Domingo, 27 de Fevereiro de 2011
Vejo-me sob um luar de vagas transparências vagueando pelo campo com o seu mistério de sombras, transformando troncos de pinheiros numa espécie de exército petrificado no chão de ervas e outras plantinhas e flores silvestres que adormeceram ao morrer do dia. Novelos esvoaçantes de bruma transportam memórias dos tempos da inocência fixadas no espaço como raízes do destino. Sente-se o sopro da natureza subindo o corpo das árvores vestidas de um verde esmalte raiado de estrias quais linhas infestantes observadas na celulite da pele das mulheres.
Há um silêncio de sossego sentado nas mesas brancas que adornam o respirar da noite no planalto imenso e húmido a libertar o ameno aroma da natureza. Mesas brancas que embelezam o luar; Mesas, muitas mesas, enfeitam o luar, imensas mesas sólidas, firmes, limpas e imaculadas. Mesas redondas, quadradas, retangulares, redondas a representarem a confluência das forças telúricas e o conhecimento instintivo, quadradas a significarem a passagem deste à consciência e à iniciação intelectual, retangulares configurando a tábua mística da revelação.
O arco da lua enquadra a infância com o carinho das vozes pequeninas, cantantes, a soletrarem o pensamento solto pelo ritual dos gestos e vai, alegremente, conquistando a luz da consciência. Não é a idade de ouro dos alquimistas mas a da origem transportando consigo o segredo de vidas ancestrais guardado na estrela que atravessa o cosmos para aqui repousar com o seu brilho diamantino a iluminar os caminhos da existência. Na poeira levantada pelas charruas que rasgam sulcos na alma das gentes perdem-se recordações da beleza e do amor que foram o berço da serenidade inicial. Deixa-se para trás o bosque maravilhoso das brincadeiras participadas pelos anjos protetores de modo a navegarmos pelo rio da aventura de cujas águas surgirá a deusa mensageira, senhora do obscuro domínio dos sentidos, para anunciar o fim da divina harmonia e o começo da peregrinação cármica.
Sentado à única mesa onde cintila a chama vermelha de uma vela como se fora luz de sangue ou desejo de pecado a ferir a alma de incertezas, encontro-me só, imóvel, trespassado por indolência intemporal suspensa na rama da inquietação. Guardei-me de branco (camisa, sapatos e fato), cor imaculada e serena, para este encontro dominado pela imponderabilidade de um astronauta a rascunhar hipérboles na cápsula do amor onde colho os frutos que conferem razão ao sonho e regam utopias entre beijos sublimes. Em planura de neve aguardo o corpo amado sem a vileza dos pensamentos que desconcertam a mente com o viscoso arrebatamento do prazer.
Distante e difusa, pequena e etérea, recorta-se no espaço a silhueta feminina transportando consigo a lira de Orpheu cujos acordes têm o privilégio de provocar o encantamento dos astros. Aguardo a proximidade do seu corpo onírico incitando o poema que rompe o percurso iniciático da juventude na descoberta dos segredos do mundo. Há um tempo infinito espero esta mulher imaginada pelos poderes da mente e submersa por ocultas quanto inexplicáveis sensações anunciadas quando me encontrei pela primeira vez com a palavra amor e a procurei desvendar letra após letra até chegar a este lugar isolado dos excrementos do mundo.
publicado por Carlos Loures às 22:00
editado por Luis Moreira às 22:23
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Segunda-feira, 6 de Dezembro de 2010
O PEÃO
Ray Bradbury
Penetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de Novembro, pousar os pés sobre o sólido passeio de cimento, pisar as fendas com ervas, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa esquina de um cruzamento, olhando as ruas banhadas pelo luar nas quatro direcções, decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho, neste mundo de 2053 a.D., ou, como se estivesse só. Tomada uma decisão definitiva, escolhido um caminho, começaria a andar, soltando baforadas de ar congelado à sua frente, como o fumo de um cigarro. Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com as suas janelas escuras; era como caminhar por um cemitério, pois só leves clarões de luz fantasmagórica eclodiam por detrás das janelas. Súbitos e cinzentos espectros pareciam surgir sobre as paredes das salas, onde uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma janela num edifício-túmulo estava ainda aberta.
O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia, olhava, e continuava a marcha, os pés sem fazer ruído no pavimento irregular. Há muito que, prudentemente, passara a usar sapatos de ténis para passear à noite, porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam a sua caminhada com latidos, se usasse calçado com sola de couro, as luzes poderiam acender-se, e rostos aparecer, toda uma rua se alvoroçar com a passagem de um vulto solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de Novembro.
Nesta noite, em particular, tomara a direcção Oeste, rumo ao mar, invisível. Havia um frio cristalino no ar que cortava o nariz e fazia os pulmões arder por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava com prazer o calçado macio empurrando delicadamente as folhas de Outono, assobiava frio e baixinho, entre dentes, arrancando ocasionalmente uma folha de passagem, examinando o desenho esqueletal, à luz de um raro candeeiro público, enquanto caminhava, aspirando seu odor ferruginoso.
-- Ó da casa -- murmurava para cada casa, por todo lado, enquanto passava. -- O que passa hoje no Canal 4; Canal 7; Canal 9? Para onde estão correndo os "cow-boys", e onde está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a situação?
A rua silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra movendo-se, como a sombra de um falcão, no meio de uma planície. Fechou os olhos, e permaneceu imóvel, gelado. Podia imaginar-se no meio de uma planície, numa pradaria americana, sem ventos, inverno, sem qualquer casa num raio de mil milhas - só leitos secos de rios, como aquelas ruas.
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-- E agora, o que temos? -- perguntou para as casas, olhando o relógio de pulso -- Oito e meia? Hora de uma dúzia de episódios de assassínios? Um concurso? Um musical? Um comediante tropeçando e caindo do palco?
Terá ouvido um murmúrio de risos, vindo de uma das casas brancas ao luar? Hesitou, mas continuou, quando nada mais aconteceu. Tropeçou numa irregularidade maior do passeio. O cimento estava a desaparecer, sob flores e mato. Em dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara outra pessoa passeando, nunca, nem uma só vez. Chegou a um cruzamento deserto, onde duas avenidas principais atravessavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insectos, e um incessante mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo dos tubos de escape, corriam para casa, nas mais diversas direcções. Mas agora, estas estradas, eram como os leitos de rios secos no Verão, banhados pelo luar.
Virou numa rua secundária, de regresso a casa. Estava a um quarteirão de chegar, quando, subitamente, um carro solitário dobrou a esquina e fez incidir um forte cone de luz branca sobre ele. Deteve-se, aturdido, como uma borboleta, atordoado pela luz, mas por ela atraído.
Uma voz metálica advertiu-o:
-- Fique onde está! Não se mova!
Parou.
-- Levante as mãos!
-- Mas... – disse ele.
-- Mãos para cima! Ou atiramos!
A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade de três milhões de habitantes, restava só um carro de polícia, não era isso? Já havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido cortada de três para um carro. O crime estava a desaparecer; não havia necessidade de polícia, excepto este carro solitário vagueando pelas ruas desertas.
-- O seu nome? -- disse o carro, num chiado metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte nos seus olhos.
-- Leonard Mead -- respondeu.
-- Mais alto!
- Lonard Mead!
-- Negócio, ou profissão?
-- Acho que me pode considerar um escritor.
-- Sem profissão -- disse o carro-patrulha, como que falando sozinho. A luz mantinha-o fixado como um espécime de museu, com uma agulha espetada no meio do peito.
-Pode-se dizer-se assim -- afirmou o Sr. Mead. Havia anos que não escrevia. Já não se vendiam livros e revistas. Tudo continuava como sempre nas casas-túmulos, à noite, pensou. Os túmulos, mal iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como os mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca tocando o seu íntimo.
-- Sem profissão -- chiou a voz fonográfica. – O que está a fazer cá fora?
-- A passear -- disse Leonard Mead.
-- A passear?
-- Só a passear -- disse, simplesmente, percorrido por um arrepio.
-- Passeando, passeando, passeando?
-- Sim, senhor.
-- Indo para onde? Para quê?
