Quinta-feira, 14 de Julho de 2011

Fête Nat – por Manuela Degerine

Em França o dia 14 de Julho é um feriado e acabou. Acabou de facto o ano de trabalho e muitos aproveitam o feriado como ponte, acrescentando mais três dias às férias. Sabe bem. Os franceses têm seis semanas de férias mais os bem-aventurados RTT (Redução do Tempo de Trabalho), isto é, os dias recuperados pela passagem de trinta e nove a trinta e cinco horas de trabalho semanal os quais, por muitas empresas preferirem manter o ritmo de trabalho anterior, são acrescentados às férias. Os patrões odeiam as trinta e cinco horas (e Martine Aubry que as inventou), porém a França mantem, graças a elas, uma produtividade superior a outros países, cuja semana e cujo ano de trabalho são mais longos. Se quem não é feliz a trabalhar – isto é: a maioria – puder sê-lo fora do emprego, regressa menos frustrado, mais repousado e trabalha por isso melhor; ao contrário do que se pensa em Portugal, não importa o tempo passado no emprego, mas unicamente o que nele se produz. Com um ritmo escolar de, mais ou menos, seis semanas de aulas seguidos de duas de férias, entre Setembro e Julho, em três zonas geográficas com datas de férias sucessivas, mais os RTT e as seis semanas dos trabalhadores, a indústria do turismo jubila e representa muitos empregos, já que os franceses repartem as férias por cinco períodos, férias na neve, férias na praia, férias na montanha, circuitos de bicicleta, férias a caminhar perto ou longe de casa... Embora também dediquem muito tempo a causas, associações, instituições e, mais do que os portugueses, façam eles próprios as obras em casa; não é por acaso que em português se emprega a palavra "bricolage". Tudo isto contribui para uma arte de bem viver gaulesa.


Nos primeiros dias de Julho há na rádio e na televisão um ambiente de fim de ano com retrospectivas das notícias que marcaram a temporada. Paris esvazia-se durante um mês. (Até ao feriado de 15 de Agosto: outra ponte.) É a época de Paris-Praia, em que se pode circular a pé ou de bicicleta com o máximo de prazer, pois quase não há carros e, por consequência, o ar, o ruído e o stress descem a um nível tolerável. Dá para fazer longas caminhadas pela capital. (Evitando os museus, cheios de turistas.)


Tradicionalmente o dia 14 de Julho era marcado por dois eventos que víamos no telejornal: o desfile militar e o piquenique nos jardins do Eliseu. Este era o evento mundano mais popular, para o qual eram convidadas as figuras do ano. Os campeões disto ou daquilo. Os desportistas com medalhas. Os actores, escritores e artistas da ribalta. Os cientistas que haviam recebido um prémio ou feito uma descoberta. Os melhores alunos no bac (exame no fim do liceu). Et caetera. Toda a gente via a reportagem da "Garden Party" para saber quem havia sido convidado. No ano passado Sarkozy aboliu-a com o pretexto de fazer economias, como se os franceses devessem economizar no orgulho... Ficámos sem razões para ver o telejornal no dia 14 de Julho.


No desfile militar participam a Legião Estrangeira, a "Gendarmerie Nationale", o batalhão de XPTO regressado do Afeganistão, os tanques ou aviões do catálogo de vendas. Et caetera. A atracção mais popular costuma ser o ballet aéreo dos aviões de guerra. As personalidades instalam-se na tribuna do Presidente da República, há outras tribunas para convidados e o povo arruma-se pelos Campos Elíseos abaixo. Todas as famílias levam, uma vez na vida, as crianças ao desfile do 14 de Julho, para verem passar as fardas, os tanques, os aviões...


