Sábado, 25 de Junho de 2011

A Coquete, de Patrícia Highsmith. Tradução de Luís M. Maia Varela.

 

Patricia Highsmith (1921-1995), de seu nome verdadeiro Mary Patricia Plangman, foi uma aclamada e original escritora policial norte-americana, talvez mais apreciada fora do seu país. A adaptação do seu livro Strangers on a train por Hitchcock (em Portugal o filme foi intitulado O Desconhecido do Norte-Expresso) tornou-a famosa por todo o mundo. Mary Helen Becker, na Collier's, assinala que ela escreveu mais sobre personagens normais envolvidos nas consequências dos seus erros, do que sobre pessoas perturbadas, conseguindo assim fazer-nos sentir os seus complexos enredos mais próximos de nós. O presente conto faz parte da colectânea Little Tales of Misogyny, que saiu pela primeira vez em 1974, curiosamente em alemão. Em Portugal a obra foi publicada pela Teorema, a quem VerbArte cumprimenta, e pede compreensão por inserir esta história curta, mas representativa da obra da autora.

 

 

 

 

 

Era uma vez uma coquete que não conseguia desembaraçar-se do seu pretendente. Ele tomava a sério as suas promessas e confissões e não iria deixá-la. Até nas suas insinuações acreditava. Isto aborrecia-a, pois as coisas passavam-se como quando se travam novos conhecimentos: presentes, adulações, flores, jantares, etc.

 

Yvonne, por fim, insultou Bertrand, o pretendente, e mentiu-lhe, não lhe dando literalmente nada ─ o que era ainda menos que o nada que dava aos seus outros amigos. Mesmo assim, Bertrand não poria termo às suas deferências, dado que considerava o comportamento de Yvonne normal e feminino, um excesso de moderação. Yvonne chegou a repreendê-lo e, uma vez sem exemplo, disse a verdade. Como não estava habituado e esperava, antes, hipocrisia da parte de uma mulher atraente, tomou as suas palavras como uma evasiva e continuou a fazer-lhe a corte.

 

Yvonne tentou envenená-lo, deitando-lhe arsénico nas chávenas de chocolate, em casa, mas ele recompôs-se, encarando tal atitude como uma ainda maior e mais fascinante prova do seu medo de perder a virgindade com ele, muito embora ela a tivesse perdido aos dez anos, quando disse à mãe que tinha sido raptada. Assim, mandara ela para a prisão um homem de trinta anos. Durante duas semanas tentara seduzi-lo, dizendo-lhe que tinha quinze anos e que estava louca por ele. Dera-lhe prazer arruinar-lhe a carreira, tornar feliz e envergonhada a sua mulher e deixar na maior confusão a filha de oito anos.

 

Alguns amigos deram a Bertrand um conselho:

 

─ Andámos todos com ela, fomos com ela para a cama, talvez uma ou duas vezes. Tu nem isso tiveste. E ela não vale a pena!

 

Mas Bertrand pensava que era diferente, aos olhos de Yvonne e, embora pensasse que ela ultrapassava os limites da obstinação, via nisso uma virtude.

 

Yvonne incitou um novo pretendente a matar Bertrand. Conseguiu a sua lealdade, prometendo-lhe que casaria com ele, se eliminasse Bertrand. A este disse o mesmo, a propósito do outro. O novo pretendente desafiou Bertrand para um duelo, mas falhou o primeiro tiro, começando, então, a conversar com a sua futura vítima. (A arma de Bertrand recusara-se a disparar). Ambos descobriram que haviam recebido promessas de casamento. Entretanto, ambos lhe haviam igualmente oferecido presentes caros e lhe tinham emprestado dinheiro, nos momentos de crise dos últimos meses.

 

Estavam ressentidos, mas não lhes ocorria uma ideia para porem fim ao comportamento de Yvonne. Por isso, decidiram matá-la. O novo pretendente dirigiu-se-lhe, dizendo que matara o estúpido e persistente Bertrand. Nessa altura, este bateu à porta. Ambos fingiram lutar entre si. Na realidade, empurraram Yvonne de um para o outro e mataram-na com vários socos na cabeça.

 

Contaram que ela tentara meter-se entre eles e fora atingida acidentalmente.

 

Como o juiz da cidade tinha, ele próprio, sofrido e sido vítima da chacota popular por causa dos galanteios dela, ficou secretamente satisfeito com a sua morte, absolvendo ambos, sem qualquer problema. Era suficientemente esperto, para saber que eles não a poderiam ter matado, se não se tivessem apaixonado perdidamente por ela ─ estado que, desde que fizera sessenta anos, lhe inspirava compaixão.

 

Só a criada de Yvonne, que sempre fora bem paga e recebera gorgetas, foi ao seu funeral. Até a própria família a detestava.

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Domingo, 19 de Junho de 2011

Ele me bebeu, de Clarice Lispector

                                                                                                                                    1920 - 1977

 

 

 

 

 

 

É. Aconteceu mesmo.

 

Serjoca era maquilhador de mulheres. Mas não queria nada com mulheres. Queria homens.

 

E maquilhava Aurélia Nascimento. Aurélia era bonita e, maquilhada, ficava deslumbrante. Era loura, usava peruca e cílios postiços. Ficaram amigos. Saíam juntos, essa coisa de ir jantar em boates.

 

Todas as vezes que Aurélia queria ficar linda ligava para Serjoca. Serjoca também era bonito. Era magro e alto.

 

E assim corriam as coisas. Um telefonema e marcavam encontro. Ela se vestia bem, era caprichada. Usava lentes de contacto. E seios postiços. Mas os seus eram mesmo lindos, pontudos. Só usava os postiços porque tinha pouco busto. Sua boca era um botão de vermelha rosa. E os dentes grandes, brancos.

 

Um dia, às seis horas da tarde, na hora do pior trânsito, Aurélia e Serjoca estavam em pé junto do Copacabana Palace e esperavam inutilmente um táxi. Serjoca, de cansaço, encostara-se numa árvore. Aurélia impaciente. Sugeriu que dessem ao porteiro dez cruzeiros para que ele lhes arranjasse uma condução. Serjoca negou: era duro para soltar dinheiro.

 

Eram quase sete horas. Escurecia. O que fazer?

 

Perto deles estava Affonso Carvalho. Industrial de metalurgia. Esperava o seu Mercedes com chofer. Fazia calor, o carro era refrigerado, tinha telefone e geladeira. Affonso fizera quarenta anos no dia anterior.

 

Viu a impaciência de Aurélia que batia com os pés na calçada. Interessante essa mulher, pensou Affonso. E quer carro. Dirigiu-se a ela:

 

─ A senhorita está achando dificuldade de condução?

 

─ Estou aqui desde as seis horas e nada de um táxi passar e nos pegar! Já não aguento mais.

 

─ Meu chofer vem daqui a pouco, disse Affonso. Posso levá-los a alguma parte?

 

─ Eu lhe agradeceria muito, inclusive porque estou com dor no pé.

 

Mas não disse que tinha calos. Escondeu o defeito. Estava maquilhadíssima e olhou com desejo o homem. Serjoca muito calado.