-- Para apanhar ar. Passeando para ver.
- A sua morada.
-- Onze, Sul, rua Saint James.
-- E não há ar na sua casa; o senhor não tem ar condicionado, Sr. Mead?
-- Sim.
-- E tem uma tela visora, na sua casa?
-- Não.
-- Não? -- Houve uma interrupção crepitante, que em si era já uma acusação.
-- É casado, Sr. Mead?
-- Não.
-- Não casado -- disse a voz policial atrás do facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as casas escuras e silenciosas.
-- Ninguém me quis -- disse Leonard Mead, sorrindo.
-- Não fale, a menos que seja interpelado!
Leonard Mead esperou, sob a fria noite.
-- Apenas passeando, Sr. Mead?
- Mas ainda não explicou com que propósito.
-- Já expliquei; para apanhar ar, ver, e simplesmente pelo prazer de andar.
-- Já fez isso muitas vezes?
-- Todas as noites, há anos.
O carro-patrulha estava estacionado no meio da rua, com sua garganta de rádio zumbindo fracamente.
-- Bem, Sr. Mead -- disse.
-- Isso é tudo? -- perguntou, polidamente.
-- Sim -- respondeu a voz. -- Por aqui. -- Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da polícia escancarou-se. -- Entre.
- Olhe lá, eu não fiz nada!
-- Entre.
-- Protesto.
-- Sr. Mead.
Avançou como um homem subitamente embriagado. Ao passar pela janela dianteira do carro, olhou para o interior. Como esperava, não havia ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.
-- Entre.
Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era uma pequena cela, uma pequena cela escura, com grades. Cheirava a aço rebitado e a anti-séptico forte; um intenso odor higiénico, metálico. Nada era macio, ali dentro.
-- Se tivesse uma esposa que lhe desse um álibi -- disse a voz de aço. -- Mas...
-- Para onde me vai levar?
O carro hesitou, ou melhor, houve um zumbido abafado, como se a informação, algures, fosse dada por cartões perfurados, e olhos eléctricos -- Ao Centro Psiquiátrico de Pesquisa sobre Tendências Regressivas.
Entrou. A porta fechou-se com um som abafado. O carro da polícia rodou pelas avenidas, a meio à noite, com os faróis acesos.
Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha todas as luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela, quadrada e quente na fria escuridão.
- Aquela é minha casa -- disse Leonard Mead.
Ninguém respondeu.
O carro foi pelas ruas vazias, como leitos de rios secos, afastando-se, deixando as ruas vazias, com os seus passeios vazios, sem som nem movimento, na fria noite de Novembro.
Extraído de E de Espaço © 1978 by Hemus-Livraria Editora Ltda -Título original: S is for Space © 1966 by Ray Bradbury
Quarta-feira, 21 de Julho de 2010
O QUE FOI SEPULTADOMiguel de UnamunoA mudança de comportamento sofrida pelo meu amigo, era extraordinária. Um rapaz jovial, espirituoso e despreocupado, transformara-se num homem tristonho, taciturno e excessivamente escrupuloso. Eram frequentes os seus momentos de abstracção e, durante esses momentos dir-se-ia que o seu espírito viajava por caminhos de outro mundo. Um dos nossos amigos, leitor e decifrador assíduo de Browning, recordando a estranha composição em que este nos fala da vida de Lázaro depois de ressuscitado, costumava dizer que o pobre Emilio visitara a morte. E fizemos todas as diligências para adivinhar a causa daquela misteriosa mudança de feitio; mas foram diligências infrutíferas.
Contudo, de tal modo e com tal insistência o assediei que, finalmente, um dia, deixando transparecer o esforço que custa tomar uma resolução difícil e muito reprimida, subitamente me disse: «Pois bem, vais saber o que me aconteceu, mas exijo que, por tudo o que te seja mais sagrado, não o contes a ninguém enquanto eu não tiver voltado a morrer.» Prometi-lho com toda a solenidade e levou-me à sua sala de estudo, onde nos fechámos.
Depois da sua transformação, eu não voltara a entrar naquela divisão. Nada fora modificado, embora agora me parecesse mais em consonância com o dono. Por momentos pensei que fora aquela sua salinha preferida que o transformara de forma tão surpreendente. A sua velha e ampla poltrona de couro, com os seus grandes braços, pareceu-me assumir um novo sentido. Estava a examiná-la quando Emilio, depois de ter fechado cuidadosamente a porta, me disse, apontando o cadeirão:
- Foi ali que tudo aconteceu.
Olhei-o sem perceber.
Indicou-me que me sentasse na sua frente, numa cadeira que estava do outro lado da sua pequena secretária de trabalho, acomodou-se no seu cadeirão e começou a tremer. Eu não sabia o que fazer. Por duas ou três vezes tentou começar a falar e outras tantas foi obrigado a desistir. Estive quase a propor-lhe que esquecesse a sua confissão, mas a curiosidade foi mais forte do que a piedade; é sabido que a curiosidade é uma das coisas que mais contribuem para a crueldade do homem. Permaneceu um momento com a cabeça entre as mãos e os olhos baixos; sacudiu-se depois, como quem toma uma súbita decisão, e começou:
- Bem, tu não vais acreditar numa palavra sequer do que te vou contar, mas isso não interessa. Contando-to, libertar-me-ei de um grande peso, e isso basta-me. – Não me lembro do que lhe respondi, e prosseguiu:
- Há coisa de um ano e meio, meses antes do mistério, caí doente de terror. A doença não se me notava nada, nem tinha qualquer manifestação exterior, embora me fizesse sofrer horrivelmente. Tudo me metia medo e me parecia envolver numa atmosfera de terror. Pressentia vagos perigos. Sentia permanentemente a invisível presença da morte, da verdadeira morte, ou seja, do total aniquilamento. Acordado, ansiava porque chegasse a hora de me deitar para dormir e, uma vez na cama, atacava-me o temor de que o sono se apossasse de mim para sempre. Era uma vida insuportável, terrivelmente insuportável. E nem sequer me sentia com força de vontade para me suicidar, coisa que, pensava eu na altura, seria uma solução. Cheguei a temer pelo meu juízo…
- E por que não consultaste um especialista? – perguntei só para dizer alguma coisa.
- Tinha medo disso, como tinha de tudo. E este medo foi crescendo de tal modo, que cheguei ao ponto de passar dias inteiros neste quarto e neste cadeirão onde agora estou sentado, com a porta fechada, e olhando para trás a cada momento. Tinha a certeza de que a situação não podia prolongar-se e que se aproximava uma catástrofe ou lá o que fosse. E, com efeito, aconteceu.
Neste ponto, deteve-se por momentos, parecendo hesitar:
- Não te admires de eu hesitar – prosseguiu – porque aquilo que vais ouvir nunca o disse sequer a mim próprio. O medo era já algo que me oprimia por todos os lados, que me punha um nó na garganta, ameaçando fazer estoirar o coração e a cabeça. Chegou um dia, em sete de Setembro, em que acordei no paroxismo do terror; o corpo e o espírito entorpecidos. Preparei-me para morrer de medo. Como todos os dias, fechei-me aqui, sentei-me onde agora estou sentado e comecei a invocar a morte. E, como é natural, ela chegou – Notando o meu olhar, acrescentou tristemente: - Sim, já sei o que pensas, mas não me importo. – E prosseguiu: - Estando aqui sentado, com a cabeça entre as mãos e os olhos fixos num ponto impreciso, para além da superfície desta secretária, senti que a porta era aberta e que um homem entrava cautelosamente. Não quis erguer os olhos. Ouvia as batidas do coração, mal conseguia respirar. O homem deteve-se e ficou aí, por detrás dessa cadeira onde estás sentado, de pé e, sem dúvida, fitando-me. Passado um bocado, decidi-me a erguer os olhos e a vê-lo. O que então me percorreu foi indescritível; não existe para o exprimir nenhuma palavra na língua dos homens que morrem apenas uma vez. Quem estava ali, de pé, diante de mim, era eu, eu mesmo, pelo menos em imagem. Imagina que estando diante de um espelho, a imagem que de ti nele se reflecte, se solta, ganha corpo e te cai em cima…
- Sim, uma alucinação… – murmurei – Disso já falaremos – disse, e continuou:
- Mas a imagem do espelho ocupa o lugar onde estás e segue os teus movimentos, enquanto aquele meu eu de fora estava de pé, enquanto o eu de dentro, permanecia sentado. Por fim, o outro sentou-se também, onde tu te sentas, colocou os dedos sobre o tampo da secretária, como tu os tens, e ficou a olhar-me, como tu agora me olhas.