Organizam-se paralelamente, sem a glória do telejornal, sessões solenes de entrega de medalhas. Em 2002 organizei, com dois colegas do liceu de Colombes, onde então dava aulas, uma viagem à Polónia, para os alunos verem os campos de concentração de Auschswitz, Birkenau e Maidenek. Fomos parcialmente financiados por uma associação de filhos de deportados cujo presidente recebeu naquele ano uma medalha de mérito e, por isso, no dia 14 de Julho de 2002, fui convidada a levar os alunos à cerimónia. Eu pretendia ir apenas à entrega da medalha, após o desfile, porém o presidente da associação, um homem admirável de muitos pontos de vista mas capaz de tais estratagemas, ao qual tinham sido atribuídos numerosos lugares numa tribuna, declarou que fôramos convidados para o piquenique no Eliseu; por curiosidade, mordi o anzol e, não só fui ao desfile, mas até levei várias alunas. Encontrámo-nos portanto sentadas na tribuna a ver desfilar tanques de guerra. (Bem feito.) A seguir assistimos à entrega das medalhas: o cidadão, o polícia, o bombeiro que salvou vidas, o cão-polícia que salvou outras vidas... Durante várias horas. (Não lamento: aqueles heróis mereciam a homenagem.)


Para além do feriado e das cerimónias oficiais, o dia 14 de Julho perdeu o conteúdo histórico. Claro que toda a gente aprendeu na escola a tomada da Bastilha, sabe que a Revolução Francesa faz parte do que somos, não só em França mas no resto da Europa, liberdade, igualdade, fraternidade, sem ignorar que nesta revolução houve excessos dos quais ninguém se pode orgulhar: a decapitação de tantos milhares de pessoas, a destruição do património artístico... Também ninguém ouve na "Marseillaise" um hino revolucionário – mas será que na "Portuguesa" os nossos compatriotas ouvem uma exortação à guerra contra os ingleses? Os símbolos gastam-se.


Antigamente havia os bailes – e os namoros – do 14 de Julho. Agora a câmara de Paris organiza espectáculos que, com a participação dos turistas, acabam por juntar bastante público. E perduram os fogos de artifício do 14 de Julho.


Quando evoco esta data lembro-me do nome irónico que, no filme "Coup de Torchon" de Bertrand Tavernier, cuja acção decorre na África colonial, é dado a um criado negro por, se bem me lembro, nascer no dia 14 de Julho: Fête Nat (a abreviação de "Fête Nationale"). Este dia comemora uma revolução que proclamou iguais, pela primeira vez, os homens franceses mas deixou por declarar não só os direitos dos outros povos mas até a igualdade da mulher francesa – que  só obteve o direito de voto em 1944.


Em França, como em Portugal, a esquerda tem desprezado este património simbólico: a consciência de pertencer a uma comunidade. Que não é apenas um orgulho militar com o qual não nos identificamos ou, em Portugal, o derrisório orgulho de pertencer a uma selecção de futebol. Ser português – ser francês – é maior do que isto. Compete a cada um de nós defini-lo de maneira concreta. E por que não investirmos com novos sentidos estas datas simbólicas?

 

publicado por João Machado às 12:00
link | favorito
Terça-feira, 28 de Junho de 2011

A tragédia de Superga e uma memória da infância - por Carlos Loures

 

 

  

 

 

A 3 de Maio de 1949, realizou-se o jogo de despedida do capitão do Benfica, Francisco Ferreira. A  

equipa convidada para esse jogo foi a do Torino. Era de longe a melhor equipa italiana do momento. O Benfica ganhou, vitória que não foi festejada ou só o foi durante umas horas. Quando regressavam a Turim, o Fiat  G212 que transportava a equipa do Torino Calcio chocou com a fachada da basílica de Superga, perto de Turim. A equipa, jornalistas, directores e técnicos e a tripulação, todos morreram – 31 pessoas. Passou em 4 de Maio mais um aniversário sobre a terrível tragédia de Superga.

 

 

 

Foi ao ler a evocação desta tragédia no livro de Sílvio Castro, Um Novo Coração, que relembrei esse dia . Uma pleurisia atrasou a minha vida escolar – sabia ler desde os quatro anos, mas não pude entrar para a escola aos sete anos como era regra na época. Quando fiquei curado estava perto dos oito anos e o ano escolar ia  adiantado.

