Em Fevereiro de 1975, integrado num grupo relativamente numeroso, recebi treino militar, nomeadamente no que se referia ao manuseamento do armamento ligeiro então em uso nas Forças Armadas. Um fim de manhã regressávamos de uma dessas fatigantes sessões. Trazíamos ainda vestidos os camuflados, transportando desmontadas e dentro de sacos de lona as armas que tínhamos estado a utilizar numa praia deserta.
Quando chegámos junto do local onde tínhamos deixado os carros, oito de nós fomos cercados pelos soldados de um pelotão de infantaria que apontando-nos armas, nos deram voz de prisão. Com é óbvio, não oferecemos resistência e fomos conduzidos em viaturas à unidade militar a que pertencia o pelotão que nos deteve, num concelho dos arredores de Lisboa.
Durante a curta viagem, não houve conversas. Talvez não sabendo qual a melhor postura a adoptar, o jovem tenente que comandava a força tentou manter-se em silêncio, respondendo por monossílabos às nossas perguntas. Nós não interiorizáramos ainda que tínhamos sido presos – pois era lá possível soldados prenderem cidadãos de esquerda! No grupo havia quem tivesse servido como oficial e, mesmo os refractários, isentos e territoriais, falávamos para o tenente com aquela camaradagem sobranceira com que os trintões tratam os putos. E o mais velho de nós já ia nos cinquenta – idade de general.
Mal chegámos, fomos introduzidos no gabinete do comandante que nos cumprimentou afavelmente. Estivemos mais de uma hora conversando com ele e almoçando, pois o coronel teve a amabilidade de mandar vir comida da messe. A cordialidade foi tanta que nem nos apercebemos de que estávamos presos. Enquanto almoçávamos, falámos de tudo, da conturbada situação política portuguesa, de literatura, de futebol… Vieram os cafés. Pudemos telefonar para casa a dizer que chegávamos «mais tarde». Tudo a correr sobre esferas.
Até que o coronel depois de atender um telefonema em que respondeu por meias-palavras, nos informou que íamos para Lisboa. E assim foi. Despedida cordial e lá seguimos até Lisboa. Quando saímos da viatura fechada vimos que estávamos na parada de um regimento de cavalaria. Dois ou três de nós logo identificámos a unidade.
As coisas endureceram e começámos a perceber que estávamos metidos numa grande alhada. Interrogados por elementos da 5ª Divisão (rostos fechados, hostis) dissemos sempre a verdade – cidadãos conscientes, temíamos que aqui ocorresse um golpe semelhante ao do Chile, sabíamos que, numa emergência dessas, o MFA distribuiria armas pelos civis e queríamos estar aptos a utilizá-las.
É impossível para quem não viveu aqueles meses compreender a nossa estupefacção perante o que nos estava a acontecer, pois tudo o que fazíamos nos parecia normal. Para quem não tenha essa possibilidade de compreender o contexto será evidente que civis, envergando equipamento militar, usando armas de guerra, só podiam ser presos. Pois para nós quando compreendemos que não íamos ser postos em liberdade foi a surpresa e a indignação.
Embora fôssemos interrogados separadamente, um por um, todos dissemos o mesmo. E em tom sobranceiro. Lembro-me que olhei aqueles três oficiais mais velhos do que eu (não recordo as patentes, mas eram acima de capitão, tenentes-coronéis ou coronéis) e que respondi às perguntas com o didactismo com que se fala a débeis mentais. O mais velho, disse-nos depois, que os comparou aos agentes da PIDE, o que os irritou e não deve ter contribuído para facilitar as coisas. Era (já morreu) um ex-militante do Partido Comunista, com muitas prisões. À época era um conhecido sindicalista e cooperativista.
Para quem não saiba ou não se lembre, acrescento que a 5ª Divisão do Estado Maior General das Forças Armadas era um bastião da ala gonçalvista e, portanto, reflectia as teses pecepistas por oposição ao COPCON, onde Otelo e os seus seguidores se colavam às posições da extrema esquerda. Estando nós detidos por gente ligada à 5ª Divisão, a primeira tentativa dos «torquemadas» foi saber quais eram as nossas ligações ao COPCON, onde tínhamos obtido as armas e as munições… Não levaram nada de nenhum de nós.
À tarde quando saía de uma reunião, Otelo Saraiva de Carvalho, na altura graduado em brigadeiro, foi abordado pelos jornalistas pedindo-lhe que comentasse a nossa prisão. Se estava surpreendido, por civis andarem a receber treino militar. Otelo respondeu qualquer coisa do género: «- Ficaria surpreendido é se não tivessem esse cuidado».
Alguns jornais comentavam jocosamente a notícia – o DN em editorial do chefe-de-redacção, com o título «As armas e os varões assinalados», defendia a tese do PCP - os civis não se deviam ocupar da defesa da democracia em termos militares, pois isso era função das forças armadas. Algo deste género.
No entanto, embora tivéssemos sido detidos por militares e estivéssemos presos num quartel, sendo civis, teríamos de ser entregues às autoridades civis. Fomos então transferidos para a Polícia Judiciária que nos interrogou, mas não se considerou competente para julgar um crime (posse de armas de guerra) de natureza militar. Na dúvida transitámos para a Polícia de Segurança Pública que nos teve presos durante dois dias e, após opinião de um jurista, nos devolveu aos militares, pois a posse de armas de guerra configurava um crime que, embora sendo civis, nos colocava sob a alçada da justiça militar.
Finalmente (lar, doce lar!) cheguei ao tão meu conhecido Reduto Norte do Forte de Caxias. Aí ficámos uma semana à guarda dos fuzileiros. Sempre bem tratados, bem alimentados. Nenhum problema. No piso de cima os agentes da PIDE que ao saberem que nas celas do andar debaixo havia gente de esquerda, se esmeraram nas canções ordinárias e nas patadas que davam no chão.