Não consegui reprimir um estremecimento ao ouvir isto e ele, tristemente, disse-me:
- Não, não tenhas tu medo também; eu sou pacífico. – E continuou:
- Estivemos assim por um momento, olhando-nos mutuamente nos olhos, quer dizer, estive um momento olhando-me nos olhos. O terror transformara-se noutra coisa muito estranha e que não sou capaz de te definir; era o cúmulo do desespero resignado. Ao cabo de pouco tempo senti que o chão me desaparecia sob os pés, que o cadeirão se dissolvia, que o ar se rarefazia, tudo o que o meu olhar abrangia, incluindo o outro eu, se iam esfumando, e ao ouvir o outro murmurar muito baixinho e com os lábios fechados: «Emilio. Emilio», senti a morte. E morri.
Não sabia o que fazer ao ouvi-lo dizer isto. Senti a tentação de fugir, mas a curiosidade venceu o meu medo. E ele continuou:
- Quando, pouco tempo depois, voltei a mim, quer dizer, quando, pouco tempo depois, voltei ao outro, quer dizer, quando ressuscitei, encontrei-me sentado aí, onde te encontras agora sentado e onde o outro se sentara antes, com os cotovelos apoiados na mesa e a cabeça entre as palmas das mãos, olhando-me a mim mesmo, que estava onde agora estou. A minha consciência, o meu espírito, passara de um para o outro, do corpo primitivo para a sua exacta reprodução. E vi-me, ou vi o meu anterior corpo, lívido e rígido, quer dizer, morto. Assistira à minha própria morte. E limpara-se-me a alma daquele estranho terror. Estava triste, muito triste, abismalmente triste, mas sereno e sem medo de nada. Compreendi que teria de fazer alguma coisa; não podia ficar assim, com aquele cadáver do meu passado. Com toda a tranquilidade reflecti sobre o que me convinha fazer. Levantei-me dessa cadeira, e tomando o meu pulso, quer dizer, tomando o pulso ao outro, convenci-me de que já não vivia. Saí do escritório, deixando-o aqui encerrado, desci ao quintal e, sob qualquer pretexto, comecei a abrir uma grande cova. E bem sabes como sempre gosteis de fazer exercício no quintal. Dispensei os criados e esperei pela noite. E quando a noite chegou, carreguei o meu cadáver às costas e enterrei-o na cova. O pobre cão olhava-me com olhos de terror, mas de terror humano; era, pois, o seu olhar um olhar humano. Afaguei-o, dizendo-lhe: não compreendemos nada do que se passa amigo, e no fundo isto não é mais misterioso do que outra coisa qualquer…
- Parece-me uma reflexão demasiado filosófica para ser dirigida a um cão – disse-lhe.
- Porquê? – perguntou – ou julgas que a filosofia humana é mais profunda do que a canina?
- Julgo é que não entenderia nada.
- Nem tu, e não és cão!
- Homem, claro que entendo.
- Claro, e julgas-me louco… – e vendo que me calava, acrescentou:
- Agradeço-te esse silêncio. Nada detesto mais do que a hipocrisia. E quanto a isso das alucinações, devo dizer-te que tudo o que apreendemos mais não são do que alucinações, todas as nossas impressões. A diferença é de ordem prática. Se caminhas por um deserto, consumido pela sede e de repente ouves o murmúrio da água de uma fonte e vês a água, tudo isso não passa de uma alucinação. Mas se nela mergulhas a boca e bebes e a sede se apaga, chamas a esta alucinação uma impressão verdadeira, de realidade. O que significa que o valor das nossas percepções se mede pelo seu efeito prático. E pelo seu efeito prático, efeito que pudeste observar por ti mesmo, é segundo calculo o que aqui me sucedeu e acabo de te contar. Porque vês bem que eu, sendo o mesmo, sou, no entanto, outro.
- Isso é evidente…
- Desde então, para mim, as coisas continuam a ser as mesmas, mas vejo-as de outra maneira, com outro sentimento. É como se o tom, o timbre, de tudo tivesse mudado. Vós julgais que fui eu quem mudou, a mim parece-me que o que mudou foi todo o resto.
- Como caso de psicologia… murmurei.
- De psicologia? E de metafísica experimental.
- Experimental? – Exclamei.
- Acho que sim. Mas falta ainda uma coisa. Vem comigo.
- Saímos da salita e levou-me a um canto do quintal. Comecei a tremer como se estivesse febril e ele, observando-me, disse:
- Estás a ver? Estás a ver? Também tu! Tem coragem, racionalista!
Verifiquei então que transportava uma enxada consigo. Utilizou-a para cavar, enquanto eu continuava pregado ao chão por um estranho sentimento, misto de terror e de curiosidade. Ao cabo de um momento, ficaram a descoberto a cabeça e parte dos ombros de um cadáver humano, quase um esqueleto. Apontou-o com dedo, dizendo-me:
- Olha para mim!
Não sabia o que fazer ou o que dizer. Voltou a tapar a cova. Eu não me mexia.
- O que se passa contigo, homem? – Disse, sacudindo-me o braço.
Julguei despertar de um pesadelo. Olhei-o de uma forma que devia ser o cúmulo do espanto e do terror – Sim – disse – agora pensas num crime; é natural. Mas ouviste falar de alguém que tenha desaparecido sem que se saiba do seu paradeiro? Achas possível haver um crime assim sem que se descubra? Acreditas que sou um criminoso?
- Eu não acredito em nada – respondi-lhe.
- Agora sim, falaste verdade: tu não acreditas em nada, não consegues explicar seja o que for, começando pelas coisas mais simples. Vós, os que vos considerais sãos, não tendes outro instrumento que não seja a lógica e, desse modo, viveis às escuras…
- Muito bem – interrompi-o – e tudo isto, o que significa?
- Lá começamos nós! Já estás à procura da solução ou da moralidade da história. Pobres loucos! Pensais que o mundo é uma charada ou hieróglifo cuja decifração é preciso encontrar. Não, homem, não; isto não tem qualquer solução, não é uma adivinha, nem se trata de achar qualquer simbolismo. Isto sucedeu tal e qual te contei e, se não queres acreditar, é lá contigo.
Depois de Emilio me ter contado isto e até à sua morte, voltei a vê-lo muito poucas vezes, pois evitava a sua presença. Metia-me medo. Continuou com o seu feitio mudado, mas levando uma vida regular e sem dar o menor motivo para que fosse considerado louco. A única coisa que fazia era rir-se da lógica e da realidade. Morreu serenamente de pneumonia, com grande coragem. Entre os seus papéis deixou um relato circunstanciado de tudo o que me narrara e um tratado sobre a alucinação. Para nós foi sempre um mistério a existência daquele cadáver no canto do quintal, existência que se pôde comprovar.
No tratado a que faço referência, defendia, segundo me disseram, que a muitas, a muitíssimas pessoas lhes acontecem durante a vida coisas transcendentes, misteriosas, inexplicáveis, mas que não se atrevem a revelar com o receio de ser tomados por loucos. «A lógica – diz – é uma instituição social e aquilo a que se chama loucura uma coisa completamente íntima e privada. Se pudéssemos ler as almas daqueles que nos rodeiam, veríamos que vivemos rodeados por um mundo de mistérios tenebrosos, mas palpáveis.»
(Extraído de Contra esto y aquello, tradução de Carlos Loures)
Terça-feira, 20 de Julho de 2010
O GUARDANAPO DOS POETASGuillaume ApollinaireSituado no limite da vida, nos confins da arte, Justin Prerogue era pintor. Uma amiga vivia com ele e era visitado por poetas. Cada um, por sua vez, jantava no atelier, onde o destino colocara no tecto percevejos em vez de estrelas.