 

 Fui então para um colégio da Rua da Madalena, o Colégio Peninsular. Era um colégio feminino, mas a directora resolveu admitir-me. Entre dezenas de miúdas, apenas eu e um gordo. Não me sentia mal.

 

Em Outubro de 1948 lá entrei na Escola 44. Estava matriculado na primeira classe, mas na mesma manhã passei para a 2ª e depois para a 3ª. Os professores vendo o que sabia, foram-me chutando para cima - Deveria ter ido para a 4ª, mas havia um exame na 3ª e daí a lei já não permitiu que passasse.

 

Adaptei-me logo, embora as diferenças fossem abismais – menos gentileza, por dá cá aquela palha, pegava-se tudo à porrada, mas também guardo boas recordações. O Edmondo de Amicis e o seu Cuore, é considerado uma pessegada, mas li-o por essa altura e achei que retratava com algum realismo a vida nas escolas.

 

Jogos de berlinde, troca de cromos, e a violência com que se puniam desacatos. Em toda aquelas dezenas de apazes, haveria malucos, mas hiperactivos nem um, nem tipos com excesso de personalidade. O excesso de personalidade, ali pagava-se caro. Naquele dia de Maio, com exame e férias à vista, percorri o caminho de todos
os dias, caminhando até ao Largo de Santa Justa, subindo as escadinhas da mesma santa e chegando assim à Rua da Madalena.

 

E naquela manhã lá trilhei esse caminho até ao cimo da rua da Madalena, pois a escola ficava quase no ponto em que a rua desce na direcção da Sé. E fui vendo rostos fechados, gente às portas dos estabelecimentos. Percebi que se passava qualquer coisa de anormal. Só quando cheguei à escola 44 soube o que se passara. É uma das recordações mais tristes das que conservo daqueles anos.

 

 

 

publicado por Carlos Loures às 21:00

editado por João Machado às 00:12
link | favorito
Quinta-feira, 23 de Junho de 2011

S. João - Marcos Cruz

 
Marcos Cruz  S. João
 
(Adão Cruz)
 
 
João estava são, mas não tencionava ir ao S. João. Era uma contradição quase evidente, pois, no Porto, só não vai ao S. João quem estiver em má fase, morto ou doente. Mas João tinha uma explicação assaz convincente: o seu cão, pouco paciente, não lhe daria paz em noite tão exigente. Uma solução era deixar o cão na vizinha, mas esta, tripeira dos quatro costados, queria também ir à festa, e sozinha, sem atrelados. O que fazer, então? Das tripas coração? Talvez não. Afinal, o S. João não valia tanto, para o João, como aquele espanto de animal. No entanto, mais do que ninguém, estava o dono seguro de que quem troca o pão, mole ou duro, e a sardinha na brasa por passar, com o cão, em casa, um serão distinto, sem um grãozinho na asa, não sabe o que perde, pois como isso não há nada, nem o chouriço, o vinho, verde ou tinto, a martelo, nem a própria martelada. Bailarico popular é o S. João, e só ficam a ganhar os que lá vão. Foi já resignado à desdita que o João, acabrunhado, teve súbita visita de uma cantora de fado. Ainda ela lhe dizia que viera de Lisboa rever uma velha amiga mas não a tinha encontrado, logo o João, animado, deu corda à imaginação, pensando se não seria a sumida rapariga a sua vizinha do lado. Era mesmo, pois então, e foi em tom de cantiga que o bom do João propôs à querida fadista condição oportunista para lhe dar guarida até ao regresso da amiga: tomar-lhe conta do cão. Ela ficou convencida e, pronto, missão cumprida, lá foi ele, feliz da vida, cumprir também a tradição.

