Dei comigo a ler uma notícia sobre declarações de D. Carlos Azevedo, Presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social. Não costumo ler, habitualmente, nos jornais, notícias sobre a Igreja, mas desta vez escorregaram-me os olhos. Como eu respeito muito as pessoas, embora não respeite muitas vezes o que dizem e o que representam, permito-me tecer algumas considerações às considerações de D. Carlos Azevedo.
Em primeiro lugar as suas declarações são declarações banais, o que não impede de que sejam perversas. D. Carlos Azevedo diz o que qualquer vulgar político está farto de dizer. “Que Portugal tem de encarar-se como um país pobre e não pode viver acima daquilo que é, mas apesar de ser pobre pode ser um país onde se viva de modo sereno e feliz”. Como, gostaria eu de saber! E diz mais. Diz que “temos de ter muita confiança em que aquilo que nos vai ser dito é a verdade do que está a acontecer, e tem de ser essa política de verdade a constituir a nossa confiança”. A Igreja sempre o disse, para quem a quis ouvir, embora todos saibamos que não há mais redonda mentira.
Estas palavras de D. Carlos Azevedo fariam rir se não causassem amargura. No mínimo, produzem em mim alguns arrepios, ao exumarem este espírito salazarento da pobreza feliz.
D. Carlos é suficientemente inteligente para saber que não há países ricos e países pobres mas sim meia humanidade que é rica e meia humanidade que é pobre. E esta meia humanidade é pobre porque a meia humanidade rica vive à custa dela. Os EU são um país rico e, no entanto, quarenta milhões de pessoas vivem pior do que se vive em Portugal, considerado um país pobre. Por outro lado, há países muito mais pobres do que os EU, onde as pessoas, de uma maneira geral, têm um bom nível de vida.
O problema, como muito bem sabe D. Carlos Azevedo, não está, em princípio, na pobreza nem na riqueza de um país, mas no brutal desequilíbrio de um sistema que sempre cavou e cava cada vez mais fundo um fosso abismal entre ricos e pobres. D. Carlos Azevedo sabe, mas não lhe convém dizer, que a causa está no roubo e na exploração dos mais fracos pela quadrilha que domina o mundo, que a causa está no abjecto capitalismo selvagem que vai levar o mundo à degradação total. Ele sabe-o tão bem como nós mas não é capaz de o dizer, até porque a Igreja faz parte integrante do núcleo duro deste execrável sistema. Sem capitalismo, sem obscurantismo e exploração dos mais fracos a Igreja não sobreviveria. Não me venham, pretendendo tudo justificar, com as caridades, sem dúvida louváveis se não fossem a toalha branca a que a Igreja sempre limpou as mãos sujas.
Para os parasitas do mundo, de facto ser pobre é uma fatalidade, não sendo permitido aspirar a mais, não sendo lícito ter direitos, lutar por eles, ter sonhos, anseios e projectos. O que é preciso é ser sereno e feliz na pobreza e na exploração. Nada de revoltas, indignação e luta. Sempre foram estas as palavras da Igreja através dos séculos e sê-lo-ão no futuro porque ela sabe que os seus parceiros sempre foram os ricos e os poderosos, e contra eles nunca a Igreja se rebelou. A Igreja sabe mas não quer ver, nem lhe dá jeito, que é muito maior a felicidade de viver numa sociedade justa e equilibrada do que a felicidade de contemplar a pobreza do alto de um pedestal, ainda que ela constitua uma permanente motivação para a caridade descer à rua, mantendo a sua natureza de necessária e sempre desfraldada bandeira da Igreja.
D. Carlos Azevedo e a igreja sabem que o poder político pouco mais é do que o executor dos interesses do poder económico. Além disso, os políticos são, muitas vezes, medíocres, facilmente corruptos, insensíveis e sem a visão construtiva de um mundo que colide com os seus interesses pessoais e de grupo. Mas a Igreja, salvo alguns beliscões muito genéricos, nunca os maltrata, não só porque vão à missa e comungam, mas, sobretudo, porque alinham naquilo que a Igreja impõe e exige.
D. Carlos e a Igreja sabem que o povo não é suficientemente culto para entender as complexas relações de causa e efeito, daqui decorrendo a sua incapacidade para romper o amorfismo e empreender as mudanças de comportamento necessárias à germinação da semente de uma sociedade nova. Mas em vez de o ensinarem e de o fazerem crescer através do conhecimento e da cultura obrigam-no a calar-se e a rezar.
D. Carlos Azevedo e a Igreja sabem que os mais responsáveis, os ditos intelectuais, aqueles que, por força do conhecimento, mais próximos deveriam estar da verdade e da moral, os detentores da ciência e da cultura nos seus mais diversos ramos, os agentes da abertura das mentalidades, estão obrigatoriamente enfeudados, consciente ou inconscientemente, nas formas obscurantistas do pensamento único, impostas pelas linhas dos grandes interesses a que a Igreja não é alheia.
Ser pobre é tremendamente penoso. Querer que o pobre seja sereno e feliz é um ultraje, D. Carlos Azevedo. A pobreza não é só feita de fome. Ela é também de natureza emocional. Os factores emocionais abrangem essencialmente as perturbações afectivas, criando sentimentos destrutivos e corrosivos como a depressão e as perturbações ansiosas.
Os factores de stress crónico constituem um grande leque, incluindo o desrespeito do Estado pelo cidadão, o baixo apoio social, a insegurança na doença, o baixo estatuto sócio-económico, o endividamento e a crua insensibilidade da especulação bancária, a progressiva angústia da vida cada vez mais difícil numa sociedade dita de progresso e desenvolvimento, os conflitos de trabalho, os desencontros conjugais e familiares, sempre crescentes numa sociedade injusta e pouco solidária como a nossa, o espírito fortemente abalado pela rigidez afectiva e pela incapacidade de sentir prazer com a vida, a aversão ao trabalho, a propensão para a violência, o estado de incapacidade funcional e as queixas somáticas que daí advêm e que se arrastam pela vida fora, a sensação de não se ser amado, a amargura do viver só, o isolamento social, a falta de confidentes, as más condições de trabalho, a falta de paz no emprego, as tarefas repetitivas, a rotina excessiva sem escapes criativos, a sensação de confinamento rígido, o desequilíbrio entre esforço e compensações, as más condições habitacionais, os maus-tratos infantis, as más experiências de toda a ordem.
Esta sim, é a pobreza no seu estado puro e ninguém tem o dever e a obrigação de ser pobre.
A pobreza de Portugal e de tantos outros países está na asfixia da vida, provocada por todos aqueles que neste país e neste planeta vivem da morte.
Portugal é um país pobre, D. Carlos Azevedo, como tantos outros, porque não os deixam ser ricos. Capazes disso eram eles.
Repare, D. Carlos Azevedo, que o JN impõe hoje a sua pessoa como FIGURA DO DIA.
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