Havia quatro convivas que nunca se encontravam na mesa.
David Picard vinha de Bancerre; descendia de uma família judaica cristianizada, como há tantas na cidade.
Leonard Delaisse, tuberculoso, escarrava a sua vida de inspirado com uma expressão que era de morrer a rir.
George Ostreole, com olhos inquietos, meditava, como outrora Hércules, entre as entidades do beco.
Jaime Saint-Felix sabia muitas histórias; a sua cabeça era capaz de dar a volta aos ombros, como se o pescoço estivesse aparafusado no corpo. E os seus versos eram admiráveis.
As refeições eram intermináveis e o mesmo guardanapo servia, um por um, aos quatro poetas, mas, sobre isso, nada se lhes dizia.
O guardanapo, pouco a pouco, foi ficando sujo. Eis o amarelo do ovo junto a um rastilho sombrio de espinafre. Esta é a curva de uma boca avinhada e estas cinco marcas cinzentas foram deixadas pelos dedos de uma mão em repouso. Uma espinha de peixe deixou a figura de uma lança. E a cinza do cigarro escurece certas partes mais do que outras.
*
- David, olha o teu guardanapo – dizia a amiga de Justin Prerogue.
- É preciso comprar guardanapos – dizia Justin Prerogue. – Pensa nisso quando recebermos.
- O teu guardanapo está sujo, David – dizia a amiga de Justin Prerogue. – Eu mudo-o da próxima vez. A lavadeira não apareceu esta semana.
- Leonard, olha o teu guardanapo – dizia a amiga de Justin Prerogue. – Podes escarrar no caixote do carvão. Como o teu guardanapo está sujo! Eu mudo-o logo que a lavadeira trouxer a roupa.
- Leonard quero fazer o teu retrato escarrando – dizia Justin Prerogue – gostaria até de fazer uma escultura.
*
- George, tenho vergonha de te dar sempre o mesmo guardanapo – dizia a amiga de Justin Prerogue. – Não sei o que aconteceu com a lavadeira, que não há maneira de me trazer a roupa.
*
- Jaime Saint-Felix, sou obrigada a pôr-te ainda o mesmo guardanapo. Não tenho outro hoje – dizia a amiga de Justin Prerogue.
E o pintor fazia rodar a cabeça do poeta durante todo o jantar, escutando muitas histórias.
*
Passaram as estações. Os poetas serviam-se, um por um, do guardanapo e dos admiráveis jantares. Leonard Delaisse escarrava a sua vida mais comicamente ainda e David Picard começou também a escarrar. O guardanapo envenenado infectou um por um; depois de David, George Ostreole e Jaime Saint-Felix, mas eles não o sabiam.
E, tal como uma ignóbil compressa de hospital, o guardanapo ia-se manchando do sangue que vinha dos lábios dos poetas. E os jantares não terminavam.
*
No começo do Outono, Leonard Delaisse escarrou o que lhe restava de vida. Em diferentes hospitais, sacudidos pela voluptuosidade, os outros poetas morreram também, com poucos dias de intervalo. E os quatro deixaram poemas tão belos que pareciam encantados.
Atribuíram as mortes, não à alimentação, mas à falta de alimentação e às insónias líricas. Na verdade, como poderia um único guardanapo matar em tão pouco tempo quatro poetas incomparáveis?
*
Mortos os convivas, o guardanapo tornou-se inútil. A amiga de Justin Prerogue quis guardá-lo no cesto da roupa suja. Dobrara-o pensando:
- Está mesmo muito sujo e parece que tem mau cheiro.
Mas, desdobrado o guardanapo, a amiga de Justin Prerogue, surpreendida, chamou o amigo, maravilhada:
- É um verdadeiro milagre! Este guardanapo tão sujo, que exibes com tanta complacência, apresenta, graças à porcaria coagulada e às diversas cores, os traços do nosso amigo que morreu, David Picard.
- Não é? – murmurou a amiga de Justin Prerogue.
Em silêncio, ambos examinaram por alguns instantes a miraculosa imagem e, depois, lentamente, voltaram o guardanapo.
Empalideceram, pois imediatamente surgiu o espantoso aspecto de morrer a rir de Leonard Delaisse, esforçando-se por escarrar.
E os quatro cantos do guardanapo apresentaram o mesmo prodígio.
Justin Prerogue e a sua amiga viram George Ostreole indeciso e Jaime Saint-Felix prestes a contar uma história.
- Larga o guardanapo – disse, bruscamente, Justin Prerogue.
O guardanapo caiu no chão.
Justin Prerogue e a sua amiga circularam durante muito tempo em torno do guardanapo, como astros em redor do seu sol. E esta Santa Verónica com o seu quádruplo olhar, convidava-os a fugir aos limites da arte, aos confins da vida.
(Extraído do livro «Maravilhas do Conto Fantástico», organizado por Fernando Correia da Silva, Editora Cultrix, São Paulo, 1968, com adaptação à norma portuguesa)
Segunda-feira, 19 de Julho de 2010
O PEÃO
Ray BradburyPenetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de Novembro, pousar os pés sobre o sólido passeio de cimento, pisar as fendas com ervas, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa esquina de um cruzamento, olhando as ruas banhadas pelo luar nas quatro direcções, decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho, neste mundo de 2053 a.D., ou, como se estivesse só. Tomada uma decisão definitiva, escolhido um caminho, começaria a andar, soltando baforadas de ar congelado à sua frente, como o fumo de um cigarro. Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com as suas janelas escuras; era como caminhar por um cemitério, pois só leves clarões de luz fantasmagórica eclodiam por detrás das janelas. Súbitos e cinzentos espectros pareciam surgir sobre as paredes das salas, onde uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma janela num edifício-túmulo estava ainda aberta.
O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia, olhava, e continuava a marcha, os pés sem fazer ruído no pavimento irregular. Há muito que, prudentemente, passara a usar sapatos de ténis para passear à noite, porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam a sua caminhada com latidos, se usasse calçado com sola de couro, as luzes poderiam acender-se, e rostos aparecer, toda uma rua se alvoroçar com a passagem de um vulto solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de Novembro.
Nesta noite, em particular, tomara a direcção Oeste, rumo ao mar, invisível. Havia um frio cristalino no ar que cortava o nariz e fazia os pulmões arder por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava com prazer o calçado macio empurrando delicadamente as folhas de Outono, assobiava frio e baixinho, entre dentes, arrancando ocasionalmente uma folha de passagem, examinando o desenho esqueletal, à luz de um raro candeeiro público, enquanto caminhava, aspirando seu odor ferruginoso.
-- Ó da casa -- murmurava para cada casa, por todo lado, enquanto passava. -- O que passa hoje no Canal 4; Canal 7; Canal 9? Para onde estão correndo os "cow-boys", e onde está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a situação?
A rua silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra movendo-se, como a sombra de um falcão, no meio de uma planície. Fechou os olhos, e permaneceu imóvel, gelado. Podia imaginar-se no meio de uma planície, numa pradaria americana, sem ventos, inverno, sem qualquer casa num raio de mil milhas - só leitos secos de rios, como aquelas ruas.
-- E agora, o que temos? -- perguntou para as casas, olhando o relógio de pulso -- Oito e meia? Hora de uma dúzia de episódios de assassínios? Um concurso? Um musical? Um comediante tropeçando e caindo do palco?
Terá ouvido um murmúrio de risos, vindo de uma das casas brancas ao luar? Hesitou, mas continuou, quando nada mais aconteceu. Tropeçou numa irregularidade maior do passeio. O cimento estava a desaparecer, sob flores e mato. Em dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara outra pessoa passeando, nunca, nem uma só vez. Chegou a um cruzamento deserto, onde duas avenidas principais atravessavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insectos, e um incessante mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo dos tubos de escape, corriam para casa, nas mais diversas direcções. Mas agora, estas estradas, eram como os leitos de rios secos no Verão, banhados pelo luar.
Virou numa rua secundária, de regresso a casa. Estava a um quarteirão de chegar, quando, subitamente, um carro solitário dobrou a esquina e fez incidir um forte cone de luz branca sobre ele. Deteve-se, aturdido, como uma borboleta, atordoado pela luz, mas por ela atraído.