 

Afinal veio o chofer, desceu, abriu a porta do carro. Entraram os três. Ela na frente, ao lado do chofer, os dois atrás. Tirou discretamente o sapato e suspirou de alívio.

 

─ Para onde vocês querem ir?

 

─ Não temos propriamente destino, disse Aurélia cada vez mais acesa pela cara máscula de Affonso.

 

Ele disse:

 

─ E se fôssemos ao Number One tomar um drinque?

 

─ Eu adoraria, disse Aurélia. Você não gostaria, Serjoca?

 

─ É claro, preciso de uma bebida forte.

 

Então foram para a boate, a essa hora quase vazia. E conversaram. Affonso falou de metalurgia. Os outros dois não entendiam nada. Mas fingiam entender. Era tedioso. Mas Affonso estava entusiasmado e, embaixo da mesa, encostou o pé no pé de Aurélia. Justo o pé que tinha calo. Ela correspondeu, excitada. Aí Affonso disse:

 

─ E se fôssemos jantar na minha casa? Tenho hoje escargots e frango com trufas. Que tal?

 

─ Estou esfaimada.

 

E Serjoca mudo. Estava também aceso por Affonso.

 

O apartamento era atapetado de branco e lá havia escultura de Bruno Giorgi. Sentaram-se, tomaram outro drinque e foram para a sala de jantar. Mesa de jacarandá. Garçom servindo á esquerda. Serjoca não sabia comer escargots e atrapalhou-se todo com os talheres especiais.

 

E foram para a sala. Aí Serjoca se animou. E começou a falar que não acabava mais. Lançava olhos lânguidos para o industrial. Este ficou espantado com a eloquência do rapaz bonito. No dia seguinte telefonaria para Aurélia para lhe dizer: o Serjoca é um amor de pessoa.

 

E marcaram um novo encontro. Desta vez num restaurante, o Albamar. Comeram ostras para começar. De novo Serjoca teve dificuldade de comer as ostras. Sou um errado, pensou.

 

Mas antes de se encontrarem, Aurélia telefonou para Serjoca: precisava de maquilhagem urgente. Ele foi à sua casa.

 

Então, enquanto era maquilhada, pensou: Serjoca está me tirando o rosto.

 

A impressão era a de que ele apagava os seus traços: vazia, uma cara só de carne. Carne morena.

 

Sentiu mal-estar. Pediu licença e foi ao banheiro para se olhar ao espelho. Era isso mesmo que ela imaginara: Serjoca tinha anulado o seu rosto. Mesmo os ossos ─ e tinha uma ossatura espectacular ─ mesmo os ossos tinham desaparecido. Ele está me bebendo, pensou, ele vai me destruir. E é por causa do Affonso.

 

Voltou sem graça. No restaurante quase não falou. Affonso falava mais com Serjoca, mal olhava para Aurélia: estava interessado no rapaz.

 

Enfim, enfim acabou o almoço.

 

Serjoca marcou encontro com Affonso para de noite. Aurélia disse que não podia ir, estava cansada. Era mentira: não ia porque não tinha cara para mostrar.

 

Chegou em casa, tomou um longo banho de imersão com espuma, ficou pensando: daqui a pouco ele me tira o corpo também. O que fazer para recuperar o que fora seu? A sua individualidade?

 

Saiu da banheira pensativa. Enxugou-se com uma toalha enorme, vermelha. Sempre pensativa. Pesou-se na balança: estava com bom peso. Daí a pouco ele me tira também o peso, pensou.

 

Foi ao espelho. Olhou-se profundamente. Mas ela não era mais nada.

 

Então ─ então de súbito deu uma bruta bofetada no lado esquerdo do rosto. Para se acordar. Ficou parada olhando-se. E, como se não bastasse, deu mais duas bofetadas na cara. Para encontrar-se.

 

E realmente aconteceu.

 

No espelho viu enfim um rosto humano, triste, delicado. Ela era Aurélia Nascimento. Acabara de nascer. Nas – ci – men – to. 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Sábado, 11 de Junho de 2011

O QUE FOI SEPULTADO, por Miguel de Unamuno. Tradução de Carlos Loures


 

 


 

 

A mudança de comportamento sofrida pelo meu amigo, era extraordinária. Um rapaz jovial, espirituoso e despreocupado, transformara-se num homem tristonho, taciturno e excessivamente escrupuloso. Eram frequentes os seus momentos de abstracção e, durante esses momentos dir-se-ia que o seu espírito viajava por caminhos de outro mundo. Um dos nossos amigos, leitor e decifrador assíduo de Browning, recordando a estranha composição em que este nos fala da vida de Lázaro depois de ressuscitado, costumava dizer que o pobre Emilio visitara a morte. E fizemos todas as diligências para adivinhar a causa daquela misteriosa mudança de feitio; mas foram diligências infrutíferas.

 

Contudo, de tal modo e com tal insistência o assediei que, finalmente, um dia, deixando transparecer o esforço que custa tomar uma resolução difícil e muito reprimida, subitamente me disse: «Pois bem, vais saber o que me aconteceu, mas exijo que, por tudo o que te seja mais sagrado, não o contes a ninguém enquanto eu não tiver voltado a morrer.» Prometi-lho com toda a solenidade e levou-me à sua sala de estudo, onde nos fechámos.

 

Depois da sua transformação, eu não voltara a entrar naquela divisão. Nada fora modificado, embora agora me parecesse mais em consonância com o dono. Por momentos pensei que fora aquela sua salinha preferida que o transformara de forma tão surpreendente. A sua velha e ampla poltrona de couro, com os seus grandes braços, pareceu-me assumir um novo sentido. Estava a examiná-la quando Emilio, depois de ter fechado cuidadosamente a porta, me disse, apontando o cadeirão:

 

- Foi ali que tudo aconteceu.

  

Olhei-o sem perceber.

 

Indicou-me que me sentasse na sua frente, numa cadeira que estava do outro lado da sua pequena secretária de trabalho, acomodou-se no seu cadeirão e começou a tremer. Eu não sabia o que fazer. Por duas ou três vezes tentou começar a falar e outras tantas foi obrigado a desistir. Estive quase a propor-lhe que esquecesse a sua confissão, mas a curiosidade foi mais forte do que a piedade; é sabido que a curiosidade é uma das coisas que mais contribuem para a crueldade do homem. Permaneceu um momento com a cabeça entre as mãos e os olhos baixos; sacudiu-se depois, como quem toma uma súbita decisão, e começou:

 

- Bem, tu não vais acreditar numa palavra sequer do que te vou contar, mas isso não interessa. Contando-to, libertar-me-ei de um grande peso, e isso basta-me. – Não me lembro do que lhe respondi, e prosseguiu:

 

- Há coisa de um ano e meio, meses antes do mistério, caí doente de terror. A doença não se me notava nada, nem tinha qualquer manifestação exterior, embora me fizesse sofrer horrivelmente. Tudo me metia medo e me parecia envolver numa atmosfera de terror. Pressentia vagos perigos. Sentia permanentemente a invisível presença da morte, da verdadeira morte, ou seja, do total aniquilamento. Acordado, ansiava porque chegasse a hora de me deitar para dormir e, uma vez na cama, atacava-me o temor de que o sono se apossasse de mim para sempre. Era uma vida insuportável, terrivelmente insuportável. E nem sequer me sentia com força de vontade para me suicidar, coisa que, pensava eu na altura, seria uma solução. Cheguei a temer pelo meu juízo…

 

- E por que não consultaste um especialista? – perguntei só para dizer alguma coisa.