 

 

allowfullscreen>
publicado por Augusta Clara às 19:00
link | favorito
Terça-feira, 21 de Junho de 2011

O Paquete - Adão Cruz

 

Adão Cruz  O Paquete

 

(Adão Cruz)

 

O Paquete entrou no serviço de urgência inchado como um tonel tenso como um balão a que só falta o alfinete para estoirar fígado pulmões ventre de pandeiro tudo está encharcado como uma esponja por um coração entupido sem ar como se morresse afogado ou dentro da linguagem médica como peixe fora d’água.

Insuficiência cardíaca grave insuficiência cardíaca descompensada anasarca…os vários termos para rotular o sofrimento atroz de um jovem sem culpa igual a tantos outros que jogam ténis.

Socorrido na primeira fase de compensação e um tanto aliviado foi internado para estudo e veio fazer um ecocardiograma.

O Paquete tem vinte e seis anos e uma cara aciganada morena de si e roxa da cianose.

Começou a trabalhar como moço de trolha aos treze anos vergado ao peso da tábua e do balde e à força de cachaços lá se erguia quando aninhava com o abafa.

Nunca alguém o levara ao médico.

Não tive coragem de colher a sua história antes desta idade a história da sua infância.

A meio do exame diz-me o Paquete a medo e quase em segredo Sr. Doutorestou à rasca para mijar deixe-me ir mijar pelas almas… no meio de tais máquinas perante aquela gente de bata branca que ele nunca vira mais gorda o sofrimento da sua vida levava-o a pensar que pedir para mijar era quase um crime.

O Paquete tem uma gravíssima estenose mitral com severa insuficiência mitral e tricúspide e um coração do tamanho de uma melancia está numa fase inoperável a rebentar pelas costuras… se operado fosse tudo não passaria de remendo em calças a desfazer-se.

Sem a mínima ideia do que se passa ele submete-se humilde desconfiado medroso como sempre aconteceu em toda a sua vida tem medo que lhe ponham a tábua à cabeça ou o balde na mão e com aquela falta de ar…ele que sempre pediu para o deixarem respirar um pouco antes do peso de outra tábua e de outro balde.

O Paquete nunca fora ao médico e nunca ninguém lhe dera a mão para se erguer todos lhe esfacelaram o coração e a vida até rebentar.

Pobre Paquete pobre barco tão frágil.

Com as lágrimas nos olhos saí do hospital e escrevi esta história de hoje de há séculos e escrevo-a em especial para os meninos e jovens que brincam que jogam que sonham e que vão ao médico.

allowfullscreen>
publicado por Augusta Clara às 19:00
link | favorito
Sábado, 18 de Junho de 2011

Coreografia da água - por Luís Rocha

 

 

 

 

 

 

Estou sentado no banco de um jardim Municipal, que localmente se designa por “parque da cidade”. Ainda é cedo e poucas pessoas passeiam pelo jardim. Apenas se ouve o chilrear dos pássaros e sente-se o conforto do silêncio. Vejo o colorido das flores, as árvores e sinto o cheiro a fresco. O que atrai a minha atenção, até pela calma que transmite, são vários repuxos de água que no máximo do seu esplendor fazem um quadrado, com uma área quase idêntica à de um palco de teatro. Os repuxos sobem e descem numa coreografia perfeita, em forma alternada ou conjunta, com mais ou menos exuberância que se manifesta na altura que alcançam, numa dança de água desafiante e ao mesmo tempo calma. De vez em quando surge uma nuvem de água, como um fumo que envolve os bailarinos (repuxos) na fantasia da sua dança. O fumo vai desvanecendo lentamente, os bailarinos param por momentos e vão surgindo como estátuas vivas à medida que se levanta o nevoeiro.