Uma voz metálica advertiu-o:
-- Fique onde está! Não se mova!
Parou.
-- Levante as mãos!
-- Mas... – disse ele.
-- Mãos para cima! Ou atiramos!
A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade de três milhões de habitantes, restava só um carro de polícia, não era isso? Já havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido cortada de três para um carro. O crime estava a desaparecer; não havia necessidade de polícia, excepto este carro solitário vagueando pelas ruas desertas.
-- O seu nome? -- disse o carro, num chiado metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte nos seus olhos.
-- Leonard Mead -- respondeu.
-- Mais alto!
-- Leonard Mead!
-- Negócio, ou profissão?
-- Acho que me pode considerar um escritor.
-- Sem profissão -- disse o carro-patrulha, como que falando sozinho. A luz mantinha-o fixado como um espécime de museu, com uma agulha espetada no meio do peito.
-- Pode-se dizer-se assim -- afirmou o Sr. Mead. Havia anos que não escrevia. Já não se vendiam livros e revistas. Tudo continuava como sempre nas casas-túmulos, à noite, pensou. Os túmulos, mal iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como os mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca tocando o seu íntimo.
-- Sem profissão -- chiou a voz fonográfica. – O que está a fazer cá fora?
-- A passear -- disse Leonard Mead.
-- A passear?
-- Só a passear -- disse, simplesmente, percorrido por um arrepio.
-- Passeando, passeando, passeando?
-- Sim, senhor.
-- Indo para onde? Para quê?
-- Para apanhar ar. Passeando para ver.
-- A sua morada.
-- Onze, Sul, rua Saint James.
-- E não há ar na sua casa; o senhor não tem ar condicionado, Sr. Mead?
-- Sim.
-- E tem uma tela visora, na sua casa?
-- Não.
-- Não? -- Houve uma interrupção crepitante, que em si era já uma acusação.
-- É casado, Sr. Mead?
-- Não.
-- Não casado -- disse a voz policial atrás do facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as casas escuras e silenciosas.
-- Ninguém me quis -- disse Leonard Mead, sorrindo.
-- Não fale, a menos que seja interpelado!
Leonard Mead esperou, sob a fria noite.
-- Apenas passeando, Sr. Mead?
-- Sim.
-- Mas ainda não explicou com que propósito.
-- Já expliquei; para apanhar ar, ver, e simplesmente pelo prazer de andar.
-- Já fez isso muitas vezes?
-- Todas as noites, há anos.
O carro-patrulha estava estacionado no meio da rua, com sua garganta de rádio zumbindo fracamente.
-- Bem, Sr. Mead -- disse.
-- Isso é tudo? -- perguntou, polidamente.
-- Sim -- respondeu a voz. -- Por aqui. -- Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da polícia escancarou-se. -- Entre.
-- Olhe lá, eu não fiz nada!
-- Entre.
-- Protesto.
-- Sr. Mead.
Avançou como um homem subitamente embriagado. Ao passar pela janela dianteira do carro, olhou para o interior. Como esperava, não havia ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.
-- Entre.
Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era uma pequena cela, uma pequena cela escura, com grades. Cheirava a aço rebitado e a anti-séptico forte; um intenso odor higiénico, metálico. Nada era macio, ali dentro.
-- Se tivesse uma esposa que lhe desse um álibi -- disse a voz de aço. -- Mas...
-- Para onde me vai levar?
O carro hesitou, ou melhor, houve um zumbido abafado, como se a informação, algures, fosse dada por cartões perfurados, e olhos eléctricos -- Ao Centro Psiquiátrico de Pesquisa sobre Tendências Regressivas.
Entrou. A porta fechou-se com um som abafado. O carro da polícia rodou pelas avenidas, a meio à noite, com os faróis acesos.
Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha todas as luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela, quadrada e quente na fria escuridão.
- Aquela é minha casa -- disse Leonard Mead.
Ninguém respondeu.
O carro foi pelas ruas vazias, como leitos de rios secos, afastando-se, deixando as ruas vazias, com os seus passeios vazios, sem som nem movimento, na fria noite de Novembro.
Extraído de E de Espaço © 1978 by Hemus-Livraria Editora Ltda -Título original: S is for Space © 1966 by Ray Bradbury
Sábado, 17 de Julho de 2010
Giovanni PapiniHá quatro dias, estando a escrever com uma ligeira irritação, algumas das páginas mais falsas das minhas memórias, ouvi bater levemente à porta, mas não me levantei nem respondi. As pancadas eram demasiado fracas e não gosto de lidar com tímidos.
No dia seguinte, à mesma hora, ouvi novamente bater; desta vez, as pancadas eram mais fortes e decididas. Mas também não quis abrir, pois não aprecio absolutamente nada os que se corrigem com demasiada pressa.
No terceiro dia, sempre à mesma hora, as pancadas foram repetidas de forma violenta e antes que pudesse levantar-me vi a porta abrir-se e entrar a medíocre figura de um homem bastante jovem, com o rosto um tanto afogueado e a cabeça coberta por cabelos ruivos e crespos, inclinando-se canhestramente, sem nada dizer. Mal viu uma cadeira, atirou-se-lhe para cima e como eu continuasse de pé indicou-me o cadeirão para que me sentasse. Tendo-lhe obedecido, julguei-me no direito de lhe perguntar quem era, pedindo-lhe num tom nada delicado, que me dissesse o nome e o motivo que o tinha levado a invadir o meu quarto. Mas o homem não se alterou e fez-me imediatamente compreender que, para já, desejava continuar a ser o que até então fora para mim:. um desconhecido.
- O motivo que me trouxe até ao senhor – continuou, sorrindo – está dentro da minha mala e dar-lho-ei a conhecer imediatamente.
Com efeito, apercebi-me de que trazia na mão uma pequena mala de couro amarelo-sujo, com guarnições de latão desgastado pelo uso, a qual abriu dela tirando um livro.
- Este livro – disse pondo-me diante dos olhos um grosso volume forrado a tela com grandes flores de um vermelho ferruginoso – contém uma história imaginária que criei, inventei, redigi e copiei. Em toda a minha vida, apenas escrevi isto e atrevo-me a supor que não lhe desagradará. Até agora apenas o conhecia de nome e só há uns dias uma mulher que o ama me disse que o senhor é um dos poucos homens que não tem medo de si mesmo e o único que teve a coragem de aconselhar a morte a muitos dos seus semelhantes. Por isso, pensei ler-lhe a minha história, que narra a vida de um homem fantástico ao qual acontecem as mais singulares e insólitas aventuras. Depois de a ter ouvido, dir-me-á o que devo fazer. Se a minha história lhe agradar, prometer-me-á tornar-me célebre no prazo de um ano; se não gostar, matar-me-ei dentro de vinte e quatro horas. Diga-me se aceita estas condições e eu começarei.
Compreendi que nada podia fazer senão manter a atitude passiva que tinha assumido até então e indiquei-lhe, com um gesto que não conseguiu ser amável, que o escutaria e faria tudo o que desejava.
“- Quem poderá ser – pensava para comigo – a mulher que me ama e que falou de mim a este homem? Nunca tivera conhecimento de que uma mulher me amasse e se assim fosse não o teria tolerado, pois não há situação mais incómoda e ridícula que a dos ídolos de um qualquer animal.” O desconhecido arrancou-me a estes pensamentos com um bater de pés, pouco eloquente, mas claro. O livro estava aberto e a minha atenção era considerada necessária.
O homem começou a leitura. As primeira palavras escaparam-se-me; dei mais atenção às seguintes. Depressa apurei o ouvido e senti um leve calafrio nas costas. Dez ou vinte segundos depois o meu rosto ficou vermelho; as pernas moveram-se-me nervosamente; decorridos mais dez segundos, levantei-me. O desconhecido suspendeu a leitura e fitou-me, interrogando-me humildemente dom os olhos. Olhei-o do mesmo modo e inclusivamente com ar de súplica, mas estava demasiado aturdido para o ,mandar embora. Disse-lhe simplesmente, como qualquer idiota sociável:
- Faça o favor de continuar.