  

 

 

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Quinta-feira, 2 de Junho de 2011

História completamente absurda, de Giovanni Papini

 

 

 

 

 

 

Há quatro dias, estando a escrever com uma ligeira irritação, algumas das páginas mais falsas das minhas memórias, ouvi bater levemente à porta, mas não me levantei nem respondi. As pancadas eram demasiado fracas e não gosto de lidar com tímidos.

 

No dia seguinte, à mesma hora, ouvi novamente bater; desta vez, as pancadas eram mais fortes e decididas. Mas também não quis abrir, pois não aprecio absolutamente nada os que se corrigem com demasiada pressa.

 

No terceiro dia, sempre à mesma hora, as pancadas foram repetidas de forma violenta e antes que pudesse levantar-me vi a porta abrir-se e entrar a medíocre figura de um homem bastante jovem, com o rosto um tanto afogueado e a cabeça coberta por cabelos ruivos e crespos, inclinando-se canhestramente, sem nada dizer. Mal viu uma cadeira, atirou-se-lhe para cima e como eu continuasse de pé indicou-me o cadeirão para que me sentasse. Tendo-lhe obedecido, julguei-me no direito de lhe perguntar quem era, pedindo-lhe num tom nada delicado, que me dissesse o nome e o motivo que o tinha levado a invadir o meu quarto. Mas o homem não se alterou e fez-me imediatamente compreender que, para já, desejava continuar a ser o que até então fora para mim:. um desconhecido.

 

- O motivo que me trouxe até ao senhor – continuou, sorrindo – está dentro da minha mala e dar-lho-ei a conhecer imediatamente.

 

Com efeito, apercebi-me de que trazia na mão uma pequena mala de couro amarelo-sujo, com guarnições de latão desgastado pelo uso, a qual abriu dela tirando um livro.

 

- Este livro – disse pondo-me diante dos olhos um grosso volume forrado a tela com grandes flores de um vermelho ferruginoso – contém uma história imaginária que criei, inventei, redigi e copiei. Em toda a minha vida, apenas escrevi isto e atrevo-me a supor que não lhe desagradará. Até agora apenas o conhecia de nome e só há uns dias uma mulher que o ama me disse que o senhor é um dos poucos homens que não tem medo de si mesmo e o único que teve a coragem de aconselhar a morte a muitos dos seus semelhantes. Por isso, pensei ler-lhe a minha história, que narra a vida de um homem fantástico ao qual acontecem as mais singulares e insólitas aventuras. Depois de a ter ouvido, dir-me-á o que devo fazer. Se a minha história lhe agradar, prometer-me-á tornar-me célebre no prazo de um ano; se não gostar, matar-me-ei dentro de vinte e quatro horas. Diga-me se aceita estas condições e eu começarei.

 

Compreendi que nada podia fazer senão manter a atitude passiva que tinha assumido até então e indiquei-lhe, com um gesto que não conseguiu ser amável, que o escutaria e faria tudo o que desejava.

 

“- Quem poderá ser – pensava para comigo – a mulher que me ama e que falou de mim a este homem? Nunca tivera conhecimento de que uma mulher me amasse e se assim fosse não o teria tolerado, pois não há situação mais incómoda e ridícula que a dos ídolos de um qualquer animal.” O desconhecido arrancou-me a estes pensamentos com um bater de pés, pouco eloquente, mas claro. O livro estava aberto e a minha atenção era considerada necessária.

 

O homem começou a leitura. As primeira palavras escaparam-se-me; dei mais atenção às seguintes. Depressa apurei o ouvido e senti um leve calafrio nas costas. Dez ou vinte segundos depois o meu rosto ficou vermelho; as pernas moveram-se-me nervosamente; decorridos mais dez segundos, levantei-me. O desconhecido suspendeu a leitura e fitou-me, interrogando-me humildemente dom os olhos. Olhei-o do mesmo modo e inclusivamente com ar de súplica, mas estava demasiado aturdido para o ,mandar embora. Disse-lhe simplesmente, como qualquer idiota sociável:

 

- Faça o favor de continuar.

 

A extraordinária leitura prosseguiu. Não conseguia estar quieto no cadeirão e os calafrios percorriam-me não só as costas, mas também a cabeça e o corpo inteiro. Se tivesse podido ver o meu rosto no espelho talvez me tivesse rido e tudo tivesse passado, pois provavelmente reflectia um espanto abjecto e um indeciso furor. Tentei, por um momento, não continuar a escutar as palavras do calmo leitor, mas só consegui ficar mais confuso; escutei integralmente, palavra por palavra, pausa após pausa, a história que o homem lia com a sua cabeça ruiva inclinada sobre o bem encadernado volume. O que podia ou devia eu fazer numa circunstância tão especial? Agarra o maldito leitor, morder-lhe e atirá-lo para fora do quarto como um inoportuno fantasma?

 

Porém, por que motivo iria fazer tal coisa? No entanto, aquela leitura produzia-me um inexprimível aborrecimento, uma penosíssima impressão de sonho absurdo e desagradável, sem esperança de poder acordar. Julguei por momentos ir cair num furor convulsivo e vislumbrei na minha imaginação um enfermeiro de uniforme branco que me punha um colete de forças, com infinitas e excessivas precauções.

 

Contudo, finalmente acabou a leitura. Não me lembro de quantas horas durou, mas, ainda mergulhado na minha confusão, reparei que o leitor tinha a voz rouca e a testa húmida de suor. Depois de ter fechado o livro e de o ter guardado na sua mala, o desconhecido fitou-me com ansiedade, embora o seu olhar não tivesse já a ansiedade do princípio. O meu cansaço era tão grande que ele próprio o adivinhou e o seu pasmo aumentou vendo que esfregava um olho e não sabia o que lhe responder. Parecia-me naquela altura que nunca mais poderia voltar a falar e até mesmo as coisas mais simples que me rodeavam se apresentavam aos meus olhos tão estranhas e hostis que quase experimentei uma sensação de repugnância. Tudo isto parece demasiado vil e vergonhoso; penso o mesmo e não tenho qualquer espécie de indulgência para a minha perturbação. Porém, o motivo do meu desequilíbrio era de muito peso: a história que aquele homem tinha lido era a narração pormenorizada e completa de toda a minha vida íntima, interior e exterior. Durante aquele tempo, escutara a minuciosa narrativa, fiel, inexorável de tudo o que sentira, sonhara e fizera desde que vim ao mundo. Se um ser divino, leitor de corações e testemunha invisível, tivesse estado a meu lado desde o meu nascimento e tivesse escrito o que observou dos meus pensamentos e acções, teria redigido uma história perfeitamente igual à que o leitor desconhecido declarava ser imaginária e por ele inventada. As coisas mais pequenas e secretas eram recordadas e nem sequer um sonho ou um amor ou uma vileza oculta, um calculismo ignóbil, escaparam ao escritor. O terrível livro continha até factos e pensamentos que esquecera e que apenas recordara ao escutá-lo.