 

De seguida e também lentamente os bailarinos retomam a sua dança à espera de nova nuvem envolvente que quase os esconde, como a querer sufocá-los. Por cima daquela névoa vão aparecendo um, dois e depois três repuxos, como que a gritar pela sua “liberdade”, ou será que os seus saltos mais altos, que vão contagiando os outros bailarinos, são o regozijo do aconchego e abraço daquela nuvem que vem e logo vai!
publicado por Carlos Loures às 21:00

editado por João Machado em 17/06/2011 às 23:33
link | favorito

Pedro Chorão: Lágrimas na natureza - Jorge Silva Melo

 

Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt

Virgílio, Eneida (1)

 

Reza a lenda que, lá para o fim da vida, Turner, o mais leve dos mais aéreos mestres, preocupado com tantas outras coisas e, ainda por cima, a ter de tratar com os clientes, vivia numa casa para den­tro da qual a vida fora mandando tudo e mais alguma tralha, verda­deira lixeira, resguardado do mundo por tremenda governanta e vários gatos à solta. Um deles, de patas sujas, lá passou por um papel que havia de estar pelo chão ou em cima de uma mesa, e quis o acaso que essa folha chegasse até nós e merecesse honras de museu, ex­posta que a vejo sempre na velha Tate, a que agora chamam Tate-Britain. Eu gosto dessa folha de papel e visito-a sempre, com os passos do gato a virem não se sabe de onde e irem sabe-se lá para onde, em diagonal sobre a folha, leves, insólitos, a folha que recolheu, sudário, aquele preguiçoso, determinado passeio do gato movido por sabe-se lá que impulso, levado sabe-se lá por que apelo, naquele institivo "minuto do mundo que passa", minuto que para sempre connosco ficou.

 

Já, no outro dia, disse ao Pedro Chorão que este papel do gato de Turner lhe assenta como máscara, não como luva, a ele que pega nos papéis e os deixa por acabar, avança para outro, sabe-se lá para onde vai, volta atrás, olha os seus interlocutores maiores, os desaparecidos, os seus mortos, saúda-os, fá-los emergir, recomeça, recorta, "mestre do inacabado" chamou-lhe, e justamente o chamou, Alexandre Pomar, ele que começa os seus trabalhos não se sabe vindo de onde ou sabe-se — e muitas vezes vem da pintura de outros, sombras de Jaspers Johns, de Motherwell (a quem, nas suas homenagens, parece perguntar, como Ariel a Próspero: What shall I do? Say what: What shall l do?) —, cartolinas recortadas, pedaços de papel colados, rasgados, pedaços da vida suja, um envelope, um desenho técnico, listagens, papel grosso, restos dos dias, pegadas e o horizonte naquele imenso de papel intocado que parece desequilibrar-se, dançando num equilíbrio sempre recomeçado, imponderável.

 

A que agora se vêm juntar os delicadíssimos conjuntos em que tintas insustentavelmente leves mal assomam o papel, imperceptiveis, espuma mal liquefeita dos dias, libertando o branco do suporte, fazendo-o mover-se, luzir, cintilando, ansiando pela estrutura geométrica ou pela parede onde brilharão, luzinhas de vida derramando-se, lamentando-se numa perda do instante, chuva de átomo em permanência, nesse instante em que cada vez menos se inscreve, cada vez mais suspira, lucrecianamente ao rés das coisas.

 

E penso na velha expressão intraduzível de Virgílio, ele que fala das lacrimae rerum, que Antero, o dolorido, traduziu por "suspiro das coisas", é desse choro das tintas — não serão antes sorrisos e tão tranquilos, tão firmes, tão cantantes, tão límpidos? — que esta obra serena e constante é feita, dias e dias que se seguem, às vezes para trás, obscurecidos por névoa vivencial, verdade do momento, segre­do, tão secreto segredo na ponta dos dedos da vida, tão táctil tudo, o papel rugoso, a tinta sedosa, água.

 

E são sussurros, são murmúrios, são segredos, são brincadeiras, sorrisos, são afagos, abraços, são gestos da mutável passagem das coi­sas, ver a tinta desfazer-se na pincelada descendente, vê-la encobrir-se toldada pela memória tão afectiva, é ver a cartolina cortada desenhar uma fenda, haverá um beijo sempre nestes recortes de grande intensidade, uma euforia erótica, há sempre um beijo no aflorar do pincel, penugem tão levemente deslizando, e outra vez e outra vez e recome­ça, e volta.