A extraordinária leitura prosseguiu. Não conseguia estar quieto no cadeirão e os calafrios percorriam-me não só as costas, mas também a cabeça e o corpo inteiro. Se tivesse podido ver o meu rosto no espelho talvez me tivesse rido e tudo tivesse passado, pois provavelmente reflectia um espanto abjecto e um indeciso furor. Tentei, por um momento, não continuar a escutar as palavras do calmo leitor, mas só consegui ficar mais confuso; escutei integralmente, palavra por palavra, pausa após pausa, a história que o homem lia com a sua cabeça ruiva inclinada sobre o bem encadernado volume. O que podia ou devia eu fazer numa circunstância tão especial? Agarra o maldito leitor, morder-lhe e atirá-lo para fora do quarto como um inoportuno fantasma?
Porém, por que motivo iria fazer tal coisa? No entanto, aquela leitura produzia-me um inexprimível aborrecimento, uma penosíssima impressão de sonho absurdo e desagradável, sem esperança de poder acordar. Julguei por momentos ir cair num furor convulsivo e vislumbrei na minha imaginação um enfermeiro de uniforme branco que me punha um colete de forças, com infinitas e excessivas precauções.
Contudo, finalmente acabou a leitura. Não me lembro de quantas horas durou, mas, ainda mergulhado na minha confusão, reparei que o leitor tinha a voz rouca e a testa húmida de suor. Depois de ter fechado o livro e de o ter guardado na sua mala, o desconhecido fitou-me com ansiedade, embora o seu olhar não tivesse já a ansiedade do princípio. O meu cansaço era tão grande que ele próprio o adivinhou e o seu pasmo aumentou vendo que esfregava um olho e não sabia o que lhe responder. Parecia-me naquela altura que nunca mais poderia voltar a falar e até mesmo as coisas mais simples que me rodeavam se apresentavam aos meus olhos tão estranhas e hostis que quase experimentei uma sensação de repugnância. Tudo isto parece demasiado vil e vergonhoso; penso o mesmo e não tenho qualquer espécie de indulgência para a minha perturbação. Porém, o motivo do meu desequilíbrio era de muito peso: a história que aquele homem tinha lido era a narração pormenorizada e completa de toda a minha vida íntima, interior e exterior. Durante aquele tempo, escutara a minuciosa narrativa, fiel, inexorável de tudo o que sentira, sonhara e fizera desde que vim ao mundo. Se um ser divino, leitor de corações e testemunha invisível, tivesse estado a meu lado desde o meu nascimento e tivesse escrito o que observou dos meus pensamentos e acções, teria redigido uma história perfeitamente igual à que o leitor desconhecido declarava ser imaginária e por ele inventada. As coisas mais pequenas e secretas eram recordadas e nem sequer um sonho ou um amor ou uma vileza oculta, um calculismo ignóbil, escaparam ao escritor. O terrível livro continha até factos e pensamentos que esquecera e que apenas recordara ao escutá-lo.
A minha confusão e receio provinham desta impecável exactidão e deste inquietante escrúpulo. Nunca vira aquele homem; aquele homem afirmava nunca me ter visto. Eu vivia muito solitário a uma cidade a que ninguém vem se a isso não for forçado pelo destino ou pela necessidade. A nenhum amigo, se é que ainda algum me restava, confiara as minhas aventuras de caçador furtivo, as minhas viagens de salteador de almas, as minhas ambições de pesquisador do inverosímil. Nunca escrevera, nem para mim nem para os outros, uma relação completa e sincera da minha vida e precisamente por aqueles dias estava fabricando fingidas memórias para me ocultar dos homens, inclusivamente após a morte.
Quem, pois, podia ter dito a este visitante tudo o que narrara sem pudor e sem piedade no seu odioso livro forrado de papel antigo de cor ferruginosa? E afirmava ter inventado aquela história e apresentava-me, a mim, a minha vida inteira como se fosse uma história imaginária!
Encontrava-me terrivelmente perturbado e emocionado, mas de uma coisa estava certo: este livro não podia ser divulgado entre os homens. Mesmo que para tal aquele infeliz autor e leitor tivesse que morrer, não podia permitir que a minha vida fosse divulgada e conhecida no mundo, entre todos os meus impessoais inimigos. Esta decisão, que senti firme e sólida, no meu foro íntimo, começou a reanimar-me levemente. O homem continuava a fitar-me com um ar consternado, quase suplicante. Tinham decorrido apenas dois minutos desde que terminara a sua leitura e não parecia compreender o motivo da minha perturbação. Finalmente, consegui falar:
- Desculpe, senhor – perguntei – Assegura que esta história foi verdadeiramente inventada por si?
- Precisamente – respondeu o enigmático leitor, com ar mais tranquilo – pensei-a e imaginei-a durante muitos anos e fui fazendo retoques e alterações na vida do meu herói. No entanto, tudo é fruto da minha imaginação.
As suas palavras incomodavam-me cada vez mais, mas consegui ainda fazer outra pergunta:
- Diga-me, por favor, tem a certeza absoluta de não me ter encontrado antes de hoje? De nunca ter ouvido contar a minha vida a alguém que me conheça?
O desconhecido não pôde conter um sorriso de espanto ao ouvir as minhas palavras.
- Já lhe disse – respondeu – que até há pouco tempo apenas o conhecia de nome e que apenas há uns dias soube que costumava aconselhar a morte, mas nada mais sei sobre o senhor.
A sua condenação estava decidida, sendo necessário que não demorasse a ser executada.
- Continua disposto – perguntei-lhe com solenidade – a manter as condições por si mesmo estabelecidas antes de começar a leitura?
- Sem dúvida – respondeu com um leve tremor na voz -, não tenho outras portas a que bater e esta obra é a minha vida. Sinto que não poderia proceder de outro modo.
- Devo então dizer-lhe – acrescentei com a mesma solenidade, embora temperada por alguma melancolia – que a sua história é estúpida, aborrecida, incoerente e abominável. O seu herói, como lhe chama, não passa de um enfadonho malandrim que entediará qualquer leitor mais requintado. Não quero ser demasiado cruel acrescentando ainda mais pormenores.
Comprovei que o homem não esperava estas palavras e apercebi-me de que as suas pálpebras se fecharam instantaneamente. Porém, ao mesmo tempo reconheci que o seu poder sobre mim era equivalente à sua honestidade. Quase imediatamente reabriu os olhos, fitando-me sem medo e sem ódio.
- Quer acompanhar-me até lá fora? – perguntou-me com uma voz demasiado doce para ser natural.
- Com certeza – respondi, e depois de pôr o chapéu saíamos de casa sem falar.
O desconhecido continuava a levar na mão a sua mala de couro amarelo e segui-o, entorpecido, até à margem do rio que corria caudaloso e ruidosamente entre as negras muralhas de pedra, Olhando em redor e certificando-se de que não via ninguém com aspecto de salvador, voltou-se para mim dizendo:
-Desculpe-me se a minha leitura o aborreceu. Julgo que nunca mais incomodarei um ser vivo. Esqueça-se de mim tão depressa quanto possível.
E estas foram as suas últimas palavras, porque saltando agilmente o parapeito, com um rápido impulso, atirou-se ao rio com a sua mala. Debrucei-me para o ver mais uma vez, mas a água já o tinha recebido e coberto. Uma menina tímida e loura apercebera-se do rápido suicídio, mas não pareceu muito espantada e prosseguiu o seu caminho comendo avelãs. Regressei a casa depois de ter feio algumas tentativas inúteis. Mal entrei no meu quarto, estendi-me sobre a cama e adormeci sem muito esforço, abatido e alquebrado pelo inexplicável acontecimento.
Esta manhã acordei muito tarde e com uma estranha sensação. Parecia-me estar já morto e esperar apenas que me viessem sepultar. Tomei imediatamente providências para o meu funeral, fui pessoalmente à agência funerária para que nenhum pormenor seja esquecido. Espero que a todo o momento me tragam o caixão. Sinto pertencer já a outro mundo e todas as coisas que me rodeiam têm o indizível ar de coisas passadas, acabadas, sem qualquer interesse para mim.