 

A minha confusão e receio provinham desta impecável exactidão e deste inquietante escrúpulo. Nunca vira aquele homem; aquele homem afirmava nunca me ter visto. Eu vivia muito solitário a uma cidade a que ninguém vem se a isso não for forçado pelo destino ou pela necessidade. A nenhum amigo, se é que ainda algum me restava, confiara as minhas aventuras de caçador furtivo, as minhas viagens de salteador de almas, as minhas ambições de pesquisador do inverosímil. Nunca escrevera, nem para mim nem para os outros, uma relação completa e sincera da minha vida e precisamente por aqueles dias estava fabricando fingidas memórias para me ocultar dos homens, inclusivamente após a morte.

 

Quem, pois, podia ter dito a este visitante tudo o que narrara sem pudor e sem piedade no seu odioso livro forrado de papel antigo de cor ferruginosa? E afirmava ter inventado aquela história e apresentava-me, a mim, a minha vida inteira como se fosse uma história imaginária!

 

Encontrava-me terrivelmente perturbado e emocionado, mas de uma coisa estava certo: este livro não podia ser divulgado entre os homens. Mesmo que para tal aquele infeliz autor e leitor tivesse que morrer, não podia permitir que a minha vida fosse divulgada e conhecida no mundo, entre todos os meus impessoais inimigos. Esta decisão, que senti firme e sólida, no meu foro íntimo, começou a reanimar-me levemente. O homem continuava a fitar-me com um ar consternado, quase suplicante. Tinham decorrido apenas dois minutos desde que terminara a sua leitura e não parecia compreender o motivo da minha perturbação. Finalmente, consegui falar:

 

- Desculpe, senhor – perguntei – Assegura que esta história foi verdadeiramente inventada por si?

 

- Precisamente – respondeu o enigmático leitor, com ar mais tranquilo – pensei-a e imaginei-a durante muitos anos e fui fazendo retoques e alterações na vida do meu herói. No entanto, tudo é fruto da minha imaginação.

 

As suas palavras incomodavam-me cada vez mais, mas consegui ainda fazer outra pergunta:

 

- Diga-me, por favor, tem a certeza absoluta de não me ter encontrado antes de hoje? De nunca ter ouvido contar a minha vida a alguém que me conheça?

 

O desconhecido não pôde conter um sorriso de espanto ao ouvir as minhas palavras.

 

- Já lhe disse – respondeu – que até há pouco tempo apenas o conhecia de nome e que apenas há uns dias soube que costumava aconselhar a morte, mas nada mais sei sobre o senhor.

 

A sua condenação estava decidida, sendo necessário que não demorasse a ser executada.

 

- Continua disposto – perguntei-lhe com solenidade – a manter as condições por si mesmo estabelecidas antes de começar a leitura?

 

- Sem dúvida – respondeu com um leve tremor na voz -, não tenho outras portas a que bater e esta obra é a minha vida. Sinto que não poderia proceder de outro modo.

 

- Devo então dizer-lhe – acrescentei com a mesma solenidade, embora temperada por alguma melancolia – que a sua história é estúpida, aborrecida, incoerente e abominável. O seu herói, como lhe chama, não passa de um enfadonho malandrim que entediará qualquer leitor mais requintado. Não quero ser demasiado cruel acrescentando ainda mais pormenores.

 

Comprovei que o homem não esperava estas palavras e apercebi-me de que as suas pálpebras se fecharam instantaneamente. Porém, ao mesmo tempo reconheci que o seu poder sobre mim era equivalente à sua honestidade. Quase imediatamente reabriu os olhos, fitando-me sem medo e sem ódio.

 

- Quer acompanhar-me até lá fora? – perguntou-me com uma voz demasiado doce para ser natural.

 

- Com certeza – respondi, e depois de pôr o chapéu saíamos de casa sem falar.

 

O desconhecido continuava a levar na mão a sua mala de couro amarelo e segui-o, entorpecido, até à margem do rio que corria caudaloso e ruidosamente entre as negras muralhas de pedra, Olhando em redor e certificando-se de que não via ninguém com aspecto de salvador, voltou-se para mim dizendo:

 

-Desculpe-me se a minha leitura o aborreceu. Julgo que nunca mais incomodarei um ser vivo. Esqueça-se de mim tão depressa quanto possível.

 

E estas foram as suas últimas palavras, porque saltando agilmente o parapeito, com um rápido impulso, atirou-se ao rio com a sua mala. Debrucei-me para o ver mais uma vez, mas a água já o tinha recebido e coberto. Uma menina tímida e loura apercebera-se do rápido suicídio, mas não pareceu muito espantada e prosseguiu o seu caminho comendo avelãs. Regressei a casa depois de ter feio algumas tentativas inúteis. Mal entrei no meu quarto, estendi-me sobre a cama e adormeci sem muito esforço, abatido e alquebrado pelo inexplicável acontecimento.

 

Esta manhã acordei muito tarde e com uma estranha sensação. Parecia-me estar já morto e esperar apenas que me viessem sepultar. Tomei imediatamente providências para o meu funeral, fui pessoalmente à agência funerária para que nenhum pormenor seja esquecido. Espero que a todo o momento me tragam o caixão. Sinto pertencer já a outro mundo e todas as coisas que me rodeiam têm o indizível ar de coisas passadas, acabadas, sem qualquer interesse para mim.

 

Um amigo trouxe-me flores e disse-lhe que podia esperar para as colocar sobre a minha campa. Pareceu-me que sorria, mas os homens sorriem sempre daquilo que não compreendem.

 

  

(Tradução de Carlos Loures de «Storia completamente assurda», de Giovanni Papini, (in »La Riviere Ligure», 1906).

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Sábado, 28 de Maio de 2011

O PEÃO, por Ray Bradbury

 


 

 

 

Penetrar naquela quietude que era a cidade às oito horas de uma nebulosa noite de Novembro, pousar os pés sobre o sólido passeio de cimento, pisar as fendas com ervas, e andar, de mãos nos bolsos, pelos silêncios, era o que o Sr. Leonard Mead mais gostava de fazer. Ficaria numa esquina de um cruzamento, olhando as ruas banhadas pelo luar nas quatro direcções, decidindo por onde ir, mas realmente, não faria diferença; estava sozinho, neste mundo de 2053 a.D., ou, como se estivesse só. Tomada uma decisão definitiva, escolhido um caminho, começaria a andar, soltando baforadas de ar congelado à sua frente, como o fumo de um cigarro. Às vezes, andava durante horas, milhas, e voltava para casa só à meia-noite. E, no caminho, via casas, grandes e pequenas, com as suas janelas escuras; era como caminhar por um cemitério, pois só leves clarões de luz fantasmagórica eclodiam por detrás das janelas. Súbitos e cinzentos espectros pareciam surgir sobre as paredes das salas, onde uma cortina ainda estava aberta para a noite, ou cicios e murmúrios onde uma janela num edifício-túmulo estava ainda aberta.

