já não é uma questão da direita ou da esquerda que está no poder. Recuando um pouco, na Islândia, enquanto se deixava, como agora na Irlanda, que as grandes fortunas escapassem, defendendo-se a liberdade absoluta dos movimentos de capitais, o governo pedia à Igreja que mantivesse as portas abertas mais tempo, para que as pessoas pudessem pedir auxílio a Deus, chorar, rezar! A lógica é a mesma, o comportamento é o mesmo, e já não é uma questão da direita ou da esquerda que está no poder, é uma questão de quem actualmente está no poder; é, sendo assim, uma crise de valores, uma crise profunda do sistema democrático que está em movimento. Movimento para onde? Lamentável imagem que se dá da democracia. Sobre isso vale a pena lembrar Helmut Schmidt na sua recente entrevista sobre a crise europeia: “Posso dizer que, de uma maneira geral, à Europa faltam dirigentes. Faltam personalidades, à frente dos Estados nacionais ou nas Instituições europeias, que tenham um conhecimento suficiente das questões nacionais e internacionais e que façam prova de uma capacidade de julgamento adequada”.


Senhor Presidente, a crise da dívida soberana portuguesa amainou, o espectáculo oferecido pelos políticos dos dois maiores partidos, esse transitoriamente ao mesmo nível ficou, mas o nosso país, o país de todos nós e que todos nós fazemos, os que trabalham, esse, não parou, nem a roda dentada da História, assim o considerou. Como nos lembra Alice no País das Maravilhas, vai-se sempre para qualquer lado mesmo que para nenhum lado se queira ir. Mas creio, profundamente creio, que eu e que todos nós sabemos que por este caminho que nos estão a impor, o lado nenhum para onde nos estão a empurrar é um verdadeiro desastre nacional onde vai imperar o desemprego e a miséria, senão também a fome e a desestruturação da sociedade portuguesa também.


Senhor Presidente, antes de estalar a crise, dita financeira, esteve toda a Europa sujeita a um tsunami silencioso mas, por definição, poderoso, que é a lógica implacável do neoliberalismo imposta pela classe política no poder e em nome da modernidade. Foram as instituições que durante trinta gloriosos anos animaram o crescimento económico e que eram a base do Estado-Providência que têm sido uma a uma minadas, descaracterizadas, quer ao nível do trabalho, da saúde, da educação, da segurança social, quer da visão global de sociedade e do seu futuro. Foi esse trabalho profundo e subterrâneo que agora nos torna vítima da voragem que os políticos no poder e os grandes financeiros nos querem impor e de que até agora temos sido incapazes, todos nós, de lhes resistirmos e de nos sabermos deles defender.


Senhor Presidente, neste tsunami silencioso que vem de longe, de muito longe como diz o poeta/cantor, nesse tsunami silencioso inscreve-se a reforma de Bolonha do ensino superior, em que com ela, e na minha opinião, a Universidade está lenta mas implacavelmente a ser destruída. Com esta reforma, passámos a considerar as Universidades como o espaço onde não se pode ensinar pouco mais que generalidades e não creio honestamente, por maior que seja o esforço, que neste momento se possa passar para além disso. Onde deixa de haver capacidade de pensar, não pode haver, logicamente, capacidade de se ensinar. Com esta reforma, aí temos a Universidade a transformar-se num deserto de ideias, onde o acto de pensar, reflectir, criticar, argumentar, reconstruir, parece arredado na formação universitária dos jovens; se assim é, ensinar, no verdadeiro sentido da palavra, é agora apenas uma possibilidade virtual. O que desta reforma nos fica é a certeza de que se quer que o ensino represente menos despesas públicas no orçamento do Estado, sacrificando-se com isso a nossa juventude, os nossos filhos e os nossos netos, no altar da redução do défice público. É assim uma luta contra o tempo, é a luta pela compressão do estudo ao tempo mínimo e ao custo mínimo, como se valha mais ter um jovem deficientemente formado e na rua à procura de emprego do que um jovem de profundos conhecimentos capacitado na mesma situação, pois aquele representa um menor desperdício financeiro. Com a reforma de Bolonha, permitiu-se que se generalizasse uma forma de “ensino” mais leve para quem ensina e tem muitas outras ocupações mais rentáveis, mais leve para quem não quer entender que um professor tem a difícil função de apoiar os estudantes na descoberta do mundo que lhes é dado, do mundo que lhes cabe a eles refazer, tem a difícil função de os apoiar a ganharem novas formas de estar e de enfrentar o mundo hostil que lhes estamos a criar, tem a difícil função de estar intelectualmente disponível para os ajudar a que cresçam num profundo espaço de cidadania, a Universidade que desejamos, como cidadãos e como técnicos. Em suma, apoiá-los no seu desejo de transformar o mundo de modo a que a vida lhes confira sentido e, com este, sejam eles a conferir sentido ao mundo que conscientemente desorganizámos! Em vez disto, o que está a ser feito, no reino da facilidade com o processo de Bolonha já instalado, é tornar a vida muito mais leve para aqueles que não ensinamos e não ensinamos agora nem a ler ou a escrever bem nem, muito menos, a estudar bem. Isto é enganá-los, é dar-lhes uma forma de estar na vida pessoal e profissional que esta não comporta. Fornecedora de diplomas de não empregabilidade é o que a Universidade se apresta agora a ser, com o nível de licenciatura, o primeiro ciclo, que fornece.