Um amigo trouxe-me flores e disse-lhe que podia esperar para as colocar sobre a minha campa. Pareceu-me que sorria, mas os homens sorriem sempre daquilo que não compreendem.
(Tradução de Carlos Loures de «Storia completamente assurda», de Giovanni Papini, (in »La Riviere Ligure», 1906).
Sexta-feira, 16 de Julho de 2010
CRIMES EXEMPLARESde Max Aub« - Antes morta! – disse-me. E eu só quis fazer-lhe a vontade!»
«Sou barbeiro. É uma coisa que pode acontecer a qualquer um. Até me atrevo a dizer que sou um bom barbeiro. Cada um tem as suas manias. A mim, incomodam-me as borbulhas.
Foi assim: comecei a barbeá-lo calmamente, ensaboei-lhe o rosto com destreza, afiei a navalha no assentador, experimentei a suavidade do fio na palma da minha mão. Sou um bom barbeiro! Nunca desiludi ninguém. Além disso, aquele homem não tinha a barba muito cerrada. Mas tinha borbulhas. Reconheço que aquelas espinhazitas nada tinham de especial. Mas incomodam-me, põem-me nervoso, revolvem-me o sangue. Fiz a primeira passagem, sem problemas; na segunda sangrou um pouco. Não sei o que então me deu, mas acho que foi uma coisa natural, aumentei a ferida e depois, não pude resistir e, de um golpe, decepei-lhe a cabeça.»
«Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido aflorava o bordo do copo, levado pela acção violenta do utensílio de alumínio. (O copo era ordinário, o lugar barato, a colherzinha gasta, roída de tanto utilizada.) Ouvia-se o ruído do metal contra o vidro. Riz, riz, riz, riz. E o café com leite dando voltas e mais voltas, com uma concavidade no centro. Maelstrom. Turbilhão. Eu estava sentado na sua frente. O café estava cheio. O homem continuava a mexer e a remexer, imóvel, sorridente, olhando-me. Algo crescia dentro de mim. Olhei-o de tal maneira que se sentiu na obrigação de explicar:
- O açúcar ainda não se dissolveu.
Para mo provar, deu umas pancadinhas no fundo do copo. Voltou depois com energia redobrada a mexer metodicamente a beberagem. Voltas e mais voltas, sem descanso, e o ruído da colher no bordo do vidro. Raz, raz, raz. Sempre, sempre, sempre sem parar, eternamente. Volta e revolta e volta. Olhava-me sorrindo. Então, puxei da pistola e disparei.»
«Abri-a de alto a baixo, como se fosse uma rês, pois olhava indiferente o tecto enquanto fazíamos amor».
«Íamos como sardinhas em lata e aquele homem era um porco. Cheirava mal. Todo ele cheirava mal, sobretudo os pés. Garanto-lhe que não se podia suportar. Além disso tinha o colarinho da camisa negro de sujidade e o pescoço ensebado. E olhava-me. Uma coisa asquerosa. Ainda quis mudar de lugar. Pode não acreditar, mas aquele indivíduo seguiu-me. Era um cheiro a demónios e pareceu-me ver sair bichos da sua boca. Talvez o tenha empurrado com um pouco de força a mais. Agora não me culpem pelas rodas do autocarro lhe terem passado por cima!»
«Matei-o porque julguei que ninguém estava a ver.»
«Era tão feio, o pobre tipo que, cada vez que o encontrava, era como que um insulto. E tudo tem um limite.»
«Você nunca matou ninguém por tédio, por não saber o que fazer? É divertido.»
«Matei-o porque me doía a cabeça. E ele, zás, falava sem parar, sem descanso, sobre coisas que nada me interessavam. E mesmo que me interessassem. Ainda olhei seis vezes ostensivamente para o relógio: não fez caso. Creio que é um atenuante a tomar em consideração.»
«Era mais inteligente do que eu, mais rico do que eu, mais desenvolto do que eu; era mais alto do que eu, mais bonito, mais esperto; vestia melhor, falava melhor; se os senhores julgam que isto não são atenuantes, é porque sois tontos. Pensei sempre na maneira de me desfazer dele. Fiz mal em tê-lo envenenado: sofreu demasiado. Isso, lamento. Queria que morresse depressa.»
«Se o golo estava feito! Era só empurrar a bola para dentro da baliza, o guarda-redes estava batido… Chutou-a por cima do travessão! E aquele golo era decisivo! Aviávamos os sacanas do Nopalera. Se devido ao pontapé que lhe dei foi parar ao outro mundo, talvez lá aprenda a chutar como mandam as regras.»
«Era a sétima vez que me mandava copiar aquela carta. Tenho o meu diploma, sou uma dactilógrafa de primeira. E uma vez por um ponto final, que ele disse que devia ser ponto parágrafo, outra vez porque mudou um «talvez» por um «quiçá», outra porque trocou um b por um v, outra porque se lembrou de acrescentar um novo parágrafo, outras não sei porquê, o facto é que tive de a escrever sete vezes. E quando a levei, olhou-me com aqueles olhos hipócritas de chefe de administração: “Olhe, menina…”. Não o deixei acabar. Há que ter mais respeito pelos trabalhadores.»
«Matei-o porque não pensava como eu.»
«Matei-o porque me doía o estômago.»
«Matei-o porque lhe doía o estômago.»
«Tinha jurado fazê-lo ao próximo que voltasse a passar-me uma cautela da lotaria pela corcunda».
«Negou que eu lhe tivesse emprestado aquele quarto volume… E o buraco na prateleira da estante, como um nicho…»
«De mim ninguém se ri. Pelo menos esse, já não volta a rir-se.»
«Matei-o porque bebi o suficiente para o fazer.»
«Penso, logo existo, disse o tal homem famoso. As árvores do meu jardim existem, mas não creio que pensem, pelo que fica demonstrado que o senhor René não estava bom do juízo e que o mesmo acontece com outros seres: o meu sogro, por exemplo – existe, mas não pensa. Ou o meu editor, que pensa, mas não existe. E se pomos isto ao contrário, também não fica certo. Não existo porque penso ou penso porque existo. Pensar, pensa-se, existir é um mito. Eu não existo, sobrevivo, porque viver - aquilo a que se chama viver – só os que não pensam. Os que se metem a pensar, não vivem. A injustiça é por demais evidente. Bastaria que pensássemos para nos suicidarmos. Não; senhor Descartes: vivo, logo não penso, se pensasse não vivia, se vivesse não pensava, senhor… etc., etc. Se para viver fosse necessário pensar, estaríamos lúcidos. Mas, enfim, se os senhores estão convencidos de que assim é, estou inocente, completamente inocente, pois não penso nem quero pensar. Logo, se não penso não existo e, se não existo, como diabo posso ser responsável por essa morte?»
(Traduções de Carlos Loures, feitas a partir da edição da Espasa Calpe, Madrid, 1999.)
Quinta-feira, 15 de Julho de 2010
CASO 37 007 339 – 3º VIIIMário Henrique Leiria
Sector de Rigel(Crostol contra Pul-Tra)
Pul-Tra, rastejador polipoide de Algol-7, caixeiro viajante de máquinas de solidão, ao desembarcar no porto estelar de Troikalan em actividade profissional, foi abordado no bar do dito astroporto por Crostol, indivíduo insecto-voador, indígena do planeta, que delicadamente o convidou a tomar um recipiente de «Grum-Kvas VOP» como símbolo de boas vindas.
Pul-Tra, com dois tentáculos e extremo cuidado, pegou no insecto indígena e, em gesto ritual, arrancou-lhe cerimoniosamente os órgãos visuais.
Dado este acontecimento, foi detido para averiguações por um membro do Departamento Gravito-Sentencioso que gravitava de serviço no astroporto.
A queixa foi imediatamente apresentada por Brastol, membro do grupo reprodutivo de Crostol (5º sexo), baseada na alegação de destruição desnecessária praticada na pessoa de um indivíduo do citado grupo.
Processando-se em seguida a análise de Conjuntos, Circunstâncias e Condições, alegou a defesa que Pul-Tra, como todos os naturais de Algol-7, era de condição pacífica, sempre pronto a retribuir qualquer delicadeza recebida.