 

O Sr. Leonard Mead parava, inclinava a cabeça, ouvia, olhava, e continuava a marcha, os pés sem fazer ruído no pavimento irregular. Há muito que, prudentemente, passara a usar sapatos de ténis para passear à noite, porque os cães, em alguns quarteirões, seguiriam a sua caminhada com latidos, se usasse calçado com sola de couro, as luzes poderiam acender-se, e rostos aparecer, toda uma rua se alvoroçar com a passagem de um vulto solitário; ele mesmo, no começo de uma noite de Novembro.

 

Nesta noite, em particular, tomara a direcção Oeste, rumo ao mar, invisível. Havia um frio cristalino no ar que cortava o nariz e fazia os pulmões arder por dentro, como uma árvore de Natal; podia-se sentir as luzes acendendo e apagando, os ramos cheios de uma neve invisível. Escutava com prazer o calçado macio empurrando delicadamente as folhas de Outono, assobiava frio e baixinho, entre dentes, arrancando ocasionalmente uma folha de passagem, examinando o desenho esqueletal, à luz de um raro candeeiro público, enquanto caminhava, aspirando seu odor ferruginoso.

 

-- Ó da casa -- murmurava para cada casa, por todo lado, enquanto passava. -- O que passa hoje no Canal 4; Canal 7; Canal 9? Para onde estão correndo os "cow-boys", e onde está a Cavalaria dos Estados Unidos, para sair daquela colina, e salvar a situação?

 

A rua silente, longa, vazia, apenas com a sua sombra movendo-se, como a sombra de um falcão, no meio de uma planície. Fechou os olhos, e permaneceu imóvel, gelado. Podia imaginar-se no meio de uma planície, numa pradaria americana, sem ventos, inverno, sem qualquer casa num raio de mil milhas - só leitos secos de rios, como aquelas ruas.

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-- E agora, o que temos? -- perguntou para as casas, olhando o relógio de pulso -- Oito e meia? Hora de uma dúzia de episódios de assassínios? Um concurso? Um musical? Um comediante tropeçando e caindo do palco?

 

Terá ouvido um murmúrio de risos, vindo de uma das casas brancas ao luar? Hesitou, mas continuou, quando nada mais aconteceu. Tropeçou numa irregularidade maior do passeio. O cimento estava a desaparecer, sob flores e mato. Em dez anos de caminhada, noite e dia, por milhares de milhas, nunca encontrara outra pessoa passeando, nunca, nem uma só vez. Chegou a um cruzamento deserto, onde duas avenidas principais atravessavam a cidade. Durante o dia, era uma trovejante corrente de carros, os postos de gasolina abertos, um grande farfalhar de insectos, e um incessante mudar de posição, enquanto os carros-escaravelho, uma névoa de incenso saindo dos tubos de escape, corriam para casa, nas mais diversas direcções. Mas agora, estas estradas, eram como os leitos de rios secos no Verão, banhados pelo luar.

 

Virou numa rua secundária, de regresso a casa. Estava a um quarteirão de chegar, quando, subitamente, um carro solitário dobrou a esquina e fez incidir um forte cone de luz branca sobre ele. Deteve-se, aturdido, como uma borboleta, atordoado pela luz, mas por ela atraído.

 

Uma voz metálica advertiu-o:

 

-- Fique onde está! Não se mova!

 

Parou.

 

-- Levante as mãos!

 

-- Mas... – disse ele.

 

-- Mãos para cima! Ou atiramos!

 

A polícia, claro, mais que coisa rara, incrível; numa cidade de três milhões de habitantes, restava só um carro de polícia, não era isso? Já havia um ano, desde 2052, o ano das eleições, que a força policial havia sido cortada de três para um carro. O crime estava a desaparecer; não havia necessidade de polícia, excepto este carro solitário vagueando pelas ruas desertas.

 

-- O seu nome? -- disse o carro, num chiado metálico. Ele não podia ver os guardas lá dentro, por causa da luz muito forte nos seus olhos.

 

-- Leonard Mead -- respondeu.

 

-- Mais alto!

 

-- Leonard Mead!

 

-- Negócio, ou profissão?

 

-- Acho que me pode considerar um escritor.

 

-- Sem profissão -- disse o carro-patrulha, como que falando sozinho. A luz mantinha-o fixado como um espécime de museu, com uma agulha espetada no meio do peito.

 

-Pode-se dizer-se assim -- afirmou o Sr. Mead. Havia anos que não escrevia. Já não se vendiam livros e revistas. Tudo continuava como sempre nas casas-túmulos, à noite, pensou. Os túmulos, mal iluminados pela luz da televisão, onde as pessoas se sentavam como os mortos, as luzes cinzentas ou multicoloridas tocando suas faces, mas nunca tocando o seu íntimo.

 

-- Sem profissão -- chiou a voz fonográfica. – O que está a fazer cá fora?

 

-- A passear -- disse Leonard Mead.

 

-- A passear?

 

-- Só a passear -- disse, simplesmente, percorrido por um arrepio.

 

-- Passeando, passeando, passeando?

 

-- Sim, senhor.

 

-- Indo para onde? Para quê?

 

-- Para apanhar ar. Passeando para ver.

 

-- A sua morada?

 

-- Onze, Sul, rua Saint James.

 

-- E não há ar na sua casa; o senhor não tem ar condicionado, Sr. Mead?

 

-- Sim.

 

-- E tem uma tela visora, na sua casa?

 

-- Não.

 

-- Não? -- Houve uma interrupção crepitante, que em si era já uma acusação.

 

-- É casado, Sr. Mead?

 

-- Não.

 

-- Não casado -- disse a voz policial atrás do facho, que queimava. A luz estava alta e clara, por entre as estrelas, e as casas escuras e silenciosas.

 

-- Ninguém me quis -- disse Leonard Mead, sorrindo.

 

-- Não fale, a menos que seja interpelado!

 

Leonard Mead esperou, sob a fria noite.

 

-- Apenas passeando, Sr. Mead?

 

- Mas ainda não explicou com que propósito.

 

-- Já expliquei; para apanhar ar, ver, e simplesmente pelo prazer de andar.

 

-- Já fez isso muitas vezes?

 

-- Todas as noites, há anos.

 

O carro-patrulha estava estacionado no meio da rua, com sua garganta de rádio zumbindo fracamente.

 

-- Bem, Sr. Mead -- disse.

 

-- Isso é tudo? -- perguntou, polidamente.

 

-- Sim -- respondeu a voz. -- Por aqui. -- Houve um sopro, e um estalido. A porta traseira do carro da polícia escancarou-se. -- Entre.

 

--  Olhe lá, eu não fiz nada!

 

-- Entre.

 

-- Protesto.

 

-- Sr. Mead.

 

Avançou como um homem subitamente embriagado. Ao passar pela janela dianteira do carro, olhou para o interior. Como esperava, não havia ninguém no assento dianteiro, não havia ninguém no carro.

 

-- Entre.

