A canção "Lisboa menina e Moça", com letra de José Carlos Ary dos Santos e música de Paulo de Carvalho, é mais conhecida através da interpretação de Carlos do Carmo. Mas a versão do compositor, de Paulo de Carvalho é também excelente. Aqui está ela:
"Maria Lisboa", de David Mourão-Ferreira e de Alain Oulman, também se tornou famosa na voz da inimitável Amália Rodrigues. Mariza, não imita, recria - esta versão é diferente e igualmente de grande qualidade:
Lemos algures que Lisboa é a cidade do mundo à qual mais poemas foram dedicados. Não sabemos se é verdade, nem isso nos interessa. Imaginem que contaram nessa lista de centenas ou milhares de composições com letras de fados - algumas magníficas, como as do David Mourão-Ferreira, por exemplo, outras de uma banalidade atroz?
Imaginem que contaram com as letras das marchas da cidade? Bem, achamos que uma cidade como Lisboa merece ser cantada pelos poetas. Porém, não podemos impedir os poetastros e os versejadores de a cantarem também .Até porque Lisboa é uma cidade que faz de cada um dos lisboetas um poeta. E lisboetas são todos os que vivem em Lisboa e nela não vivendo, todos os que a amam.
Estamos desde o primeiro minuto deste dia a publicar poesia, música, pintura, cijo tema é Lisboa. Agora vêm também aí alguns textos. Mas para já, aqui temos mais um poema de Fernando Pessoa:
Lisbon Revisited (1926)
Nada me prende a nada. Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo. Anseio com uma angústia de fome de carne O que não sei que seja - Definidamente pelo indefinido... Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias. Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua. Não há na travessa achada o número da porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido. Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota. Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados. Até a vida só desejada me farta - até essa vida...
Compreendo a intervalos desconexos; Escrevo por lapsos de cansaço; E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia. Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme; Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago; ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma... E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei, Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa (E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas), Nas estradas e atalhos das florestas longínquas Onde supus o meu ser, Fogem desmantelados, últimos restos Da ilusão final, Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido, As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.
Outra vez te revejo, Cidade da minha infância pavorosamente perdida... Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui... Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, E aqui tornei a voltar, e a voltar. E aqui de novo tornei a voltar? Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
Outra vez te revejo, Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -, Transeunte inútil de ti e de mim, Estrangeiro aqui como em toda a parte, Casual na vida como na alma, Fantasma a errar em salas de recordações, Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo, Sombra que passa através das sombras, e brilha Um momento a uma luz fúnebre desconhecida, E entra na noite como um rastro de barco se perde Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo, Mas, ai, a mim não me revejo! Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico, E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim - Um bocado de ti e de mim!...
( Álvaro de Campos, in "Poemas")
Informamos que estes dias temáticos são para continuar - o próximo será sobre a cidade portuguesa, romãntica por excelência - o Porto. E não ficaremos por aí...
A figura de um desses lisboetas, o Fernando pintado pelo grande Almada Negreiros abre esta primeira crónica matinal. Encerramo-la com outro lisboeta, João Villaret, dizendo o seu "Recado a Lisboa":
Nestes dias que antecedem a “Maratona Poética” do Estrolabio, tenho dedicado a minha crónica diária à evocação de poetas desaparecidos. Não tenho procurado falar apenas sobre aqueles de que, esquecidos, é preciso preservar a memória – não tem sido esse o meu critério, tenho falado de poetas, de pessoas, que conheci e que já não são vivos. David Mourão-Ferreira é um escritor muito conhecido, muito falado, com muitos estudos e numerosas teses académicas sobre a sua obra. Não é um texto meu que irá contribuir para que não seja esquecido, risco, aliás, que não corre.
Não faria sentido vir glorificar os seus livros, a sua poesia. A qualidade dos seus poemas é um dado adquirido. Mas há um pormenor, que me leva a escrever sobre ele, a voltar uns anos atrás e ir ao encontro da recordação que dele conservo – a amizade. Sempre me tratou com amizade e eu era muito amigo dele. Não tecerei elogios à sua obra – deles não precisa - outros o fizeram e o farão melhor e com maior autoridade. Falarei um pouco da sua grande amabilidade e da generosidade que nele era uma segunda natureza. Embora tenha sido director do serviço da Fundação Gulbenkian em que trabalhei durante dez anos, não nos cruzámos ali, pois saí em 1971, quando o director era ainda Branquinho da Fonseca. Conhecera-o na Faculdade de Letras, estive com ele em reuniões da Associação Portuguesa de Escritores, mas era uma relação cordial, mas mais ou menos formal.
Quando lancei o meu primeiro romance, «Talvez um Grito», dado que ele fizera parte do júri que o distinguira, fui à Gulbenkian pedir-lhe que fizesse a apresentação que seria no Solar do Vinho do Porto – imediatamente se disponibolizou, sem qualquer espécie de hesitação. Fez uma apresentação magnífica, que tenho gravada em vídeo (mas num standard que já se não usa, o Beta, e não sei se a conseguirei recuperar), lendo da forma expressiva que o caracterizava, e valorizando-as, como só ele sabia, algumas páginas do livro.
Fomo-nos encontrando, almoçámos algumas vezes na Gôndola, um restaurante que ficava perto do meu escritório, na Av. António Augusto de Aguiar e a uns passos do edifício da Gulbenkian onde estava instalada a direcção do Serviço de Bibliotecas. Num desses almoços, propus-lhe que dirigisse uma história da literatura portuguesa (não pôde aceitar, pois estava com mil e um compromissos, mas forneceu-me uma série de pistas de grande utilidade). Na Primavera de 1996 encontrámo-nos casualmente no restaurante do Hotel Continental – eu não o conheci, pois estava muito magro, quase calvo, acabava de chegar de uma clínica de Londres, desfigurado pela doença e pela quimioterapia. Estávamos costas com costas e ele chamou-me. Disse-me sorrindo que a sua vida estava por dias ou por semanas. Protestei e ele continuou a sorrir. Fiquei devastado. Em Junho morreu.
Fui à Basílica da Estrela, onde o corpo estava em câmara ardente. Não sei por que motivo os escritores ali vão sempre parar (o Palácio Galveias não seria mais adequado?). Não era o caso do David, mas, por exemplo, o Orlando da Costa e o Luiz Pacheco, comunistas e ateus, numa basílica… A nora, a ex-apresentadora da RTP, Margarida Mercê de Mello, leu alguns poemas dele. Um era muito comovente, dizia: - «Há-de vir um Natal e será o primeiro/ em que se veja à mesa o meu lugar vazio…» No cemitério dos Prazeres, Amália chorava copiosamente.
David Mourão-Ferreira, um grande poeta, um grande professor e intelectual. E, acima de tudo isso, um homem de uma excepcional e humana capacidade de ser generoso.