 

Nesta arte em que parece não haver rede alguma, pousando ape­nas, inacabada, nua, invulgarmente discreta, lá vão indo os dias e os dias, a linha do horizonte, a luz reflectida, a luz reflexiva, um pouco de azul descendo, o que resta dos beijos roubados, a sombra doce das árvores e a imensa paisagem da vida, a contemplada, distante pla­nície.

 

Se o caminho sempre em mutação de Pedro Chorão é tão comoventemente vivido é porque a sua carne viva não é a que vemos no talho, nem a sua ferida sangra; ele sorri da vida passada, brinca, recomeça, surge, ressurge, retoma, apolíneo, austero, sensível, volta, sem pathos, sem a hipótese de espectáculo ou narcisismo: são linhas e manchas da vida cruzada, pegadas, a aérea transformação da luz, a leve transição do presente em passado, memórias ternas, sozinhas e límpidas, a dor é flor do dia que acaba indo-se, éter.

 

E, tal como as pegadas do tal gato, cada trabalho, uma passagem apenas, atira para dentro de si e no seu instante um seu futuro: tal como o gato, lá se vai o Pedro Chorão depois, à vida dele.

 

Até novo papel (qual será dessa vez? craft, embrulho, canelado, rascunho, grosso?), a mesma leve tinta, um recorte, um pingo de cola, par délicatesse et mentem mortalia tangunt.

 

Catálogo da exposição de desenho de Pedro Chorão na Galeria Esteves de Oliveira,

Lisboa, Janeiro 2005

 

 

(1)  A mais bela tradução encontramo-la na epígrafe de Boa tarde às coisas aqui em baixo de António Lobo Antunes: Há lágrimas na natureza e [a sensação do efémero] toca-nos o cora­ção. Quem mo assinalou (obrigado!) foi o Aires Augusto do Nascimento.

 

(in Jorge Silva Melo, Século Passado, Cotovia)

publicado por Augusta Clara às 18:00
link | favorito
Terça-feira, 19 de Abril de 2011

Oportunidade Perdida? - Magalhães dos Santos

Magalhães dos Santos  Oportunidade Perdida?

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

 

Não sei – infelizmente, muito infelizmente! – onde guardei, se é que o guardei… - um magnífico emílio em que se anunciava que este ano ia ser um ano… e peras!

 

Não um ano de revolução! As revoluções dão uma volta e voltam ao ponto de partida. Não adiantam nem atrasam! Ou adiantam para os que sempre estiveram adiantados no bem-estar, e atrasam para os que sempre estiveram atrasados no mal-estar.

 

Mas um ano de transformação! Transformação sensível! De que daremos conta! Que vai sacrificar coisas e gente, talvez fazer sangue, ou no sentido real ou em linguagem figurada.

 

Muitos são os sintomas de que tal está aí a chegar.

 

Há, em Portugal, alguns movimentos que prenunciam uma alteração profunda na Sociedade. Aquela coisa da Geração à Rasca, por exemplo. Não parece que tenham um denominador político comum. Político no sentido de partidário. Não devem faltar partidos que queiram capitalizar o seu descontentamento, que queiram dizer “se Vós quereis transformar a sociedade, juntai-vos a nós, inscrevei-vos nas nossas fileiras. Servi os nossos interesses e nós serviremos os vossos interesses!”

 

Oxalá a Geração à Rasca não ouça esse canto da sereia! Se não… vira o disco e toca o mesmo! Cuidado também com os que, dentro desse movimento, manifestem (mais escancaradamente ou mais discretamente) vontade mórbida de chegar ao topo, de comandar, de chefiar! “Quem quer mandar raras vezes manda bem!”