 

Pôs a mão na porta e olhou para o banco traseiro, que era uma pequena cela, uma pequena cela escura, com grades. Cheirava a aço rebitado e a anti-séptico forte; um intenso odor higiénico, metálico. Nada era macio, ali dentro.

 

-- Se tivesse uma esposa que lhe desse um álibi -- disse a voz de aço. -- Mas...

 

-- Para onde me vai levar?

 

O carro hesitou, ou melhor, houve um zumbido abafado, como se a informação, algures, fosse dada por cartões perfurados, e olhos eléctricos -- Ao Centro Psiquiátrico de Pesquisa sobre Tendências Regressivas.

 

Entrou. A porta fechou-se com um som abafado. O carro da polícia rodou pelas avenidas, a meio à noite, com os faróis acesos.

 

Passaram por uma casa, numa rua, um momento depois, uma casa, em toda uma cidade de casas escuras, mas esta casa, em particular, tinha todas as luzes bem acesas, cada janela uma berrante iluminação amarela, quadrada e quente na fria escuridão.

 

- Aquela é minha casa -- disse Leonard Mead.

 

Ninguém respondeu.

 

O carro foi pelas ruas vazias, como leitos de rios secos, afastando-se, deixando as ruas vazias, com os seus passeios vazios, sem som nem movimento, na fria noite de Novembro.

 

Extraído de E de Espaço © 1978 by Hemus-Livraria Editora Ltda -Título original: S is for Space © 1966 by Ray Bradbury

publicado por João Machado às 15:00
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Sexta-feira, 20 de Maio de 2011

Flor, telefone, moça, por Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

 

 


 

Não, não é um conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras vezes não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente, porque era a amiga quem falava, e é doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.

 

Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores – ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.

 

- Sei de um caso de flor que é tão triste!

 

E sorrindo:

 

- Mas você não vai acreditar, juro.

 

Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.

 

- Era uma moça que morava na rua General Polidoro – começou ela. – Perto do cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que de não ver passar nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.

 

Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério para dar uma espiada. Você já reparou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores – por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstito até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar para passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direcção à praia, descer no mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça, pela curiosidade dos enterros, sei lá por que, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo. Coitada!

 

 

 

publicado por João Machado às 21:00

editado por Luis Moreira em 21/05/2011 às 01:32
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Quinta-feira, 12 de Maio de 2011

A Promoção, por António Sales

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um conto inédito de António Sales

(já publicado no Estrolabio em Julho do ano passado)

 

Jeremias Palonso da Silva é pobre, quer dizer, está socialmente situado na escala hierárquica dos pobres. É pobre mas não miserável, ou seja não se encontra abaixo da linha insustentável da pobreza. Todavia, esta situação não foi determinada por azares da vida ou despedimento compulsivo o que também seria um azar.

 

Jeremias Palonso da Silva é pobre por opção. Esquisito, não é! Sendo economista era natural que “beneficiasse” das condições normais de qualquer cidadão pronto a ganhar a vida para casar, ter filhos, alimentar a família, pagar a escola, os livros, a casa, os electrodomésticos, a mobília, plasmas, computadores wireless, automóvel, férias, impostos, coisas que obrigam qualquer sujeito a ter 2 ou 3 empregos, fazer horas extraordinárias, comer mal, não acompanhar o crescimento das crianças, criar úlceras duodenais, esquecer-se da mulher e apanhar um par de cornos, pagar ao estado um balúrdio de IRS, ter uma depressão e cair redondo no sofá do psiquiatra antes de lhe dar o AVC da praxe.

 

 Por acaso ou deliberadamente (foi coisa que não consegui tirar a limpo), Jeremias Palonso escapou a esta malha porque é solteiro, não tem filhos o que representa economia superior a um totoloto, como se imagina. Nestas condições só obedece às suas próprias exigências. Faz bem o que sabe, impecável nas suas tarefas e nem ganha mal para as exigências da sua vida. Ao entardecer de um dia molhado e ventoso o chefe chamou-o para lhe anunciar, com um sorriso, que iria ser promovido. Aumento e mordomias de automóvel novo, telemóvel última geração, 500 euros mensais para o cartão de credito e ajudas de custo em deslocações dentro ou fora do país. Fora do país Dr. Bento? Isso mesmo meu caro, um director das relações exteriores não era certamente para ali ficar como um escriturário. Passaria aos quadros superiores da empresa.

 

 

 

publicado por João Machado às 15:00
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Quinta-feira, 5 de Maio de 2011

As Ruínas Circulares, por Jorge Luis Borges

 

 

 

 

 


 

 

And if left off dreaming about you…

 

Trough the Looking-Glass, VI

 

 

Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumir-se na lama sagrada, mas daí a poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que a sua pátria era uma dessas infinitas aldeias que ficam rio acima, no flanco violento da montanha, onde a língua zenda não está contaminada do grego e onde é rara a lepra.                                                                                                               

 

O que é certo e seguro é que o homem pardo beijou a lama, subiu a margem sem afastar (provavelmente sem sentir) as sanguessugas que lhe dilaceravam as carnes e arrastou-se enjoado e sangrando, até ao recinto circular dominado por um tigre ou um cavalo de pedra, que teve outrora a cor do fogo e agora a da cinza. Essa arena é um templo que os antigos incêndios devoraram, que a floresta pantanosa profanou e cujo deus não recebe as honras dos homens.                                                                                                                                                                  

 

O forasteiro deitou-se sob o pedestal. Só o despertou o sol alto. Verificou sem assombro que as feridas haviam cicatrizado; fechou os olhos pálidos e adormeceu, não por fraqueza da carne mas por decisão da vontade. Sabia que esse templo era o lugar referido para o seu invencível desígnio; sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido estrangular, a jusante, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que a sua obrigação imediata era o sono. Por volta da meia-noite acordou-o o grito inconsolável de um pássaro. Marcas de pés descalços, uns figos e um cântaro avisaram-no de que os homens da região lhe tinham espiado com respeito o sono e solicitavam o seu amparo ou temiam a sua magia.                                                                                                                                                                        

 

Sentiu o frio do medo e procurou na muralha delapidada um nicho sepulcral e tapou-se com folhas desconhecidas.

 

 

publicado por João Machado às 21:00

editado por Luis Moreira às 21:10
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Quinta-feira, 28 de Abril de 2011

O GUARDANAPO DOS POETAS, por Guillaume Apollinaire

 

 

 

 

 


 

Situado no limite da vida, nos confins da arte, Justin Prerogue era pintor. Uma amiga vivia com ele e era visitado por poetas. Cada um, por sua vez, jantava no atelier, onde o destino colocara no tecto percevejos em vez de estrelas.

 

Havia quatro convivas que nunca se encontravam na mesa.

 

David Picard vinha de Bancerre; descendia de uma família judaica cristianizada, como há tantas na cidade.

 

Leonard Delaisse, tuberculoso, escarrava a sua vida de inspirado com uma expressão que era de morrer a rir.

 

George Ostreole, com olhos inquietos, meditava, como outrora Hércules, entre as entidades do beco.

 

Jaime Saint-Felix sabia muitas histórias; a sua cabeça era capaz de dar a volta aos ombros, como se o pescoço estivesse aparafusado no corpo. E os seus versos eram admiráveis.