Passemos um grau acima, passemos aos mestrados. Segundo sinais dos mercados quanto a empregos, e estes sinais valem o que valem, a preferência está a ir para os detentores destes diplomas, a começar pela Assembleia da República. A ser assim, isto significa, com o silêncio e os medos que se estão a abater sobre a sociedade portuguesa, o reconhecimento indirecto mas claro de que as licenciaturas pouco ou nada valem. Simplesmente, sejamos todos honestos. Se não produzimos licenciaturas de qualidade também não poderemos, de modo nenhum, ser capazes de fornecer mestrados de qualidade, porque só se ensina o que os outros são capazes de aprender, e estes, os nossos estudantes, já deixaram de saber o que é profundidade de ensino. Para o fazermos, seria então necessário muito trabalho para contrariar e vencer a redução de capacidades de que a Universidade foi entretanto o produtor exclusivo! A minha ideia e a daqueles que a vão dizendo em surdina é a de que simplesmente muitos dos mestrados estarão a ter um nível inferior ao da própria licenciatura. Não passa de uma ideia, de uma opinião, mas é opinião de quem tem estado desde há muito tempo no terreno, mesmo que esta opinião seja no papel contestada por alguns daqueles que fazem a ciência nos nossos dias e ignorada pela maioria de todos os outros.


A revolução francesa deu-nos uma trilogia: liberdade, fraternidade e igualdade, só conjugáveis duas a duas, o neoliberalismo deu-nos a dualidade, to be or not to be, to have or not to have, e Bolonha, uma reforma organizada no interior do modelo neoliberal, na sua expressão mais forte e mais dura, aplicada à Universidade, leva-nos a uma outra trilogia: to be or not to be, to know or not to know e então to have or not to have. Mas aqui já não se conjugam duas a duas! Vou porém mais longe, quanto ao to know or no to know. Se a dualidade existe, se se verifica esta oposição binária, então garantidamente esta deve-se mais à formação de origem dos nossos alunos do que à qualidade de ensino que as estruturas de Bolonha levaram a ser ensinado, porque com estas estruturas nem elites capazes são possíveis de ser formadas no reino da facilidade agora instalado. Em lado nenhum do mundo as elites podem ser criadas assim e não será agora aqui, com certeza, que se iria operar o milagre. Não o creio. Mas então a pergunta: para que serve esta Universidade? Assim, como a vejo, só lhe vejo um sentido e um muito mau sentido: o de fazer a diferenciação no elevador social pelos diplomas, e a diferenciação nestes pelo dinheiro que se possa ter à partida, ou seja, à nascença. Da licenciatura ao mestrado do mestrado ao doutoramento serão anos a mais e muito mais dinheiro a gastar para exibir esse ticket de modo a poder subir uns andares a mais no referido elevador social que aliás bem mostras tem dado, desde há muito tempo, de estar avariado. Se isto é assim, o que reflecte esta situação? Ou, por outras palavras, o silêncio sobre a sua existência o que representa? A comodidade do nosso silêncio talvez, mas esta deve ser transformada na incomodidade das nossas recusas.


Hoje será a última aula teórica que dou como professor da disciplina de Economia Internacional, na licenciatura em Economia. Vou aposentar-me e não voltarei mais a leccionar estas matérias. Como o disse num outro contexto, saio por opção antes do final do meu contrato, já com anos de trabalho gratuitamente oferecidos ao meu país, saio vencido pela incapacidade de aceitar o que se está a fazer da Universidade e de nem sequer compreender os objectivos de missão que agora lhe estão subjacentes. Sempre me recusei a conviver com o regime de simplificação e de mentalidade que lentamente Bolonha instalou nas nossas vidas e nas nossas próprias subjectividades e não queria deixar esta disciplina sem o sinal de protesto que se me exige como professor, como cidadão, como pai e como avô. Faço-o solicitando que se procure perceber bem o que se passa no nosso ensino superior, faço-o apelando para se que encontrem respostas para os graves problemas da juventude de hoje, e que não seja esta a geração perdida de depois de amanhã, como o assinala a OCDE e o FMI, faço-o para que honestamente se questione que tipo de Universidade é que o país precisa.