 

Pra desgosto e desilusão, bem basta o que me (-nos) foi proporcionado pelo Dr. Fernando Nobre! Até pelo gargalhar cínico dos porcos politiqueiros, a fazerem pouco da nossa ingenuidade… Imperdoável! Quinhentos e muitos mil que votaram nele – eu fui um desses -, a acreditarmos que ia chegar a limpeza, a frescura, a regeneração… e vai-se a ver… “Ou sou eleito presidente da Assembleia dos Carrapatos… ou não brinco aos deputados” Ora… Bolas” para não dizer, educadamente mas insuficientemente, caca!

 

Várias partes do Mundo dão sinais de descontentamento! O Norte de África, países árabes, Venezuela…

 

Só uma ressalva: Será que nos países árabes – Egito, Tunísia, Líbia, um dia (próximo ou cada vez menos longínquo) a Argélia, os países petrolíferos, a China (ai, quando o povo chinês acordar!) – será que nos países árabes, o poder sai das mãos em que esteve para passar para as mãos dos fundamentalistas islâmicos? De talibãs? De beatos muçulmanos? De gente que quer o recuo ao século VII, quando as tropas do profeta Maomé andaram a islamizar o mundo? Não viremos a ter saudades de Mubaraks & Cia.?

 

Será que o Mundo vai desperdiçar esta oportunidade de ser povoado por gente? Gente merecedora desse nome? Não por cães e gatos, não por ovelhas e lobos! Não por vigarizados e vigaristas! Não por vigarizados que só lamentam não terem as artes dos vigaristas! Porque não se lamentam de terem sido vigarizados, têm é pena de não saberem o suficiente para irem logo-loguinho vigarizar o vizinho, o evangélico “próximo”

 

O clima parece estar bom para alterar o (mau) estado a que as coisas há muito tempo chegaram. Vamos aproveitar a oportunidade? Vamos deitar-lhe a mão e não a largar?

 

Em velhos ou em jovens – como fazermos o teste da honestidade, do desapego, da competência?

 

O Escritor Ferreira de Castro viveu toda uma vida na esperança de uma alteração na vida do seu país. Solidário como era, certamente também na vida do Mundo. Ainda viu o 25 de Abril de 1974 (o único digno da minha saudade). Morreu em 29 de Junho desse ano. Tinha setenta e seis anos, ainda não tinha chegado, aos que se entusiasmaram com a (só aparente) reviravolta, a grande desilusão, a grande frustração, o grande nojo. Ainda a “democracia” era uma palavra recheada de Esperança, e não o vómito em que a transformaram. Ferreira de Castro ainda morreu na Esperança.

 

Eu estou – no dia em que escrevo estas linhas – com setenta e sete anos.

Poderão restar-me uns quantos dias, alguns meses, poucos, muito poucos anos de vida.

 

Vou morrer no desespero?

 

allowfullscreen>

publicado por Augusta Clara às 19:00
link | favorito
Sexta-feira, 15 de Abril de 2011

Pérolas Negras, por Augusta Clara de Matos

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Vai-se apertando o círculo do universo do que me chega e eu reconheço, e eu aceito, e eu vivo. É a mim que tudo diz respeito. O resto já não entendo, nem creio. É quase tudo fictício. Já nem sou capaz de distinguir o real da efabulação.

 

Miragens. Quando lá chego, o oásis não existe.

 

A vida é mais ficção do que aparenta. Não queiras sair. Não consegues. Mas, dentro da ficção, também se vive. E bem mais, às vezes. Quase a prefiro à realidade. É mais fiel. Menos cobarde. Posso moldá-la, tirar-lhe a escória. Ir ao viveiro, trazer a ostra que se destacou e roubar-lhe a pérola perfeita.

 

É por isso que os que lêem são mais felizes do que os que não lêem. Já reparaste na face duma pessoa que não sente a osmose de apertar um livro ao peito? É baça, não se lhe vislumbra a menor chispa. Só tem este mundinho, não pode viajar por outras esferas, outros sonhos, pela vida real. Falta-lhe essa cumplicidade para fugir ao cárcere.