 

As refeições eram intermináveis e o mesmo guardanapo servia, um por um, aos quatro poetas, mas, sobre isso, nada se lhes dizia.

 

O guardanapo, pouco a pouco, foi ficando sujo. Eis o amarelo do ovo junto a um rastilho sombrio de espinafre. Esta é a curva de uma boca avinhada e estas cinco marcas cinzentas foram deixadas pelos dedos de uma mão em repouso. Uma espinha de peixe deixou a figura de uma lança. E a cinza do cigarro escurece certas partes mais do que outras.


 

*

 

- David, olha o teu guardanapo – dizia a amiga de Justin Prerogue.

 

- É preciso comprar guardanapos – dizia Justin Prerogue. – Pensa nisso quando recebermos.

 

- O teu guardanapo está sujo, David – dizia a amiga de Justin Prerogue. – Eu mudo-o da próxima vez. A lavadeira não apareceu esta semana.

 

- Leonard, olha o teu guardanapo – dizia a amiga de Justin Prerogue. – Podes escarrar no caixote do carvão. Como o teu guardanapo está sujo! Eu mudo-o logo que a lavadeira trouxer a roupa.

 

- Leonard quero fazer o teu retrato escarrando – dizia Justin Prerogue – gostaria até de fazer uma escultura.

 

*

 

- George, tenho vergonha de te dar sempre o mesmo guardanapo – dizia a amiga de Justin Prerogue. – Não sei o que aconteceu com a lavadeira, que não há maneira de me trazer a roupa.

 

*

 

- Jaime Saint-Felix, sou obrigada a pôr-te ainda o mesmo guardanapo. Não tenho outro hoje – dizia a amiga de Justin Prerogue.

 

E o pintor fazia rodar a cabeça do poeta durante todo o jantar, escutando muitas histórias.

 

*

 

Passaram as estações. Os poetas serviam-se, um por um, do guardanapo e dos admiráveis jantares. Leonard Delaisse escarrava a sua vida mais comicamente ainda e David Picard começou também a escarrar. O guardanapo envenenado infectou um por um; depois de David, George Ostreole e Jaime Saint-Felix, mas eles não o sabiam.

 

E, tal como uma ignóbil compressa de hospital, o guardanapo ia-se manchando do sangue que vinha dos lábios dos poetas. E os jantares não terminavam.

 

*

 

No começo do Outono, Leonard Delaisse escarrou o que lhe restava de vida. Em diferentes hospitais, sacudidos pela voluptuosidade, os outros poetas morreram também, com poucos dias de intervalo. E os quatro deixaram poemas tão belos que pareciam encantados.

 

Atribuíram as mortes, não à alimentação, mas à falta de alimentação e às insónias líricas. Na verdade, como poderia um único guardanapo matar em tão pouco tempo quatro poetas incomparáveis?

 

*

 

Mortos os convivas, o guardanapo tornou-se inútil. A amiga de Justin Prerogue quis guardá-lo no cesto da roupa suja. Dobrara-o pensando:

 

- Está mesmo muito sujo e parece que tem mau cheiro.

 

Mas, desdobrado o guardanapo, a amiga de Justin Prerogue, surpreendida, chamou o amigo, maravilhada:

 

- É um verdadeiro milagre! Este guardanapo tão sujo, que exibes com tanta complacência, apresenta, graças à porcaria coagulada e às diversas cores, os traços do nosso amigo que morreu, David Picard.

 

- Não é? – murmurou a amiga de Justin Prerogue.

 

Em silêncio, ambos examinaram por alguns instantes a miraculosa imagem e, depois, lentamente, voltaram o guardanapo.

 

Empalideceram, pois imediatamente surgiu o espantoso aspecto de morrer a rir de Leonard Delaisse, esforçando-se por escarrar.

 

E os quatro cantos do guardanapo apresentaram o mesmo prodígio.

 

Justin Prerogue e a sua amiga viram George Ostreole indeciso e Jaime Saint-Felix prestes a contar uma história.

 

- Larga o guardanapo – disse, bruscamente, Justin Prerogue.

 

O guardanapo caiu no chão.

 

Justin Prerogue e a sua amiga circularam durante muito tempo em torno do guardanapo, como astros em redor do seu sol. E esta Santa Verónica com o seu quádruplo olhar, convidava-os a fugir aos limites da arte, aos confins da vida.

 

(Extraído do livro «Maravilhas do Conto Fantástico», organizado por Fernando Correia da Silva, Editora Cultrix, São Paulo, 1968, com adaptação à norma portuguesa)

publicado por João Machado às 21:00
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Sábado, 26 de Fevereiro de 2011

Do Vazio

 

 

 

 

 

 

 

Marcos Cruz

 

(ilustração de Adão Cruz)

 

 

 

 

 

 

António era um bife. Mal passado, passava mal. Mas tinha a resistência suficiente para lutar contra os que o queriam passar bem, pois sabia que “uma vez bem passado, bem passado para sempre”. Passava mal no presente, mais precisamente, já que o seu passado fora até bem passado, ou, como todos os passados, bem e mal passado. Em parte, era com isso que ele se passava: se, por um lado, “uma vez bem passado, bem passado para sempre” e, por outro, o seu passado havia sido bem e mal passado, ou seja, em parte, bem passado, porque não estaria ele bem passado no presente? Talvez, sem o ter presente, estivesse.

 

Mas então por que razão passava mal? Era uma problema pesado, difícil de ultrapassar, e por isso António pediu ajuda. Foi ter com um bife que, por haver passado muito e (aparentemente) passar bem sem estar bem passado, talvez o pudesse fazer passar melhor no futuro, passando-lhe uma receita, ou algo assim, que o dispensasse de ser bem passado para deixar de passar mal. Era o melhor presente possível e, à beirinha do Natal, António passava o tempo todo, incluindo todo o tempo passado com o outro bife, a pedi-lo. Porém, passado pouco tempo, e vendo que António o havia passado mal a ansiar pelo momento de o passar a passar bem sem estar bem passado, o outro bife explicou-lhe que esse não era pedido que ele pudesse fazer a não ser a si próprio, pois nem ele, o outro bife, e muito menos o Pai Natal o poderiam satisfazer.

 

Completamente passado, aqui já não interessa se bem se mal, António deixou o outro bife com um cortante “passar bem” e foi para casa pensar que passaria a mais desconsolada consoada da sua mal passada existência. Só, e descompassado com a ideia de que mais vale só que mal acompanhado, jantou um bife bem passado e passou o resto da noite a dormir, passando a linha do Natal sem se aperceber. Ao acordar, olhou para a árvore luzente que, apesar de tudo, havia comprado e percebeu que alguma coisa se tinha passado, pois no lugar do passado estava lá um presente. Entusiasmado, correu a abri-lo. Era uma bifana.