As mulheres (éramos todos casados) iam-nos visitar como faziam antes do 25 de Abril. Uma, mais enervada, chamou fascista a um dos fuzileiros que, coitado, ficou muito ofendido. A minha mulher disse ao oficial de dia, um segundo-tenente, que durante a ditadura me fora ali visitar meses a fio, mas nunca esperara ter de fazer o mesmo depois da Revolução de Abril. Comovido, o jovem chorou mandou-me chamar e permitiu que a visita se fizesse fora do chamado parlatório, na pequena sala que lhe servia de gabinete.
A verdade é que os fuzileiros ou a força de infantaria que nos prendeu, os agentes da judiciária ou da PSP, não tinham culpa que tivéssemos aderido a um programa peregrino e mal alinhavado. Era óbvio que a 5ª Divisão deveria ter sido informada e que o treino deveria ter sido feito de forma mais regular. Mas, naqueles dias loucos, quem pensava em fazer as coisas como dever ser? O que hoje é óbvio, naquela altura era ou parecia disparatado.
Quando no dia em que fomos detidos, ainda todos juntos, o comandante da unidade onde estávamos à espera de uma decisão, veio visitar-nos e, depois de ter ouvido as nossas razões, com a peculiar sem-cerimónia castrense invectivou-nos: «Seus maçaricos, se tivessem vindo ter comigo, tinham recebido o treino aqui no quartel e não teriam qualquer problema». Era óbvio, mas tardio.
Ao cabo de uns dias em Caxias, fomos libertos, com termo de identidade e residência. E pronto, fomos à nossa vida enquanto o processo seguia os seus trâmites. Passados uns dias deu-se o 11 de Março. Diversos civis participaram na conspiração spinolista. O assalto e a sabotagem do emissor do RCP foi realizada por civis enquadrados por militares. Sabe-se também o papel que os civis assumiram na defesa do perímetro do RAL1, simbólico, folclórico, talvez, mas visível. Havia pelo País fora milhares de homens e mulheres prontos a pegar em armas e a defender a liberdade recentemente conquistada. E isto já nada tinha a ver com folclore.
Felizmente, a montanha pariu um rato e a ofensiva de direita, a «Operação Matança da Páscoa», encabeçada pelo general Spínola não era nada de consistente. Os aviões bombardearam o RAL 1, mataram o soldado Luís que estava deitado, pois estivera de serviço durante a noite e pouco mais. Mas o 11 de Março, embora na perspectiva da direita não tenha passado de um golpe falhado, teve profundas repercussões na vida nacional, nomeadamente com as nacionalizações a que deu lugar.
Num sábado de manhã, depois do 11 de Março, estava no Limo Verde da Parede a ler, quando um sujeito se aproximou e perguntou se não me lembrava dele. O rosto era-me vagamente familiar. Vendo que não me lembrava, ao cabo de uns momentos disse-me quem era – um inspector que me tinha interrogado na PJ (e que pelos argumentos com que verberava a nossa iniciativa, me parecera homem do PC, ou influenciado pelo PC - «as armas são para os militares, eles é que têm a missão de nos defender, nós devemos lutar pelas nossas posições nos nossos locais de trabalho, de residência, de estudo, blá, blá, blá…». Convidei-o a sentar-se e conversámos durante algum tempo.
Uma coisa que o intrigava era o que todos disséramos sobre a iminência de um golpe de direita ter batido tão certo e tão depressa ter ocorrido. Chamei-lhe a atenção para uma coisa que se chama «análise da situação política». Os sintomas de que a direita preparava um golpe eram visíveis a olho nu. As posições do Spínola e seus seguidores, demarcando-se da grande maioria dos militares, o discurso partidário, as queixas da gente da Igreja e dos patrões…
Disse-me que as nossas alegações durante os interrogatórios tinham, a partir de 11 de Março, dado lugar a animadas conversas na PJ, comentando a justeza dessas previsões. Confessou que não tinham acreditado. Que o comentário que tinham feito entre eles fora: «Estes gajos são malucos».
Em 11 de Março de 1975, tal como prevíamos, foram distribuídas armas por civis credenciados por partidos de esquerda e deixando um responsável pelo grupo o cartão de identidade que só seria devolvido contra entrega das armas. No RAL 1 pude observar um grupo da LUAR a « abastecer-se». Entre diversos homens, uma senhora jovem, bonita, muito bem vestida, mas com uma boina com a estrela de cinco pontas, depois de pegar numa G-3, achou-a grande e incómoda e optou por uma FBP - uma má escolha, quanto a mim; por certo ela não recebera treino (nem fora presa). Mas teve graça a forma como hesitava – como se estivesse no supermercado decidindo entre duas marcas de um mesmo produto.
Foi nesse dia que conheci pessoalmente o José Afonso, embora tivesse sido um dos editores do seu primeiro livro - «Cantares». Mas esse episódio já o contei. Encontrei-o nessa tarde quando me desloquei a Setúbal . O Zeca estava parado na estrada, boina basca, mãos nos bolsos. A primeira coisa que me perguntou foi se levava armas. Toda a gente àquela hora esperava que o «verdadeiro» contragolpe eclodisse. Ninguém acreditava que as ameaças da direita se tivessem traduzido naquela tímida e pífia ofensiva.
A forma como nos vimos livres do problema foi, no mínimo, curiosa. Numa moldura penal que previa até oito anos de prisão e quando tínhamos já o julgamento marcado, o papa João Paulo II visitou Portugal e o nosso crime foi abrangido pela ampla amnistia decretada.
Devia ter olhado para o céu e dito, como nos filmes americanos:
- I owe you one.
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