 

Os loucos lá sabem porque habitam as zonas oníricas aonde nós não chegamos, lá decidiram porque não voltam. Camille Claudel nunca mais quis esculpir…durante trinta anos.

 

Mas as pérolas negras também são lindas. E valiosas. Tanto!

 

Pérolas que escureceram pela dor acumulada, pelo sal das lágrimas, pelo suor das mãos no esforço de reterem o amor em fuga.

 

Pudesse eu matar a história e a memória. Mas não tenho poder para isso. A história fica gravada para sempre. A memória, se a matarmos, matamo-nos a nós próprios.

 

Os nossos desencontros não se encontram. Estamos para sempre a isto condenados? Tântalos em terra firme.

 

O narrador já não acerta. Só diz o óbvio. Despedi-o. Para isso não preciso dele. Faço eu o caminho.

 

Que me importa que as pérolas sejam negras? Uma a uma e vou tendo um colar encantado. Depois, trazemos a abóbora e reconstituímos a história. Eu gosto de contos de fadas, lembras-te?

 

 

publicado por João Machado às 15:00
link | favorito
Terça-feira, 15 de Março de 2011

CONFIANÇA, de Raúl Iturra

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

http://www.youtube.com/watch?v=295BFM0gd_E

 

 

Tal como a criança que dorme confiantemente em paz, há imensos factos da vida que nos fazem rir e estarmos em paz connosco e com os outros. Estou certo de que os meus amigos se interessam pela minha saúde. Estou mais do que confiante que a mulher que amo, é uma pessoa fiel porque faz tudo por mim. Confiante na paciência dos que pretendem ler os meus textos. Escrevo a palavra pretendem, não como insulto, mas como reconhecimento que é impossível ler tantos ensaios que eu envio. Não há tempo, entendo.

 

Vasculho algumas ideias com o objectivo de provocar o debate que, infelizmente, raríssimas vezes acontece. Assim, como é possível avançar no saber, como nos ensina o método dialéctico de pensar, se não temos contraditores a quem devemos responder? Estou convicto que se eu escrevo um texto com uma tese, que se baseia numa hipótese, a proposta pode estar enganada e é assim que esperamos ser corrigidos. Mas, sem contradição, podemos pensar que não há engano na nossa proposta. John Stewart Mill, no texto de 1848: Principles of political Economy, reeditado também em 1998 pela Clarendon Press da Oxford Univerity Press, debate as ideias dedutivas e indutivas. A lógica indutiva parte do que se vê e prova, remetendo-nos para teses que provam o que acontece na vida real, formulando, assim, um paradigma de ideias que orienta o nosso pensamento; as ideias dedutivas, servem para retirar do nosso pensamento hipóteses que se aplicam à realidade, compatibilizando assim um esquema lógico que Karl Marx, de imediato, usou para as suas hipóteses materialistas históricas, expressas nos seus textos filosóficos.

 

Confiança, enfim, e coragem são provenientes da convicção no nosso próprio valor. Não é minha intenção salientar o que penso saber e duvidar do que não sei. Apenas é a confiança que deposito em vós para que, uma vez por outra, apareça um comentário de um cientista para debater comigo uma ideia.

 

Agradeço essa confiança depositada em mim, por alguns dos que debatem as minhas ideias.

 

Foi, aliás, essa confiança que me levou a escrever estas linhas e a esperança de que mais alguém, um dia, queira debater comigo….

 

Quase que peço o impossível: a história da filosofia, ou das ideias que fizeram avançar (ou retroceder) o mundo, não rendem lucro. As pessoas estão mais preocupadas em pagar as contas no final do mês, enquanto outras estão focadas na obtenção de bens materiais.

 

 

 

 

 

 

 

publicado por João Machado às 15:00
link | favorito

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links