Escrevo em má altura, numa altura de fanfarra pelos dados da OCDE, na base de inquéritos feitos em escolas, mas faço-o nesta mesma altura em que é evidente que a maioria dos filhos intelectuais de Sócrates e de Maria de Lurdes Rodrigues que entraram nas Universidades com altas notas a matemática, há três anos, mostram uma pobreza intelectual aflitiva. Dada a identificação pretendida, quer pelo Governo quer pela OCDE, dos resultados de PISA com a política de educação do actual primeiro-ministro, seria de esperar que os alunos que há três anos chegaram às Universidades reflectissem a mesma política de ensino. Mas a ser assim, das três uma: ou a selecção das escolas deformou os resultados, ou os alunos bons foram não sei sequer para onde, pois para as engenharias também não foram, a fazer fé no jornal O Público, que nos diz que uma parcela significativa dos estudantes do IST não faz operações algébricas simples, e nas outras Faculdades ninguém os vê, ou a maioria dos “beneficiados” desta política nunca conseguiram chegar à Universidade a não ser que venham a entrar depois de atingirem 23 anos, e isto mais uma vez de acordo com o espírito de Bolonha e de acordo com legislação aprovada pelo ministro da tutela, Mariano Gago. Independentemente dos resultados e das leituras que sobre estes têm sido feitas, o que se vai vendo, ouvindo e sentindo, é que os alunos de hoje, 2010, não são melhores que os dos anos transactos, dispõem de menos conhecimentos e de uma menor capacidade de aprendizagem, mas vontade de aprender, essa, ainda a têm. Dê-se-lhes tempo e meios e muitos deles poderão ainda vir a ser os técnicos a que socialmente aspiramos. Não os defraudemos, portanto.


Senhor Presidente, nesse sentido lhe deixo aqui, o texto de uma exposição feita em Lisboa sobre a reforma Bolonha, lhe deixo aqui a expressão das minhas angústias quanto ao futuro da Universidade em Portugal. Ironia da história, senhor Presidente, fui seu aluno e nessa época seu crítico fui, na qualidade de estudante, como o foram também Ferro Rodrigues, Augusto Mateus, Carlos Pimenta, Félix Ribeiro, Francisco Soares e tantos outros, com quem se partilhou perspectivas outras de Universidade que a de então mas também necessariamente muito diferentes daquelas com que nos deparamos actualmente. E hoje, de igual modo seu crítico sou, senhor Presidente, por não partilhar da mesma visão do mundo, mas é ao nosso Presidente que agora me dirijo, a si portanto, que venho com esta carta apelar para que se questione seriamente o que é a Universidade de hoje, o que queremos como Universidade de amanhã e, sobretudo, que nos preocupemos seriamente com a nossa juventude. De novo, ironia das ironias, tal como em criança fiz o protesto admissível ao ministro da Educação de então, protesto não divulgável porque estávamos em fascismo, hoje, em democracia, dirijo-me a si, senhor Presidente, fazendo o protesto que me é eticamente exigível , mas agora necessariamente aberto a todas as formas de divulgação que são próprias de quem resiste em nome da cidadania e do desejo de uma sociedade mais justa, mais solidária, mais ambiciosa nos seus projectos, faço-o, porque confio também agora no sistema, confio na Democracia que representa, confio na dignidade do cargo que ocupa e faço-o num momento em que sinto que as Instituições Governamentais estão a ficar de costas voltadas para as grandes missões de interesse público. E nestas está necessariamente, a imposição de não deixarmos que se deixe destruir a juventude de hoje, está a obrigação de tudo fazermos para que esta não se transforme irrecuperavelmente numa lost generation.


Senhor Presidente, parafraseando Thomas Piketty no artigo citado, considero que é urgente que os dirigentes portugueses, assim como todos os dirigentes europeus e todas as Instituições da União Europeia, tenham finalmente a coragem de ter uma visão nacional e europeia solidária e ambiciosa para se sair da crise actual e esta não é só financeira como nos querem fazer crer, esta atinge tudo o que é socialmente significativo na sociedade portuguesa. Comecemos nós por compreender a necessidade da existência dessa coragem.


Consciente de que é necessário perceber a dimensão do desastre que se está a criar e também a dimensão do mal-estar que a muitos docentes está a condicionar, espero, senhor Presidente, que este meu apelo seja entendido e com esta esperança lhe peço que aceite os meus respeitosos cumprimentos.