Dado que, por contingência psico-somática, todos os naturais dessa região prezam e consideram como o maior bem a solidão e a contemplação interna (zan-zan-dag), Pul-Tra, ele mesmo vendedor das mais requintadas máquinas de solidão produzidas pela sua raça, devolvera no melhor estilo a amabilidade de Crostol, libertando-o dos órgãos visuais e, assim, da presença de imagens externas inoportunas.
A acusação (Ministério Público – Comarca de Troikalan) no entanto, não aceitou esta argumentação, considerando que, como é sabido, os órgãos visuais dos indígenas de Troikalan são o elemento sustentador do equilíbrio sexual (5º sexo) dos grupos reprodutivos e a destruição desnecessária dos mesmos pode pôr em grave risco a imprescindível polinização das fecundações de grupo. A ignorância deste facto, disse, não pode de forma alguma servir como argumento para a absolvição do rastejador polipoide Pul-Tra, de Algol-7. Como fez notar, há outras maneiras de ser agradecido além de «andar por aí a vazar olhos» (sic).
A sentença (Sector de Rigel – Comarca de Troikalan) foi benigna, considerando como circunstância atenuante a boa-fé com que o acto fora praticado, embora a acusação tivesse protestado energicamente.
Pul-Tra foi sentenciado a suportar luz nos olhos directa e ininterruptamente durante 37 rotações algolianas (factor + 7), com pena suspensa por 3 ciclos de Rigel. Ao grupo reprodutivo de Crostol foram concedidos dois binóculos reprodutores extra e, como indemnização simbólica, a posse temporária, durante a pena suspensa, do apêndice caudo-solitário de Pul-Tra.
Pergunta-se aos estudantes atentos: foi a sentença coerente com os trâmites planetários em vigor (Sector de Rigel) ou houve abuso de poder?
(Casos de Direito Galático)TorahJeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente. Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro. No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê
.
(Contos do Gin-Tonic)Bus stopDeu uma corrida rápida e saltou para o autocarro no momento exacto em que a porta começava a fechar-se.
Sentiu a pancada atrás de si e ouviu a campainha.
O autocarro arrancou, talvez com violência excessiva. Agarrou-se ao varão metálico e respirou fundo, para aliviar o cansaço vindo da corrida inesperada.
Procurou as moedas necessárias no bolso das calças e entregou-as ao cobrador, ao passar o torniquete.
Deu uns passos pelo corredor central, deteve-se, deitou a mão à argola que lhe pendia por cima da cabeça para garantir o equilíbrio e olhou em volta. Nenhum lugar sentado.
Baixou os olhos. No chão parecia que alguém havia pisado flores e deixado uma pasta esmagada, viscosa, com vestígios de vermelho e amarelo. Escorregava, quando lhe passou com o pé por cima. Afastou-se um poco e mudou a mão para a argola da frente.
Os passageiros liam ou olhavam pela janela. Num silêncio pouco vulgar. Lá, no lado de fora do banco do fundo e com uma perna meio estendida para o corredor, um velho de longa barba ainda quase ruiva e um boné gasto de pala amachucada olhava para ele fixamente, impassível. Desviou os olhos com uma sensação de súbito desconforto que não conseguiu compreender.
Pela janela reparou que estava na Avenida da Liberdade. Do lado de lá dos vidros as pessoas moviam-se pelos passeios e os carros deslizavam num ruído que lhe chegava abafado. As casas, as árvores e o tempo iam ficando para trás.
Começou a admirar-se. Não havia paragens. Ninguém saía nem entrava. No entanto, como o autocarro ia realmente cheio, talvez fosse assim mesmo. Andam sempre a mudar os regulamentos, não há nada a fazer.
O autocarro dobrou a esquina e entrou por uma rua estreita, empedrada, escura. Que era aquilo? De um lado e doutro pequenos prédios de tijolo avermelhado, sujo, perfilavam-se, monótonos. As pessoas na rua eram poucas e pareciam caminhar com extrema cautela. Nenhum carro. Apenas o som insistente do motor do autocarro.
Sentiu-se inquieto. Desviou os olhos da rua. Um ressalto dos pneus fê-lo procurar o equilíbrio apoiando-se levemente com a mão esquerda, no ombro da menina que, no banco ao lado, lia uma revista muito colorida. A menina ergueu os olhos. Tristes. Uns cabelos exactamente negros e longos ladeavam-lhe o pequeno sorriso só esboçado. Baixou a cabeça e retomou a leitura da revista colorida.
Retirou a mão numa desculpa silenciosa e ficou ainda a olhar os cabelos negros que desciam sobre os ombros e tornavam a esconder o rosto da menina.
Depois, de novo inquieto, voltou a observar a rua.
Teve uma sensação repousante de alívio. O autocarro acabava de entrar na Avenida da República. Mas que volta aquela!
Olhou o relógio. Tinha 17 minutos para apanhar o comboio. Era pouco. Com aquele caminho disparatado ia com certeza perdê-lo. E ter que esperar meia hora pelo outro. Que chatice, o trânsito.
O autocarro travou chiando, para deixar passar um grupo que, com uniforme leopardo e olhando correctamente em frente, atravessava a praça.
Aproveitou para admirar mais uma vez o Monumento. Realmente era bonito. Sempre apreciara a escultura.
Devia ter dado um trabalhão dos diabos, o Monumento.
Num solavanco sem aviso o autocarro seguiu.
O ruído da Avenida deixou de se ouvir e apenas restou o silêncio interior, com o ciciar discreto de alguém que virava a página.
Lá fora, passada a praça, o campo estendia-se, o sol poente a desenhá-lo com nitidez e alguma melancolia.
Começou a fixar a janela quase obsessivamente. Viu as vacas que pastavam, as casas pequenas e distantes e até lhe pareceu ouvir um sino a badalar.
Não se conteve. Assim ia perder todos os comboios.
Largou a argola em que se pendurava e, com passos de marinheiro em autocarro, chegou junto do condutor.
- Mudaram o percurso? – interrogou quase agressivo.
O condutor não virou a cabeça. Continuou a olhar em frente, para a estrada que surgia, recta. Disse só:
- Não.
O autocarro acelerou um pouco.
Voltou para a sua argola e pendurou-se de novo.
No banco da frente, uma criança, ao colo da mulher forte de cabeça inclinada, virou-se para ele e ergueu um braço pequenino, num gesto mais pequeno ainda. E inútil.
Sempre preocupado com o comboio, ficou a olhar e a tentar compreender o que acontecia lá fora.
Passado o último renque de árvores, o autocarro entrou de novo na Avenida.
Respirou fundo. Talvez ainda chegasse a tempo.
Mas não conseguia saber onde se encontrava. Uma Avenida muito longa e larga sem nome conhecido, com prédios excessivamente altos de um lado e de outro. Rigorosamente iguais até ao fim.
Uma avenida. Vazia. Sem carros. Sem gente. Sem árvores.
Desistiu.
Passou algum tempo, no silêncio que o envolvia, sempre pendurado na argola e olhando inutilmente a mancha das flores esmagadas que marcava o chão.
O autocarro estacou de repente.
Balançou, desequilibrado, mas logo recuperou o equilíbrio e avançou para a porta que se abria, automática,
Foi o primeiro a saltar. Olhou em volta.
Uma estrada asfaltada prolongava-se até à entrada distante do que lhe pareceu, dali, ser uma quinta com um portão largo.
De cada lado surgiram-lhe dois homens altos e calados, uniformes negros e pequena metralhadora em bandoleira.
Seguraram-no. Um pelo cotovelo esquerdo, o outro pelo cotovelo direito. Começaram a andar. Os três. Em silêncio.
Sentiu passos atrás de si. Muitos.
Ao aproximar-se, o portão tornou-se-lhe mais nítido. Era bastante largo e gradeado.
Então, quando a distância lho permitiu, leu em letras metálicas numa faixa ondulante por cima da entrada
ARBEIT MACHT FREI
Realmente não se preocupou muito. Nem sequer sabia alemão.
(Novos Contos do Gin)