Júlio Marques Mota
Professor Auxiliar
Faculdade de Economia
Universidade de Coimbra





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Segunda-feira, 26 de Julho de 2010

Reflexões sobre Bolonha - 4

Júlio Marques Mota*

ANEXO II  (Continuação)

Excerto de uma carta enviada a um antigo ministro da tutela do Ensino Superior

Coimbra, 18 de Abril de 2008

Caro Professor:

Tomo a liberdade de lhe escrever esta carta assente em dois pontos: o primeiro, a expressar a desilusão de quem está a assistira lenta agonia das Universidades, o segundo, para lhe apresentarmos um recente trabalho de grupo sobre a crise actual.

Sobre as Universidades e numa referência rápida quero agradecer-lhe a leitura cuidada que fez dos meus dois textos sobre o ensino superior. A escrevê-los hoje seria mais duro, pois, parafraseando um dos homens que mais me marcou em questões de educação e um texto que lhe mando em anexo, Antoine Prost, tenho o sentimento e a certeza de que estamos perante um Munique pedagógico e científico: capitulamos face à destruição rápida das Universidades, hoje a serem transformadas em liceus de má qualidade. Estamos silenciosamente a destruir ou a impedir que se crie a inteligência futura do nosso país. O termo Bolonha, mas não a declaração de Bolonha que é claramente muito mais séria, é o pretexto, é a capa, apenas isso, sabemo-lo hoje. O objectivo é a redução do défice, é a aplicação estrita de um modelo neo-liberal puro e duro, conduzido desta forma por socialistas, o que é estranho, é a aposta exclusiva nas formações curtas e num momento da curva da História que nos diz que tudo deve ser repensado, curva esta que, no dizer de Fukuyama, se iniciou com Regan e se conclui com a actual crise financeira. A actual política do ensino superior é ao mesmo tempo a aplicação cruel duma lógica de desrespeito total pelos nossos filhos e netos numa sociedade cada vez mais insensível e mais implacável, mais desregulamentada e a partir do próprio Estado, o que ainda é mais estranho. É esta mesma lógica que leva a que jovens com apenas 20 anos, diplomados e desinformados, credenciados por um diploma superior garante da sua não empregabilidade e da nossa incapacidade, sejam atirados para a fogueira do mercado, onde tudo é valido pela ausência de valores que neste predomina, como se tem estado a ver. Mas, agora, atiramo-los em nome da responsabilização individual. Os romanos davam a isto um outro nome, professor!

Certo da sua atenção, pedimos desculpa pela liberdade assumida e pelo tempo tomado e apresentamos sinceramente os nossos cumprimentos.

Atenciosamente

Júlio Mota

ANEXO III

Carta enviada à direcção do Jornal Público

Caros Senhores Jornalistas do Jornal Público

Foi com satisfação que li a vossa recente reportagem sobre o ensino em que assisti a uma muita boa denúncia do que neste campo está a ser feito em Portugal. Digo satisfação, não pela realidade “ilustrada” pois ninguém pode ficar satisfeito com o que aí se diz, com o que aí se mostra, digo satisfação pela coragem havida, quer dos jornalistas quer dos professores que se pronunciaram. Estar fora do mundo de Pangloss não é hoje permitido. O silêncio que tem havido à volta de tudo isto é disso uma clara ilustração. Já era tempo de quebrar esse silêncio. Os senhores fizeram-no. Felicitações

No entanto, uma pequena falha se instala, uma pequena dúvida percorre o raciocínio dos leitores da mesma reportagem. Fica-se com a sensação de que o problema está fora da Universidade, que o problema é apenas o ensino secundário. Não é verdade.

Hoje, do meu ponto de vista, as faculdades tornaram-se, sob a protecção de Bolonha e com o silêncio de muita gente, verdadeiras fábricas de produção de diplomas superiores da ignorância. Uma outra reportagem sobre este nível de ensino seria, do meu ponto de vista, a sequência daquela reportagem, seria mostrar, face ao que se disse na reportagem anterior, o que se faz nas Universidades a muitos daqueles alunos. Eu digo-vos: possivelmente passam-nos, e com o grau de mestre.

Sugiro-vos então uma “viagem” ao mundo da ignorância das Universidades e compreender-se-á o que é, afinal, ensinar “melhor” a alunos piores, em menos anos e em menos aulas por semana. Um milagre que seria bom que desvendassem. Prestariam assim um bom serviço às gerações futuras e, porque não, ao futuro deste nosso país.

E é tudo. As minhas desculpas pela liberdade da sugestão.



Júlio Marques Mota


FIM DOS ANEXOS


Talvez esteja enganado, bem gostaria de o estar, mas aqui lhes deixo as minhas impressões sobre Bolonha.


* Docente na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra


publicado por Carlos Loures às 21:00
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