 

Dormia como um anjo por nascer, mas já se constatava que era uma bela bifana, daquelas que fazem qualquer bife, mesmo o mais indefinidamente passado, como António, ultrapassar-se. A incredulidade guiou-o, qual sonâmbulo, até à casa de banho, onde passou água pelos olhos. Foi então que, confrontado com o espelho, viu que não se via. O seu tempo, dizia-lhe a superfície das imagens avessas - e que ali estampava também a do Natal - tinha passado. António deixara de ser um bife para passar a ser nada, como acontece com todos os bifes. E não lhe restava sequer o consolo de, enquanto nada, pensar que quando fora um bife o havia sido mal passado, já que passara à história com essa incerteza. Resignado, decidiu aprender com o passado e viver plenamente a espécie de segundo nascimento que lhe fora concedida. Outrora recém-nado, hoje recém-nada. Nesse preciso momento, a bifana acordou.

 


 

 

publicado por João Machado às 16:00
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Quarta-feira, 8 de Dezembro de 2010

Noctívagos, insones & afins - As ruínas circulares

Jorge Luis Borges

And if left off dreaming about you…

Trough the Looking-Glass, VI


Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumir-se na lama sagrada, mas daí a poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que a sua pátria era uma dessas infinitas aldeias que ficam rio acima, no flanco violento da montanha, onde a língua zenda não está contaminada do grego e onde é rara a lepra. O que é certo e seguro é que o homem pardo beijou a lama, subiu a margem sem afastar (provavelmente sem sentir) as sanguessugas que lhe dilaceravam as carnes e arrastou-se enjoado e sangrando, até ao recinto circular dominado por um tigre ou um cavalo de pedra, que teve outrora a cor do fogo e agora a da cinza. Essa arena é um templo que os antigos incêndios devoraram, que a floresta pantanosa profanou e cujo deus não recebe as honras dos homens. O forasteiro deitou-se sob o pedestal. Só o despertou o sol alto. Verificou sem assombro que as feridas haviam cicatrizado; fechou os olhos pálidos e adormeceu, não por fraqueza da carne mas por decisão da vontade. Sabia que esse templo era o lugar referido para o seu invencível desígnio; sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido estrangular, a jusante, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que a sua obrigação imediata era o sono. Por volta da meia-noite acordou-o o grito inconsolável de um pássaro. Marcas de pés descalços, uns figos e um cântaro avisaram-no de que os homens da região lhe tinham espiado com respeito o sono e solicitavam o seu amparo ou temiam a sua magia. Sentiu o frio do medo e procurou na muralha delapidada um nicho sepulcral e tapou-se com folhas desconhecidas.

O desígnio que o guiava não era impossível, se bem que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com uma integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Este projecto mágico esgotara o espaço inteiro da sua alma; se alguém lhe perguntasse o seu próprio nome ou qualquer pormenor da vida anterior, não seria capaz de responder. Convinha-lhe o templo desabitado e desmantelado, porque era um mínimo do mundo visível; a vizinhança dos lenhadores também, dado que estes de encarregavam de prover às suas necessidades frugais. O arroz e os frutos do seu tributo eram pasto suficiente para o seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.

Ao princípio, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialéctica. O forasteiro sonhava-se no meio de um anfiteatro circular, que era de certo modo o templo incendiado: magotes de alunos taciturnos fatigavam os degraus; as caras das últimas filas pendiam a muitos séculos de distância e a uma altura estelar; mas viam-se com uma precisão absoluta. O homem dava-lhes lições de anatomia, de cosmografia, de magia: os rostos escutavam com ansiedade e tentavam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que deveria redimir um deles da sua condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e acordado, considerava as respostas dos seus fantasmas, não se deixava enganar pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Procurava uma alma que merecesse participar no universo.
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Ao cabo de nove ou dez noites compreendeu com certa amargura que nada podia esperar dos alunos que aceitavam passivamente a sua doutrina, mas sim dos que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e de afeição, não podiam elevar-se a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora só estava acordado umas horinhas ao amanhecer) despediu para sempre o vasto colégio ilusório e ficou apenas com um único aluno. Era um rapaz taciturno, azedo, desordeiro às vezes, de feições afiladas que repetiam as do seu sonhador. A brusca eliminação dos seus condiscípulos não o desconcertou por muito tempo; os seus progressos, ao fim de poucas lições particulares, conseguiram maravilhar o mestre. No entanto, aconteceu a catástrofe. Um dia o homem emergiu do dono como de um deserto viscoso, fitou a vã luz da tarde que começou por confundir com a da aurora, e compreendeu que não tinha sonhado. Durante essa noite toda e todo o dia, abateu-se sobre ele a intolerável lucidez da insónia. Quis explorar a floresta, extenuar-se; só a custo conseguiu pela cicuta uns quantos lampejos de sono fraco, riscados fugazmente por visões de tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis voltar a reunir o colégio e mal articulou umas breves palavras de exortação, logo este se deformou e se desfez. Na sua quase perpétua vigília, lágrimas de cólera queimavam-lhe os velhíssimos olhos.

Compreendeu que a tarefa de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é a mais árdua a que se pode entregar um homem, embora penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árdua que tecer uma corda de areia ou que cunhar o vento sem cara. Compreendeu que era inevitável um fracasso inicial. Jurou esquecer a enorme alucinação que o desencaminhara ao princípio e procurou outro método de trabalho. Antes de experimentá-lo, consagrou um mês a recuperar as forças que lhe gastara o delírio. Abandonou toda a premeditação de sonhar, e quase a seguir foi capaz de dormir um razoável bocado do dia. As raras vezes que sonhou durante esse período, não ligou aos sonhos. Para retomar a tarefa, esperou que o disco da Lua ficasse perfeito. Depois, à tarde purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e adormeceu. Quase imediatamente, sonhou com um coração a bater.

Sonhou-o activo, quente, secreto, do tamanho de um punho, de cor escarlate na penumbra de um corpo humano ainda sem cara nem sexo, com minucioso amor sonhou-o durante catorze lúcidas noites. Noite a noite, percebia-o com uma evidência cada vez maior. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, a observá-lo, talvez, e corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e de muitos ângulos. Na décima quarta noite roçou a artéria pulmonar com o dedo indicador e a seguir o coração todo, por fora e por dentro. O exame deixou-o satisfeito. Deliberadamente não sonhou durante uma noite; depois, tornou a pegar no coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Em menos de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O inumerável cabelo foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um mancebo, mas este não se levantava nem falava nem podia abrir os olhos. Noite após noite o homem sonhava-o adormecido.

Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um encarnado Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil, tosco e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem destruiu quase toda a sua obra, mas arrependeu-se, (Mais lhe valeria que a tivesse destruído.) Depois de ter esgotado os votos aos nomes da terra e do rio, caiu de joelhos aos pés da imagem que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou o seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trémula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas ao mesmo tempo essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Este múltiplo deus revelou-lhe que o seu nome terrestre era Fogo, que nesse templo circular (e noutros iguais) lhe tinham prestado sacrifícios e culto e que ele magicamente animaria o fantasma sonhado, de modo que todas as criaturas, salvo o próprio Fogo e o sonhador, o pensaram um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que, depois de instruído nos ritos, o enviasse para outro templo desmantelado cujas pirâmides persistem a jusante do rio, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou.

O mago executou as ordens. Consagrou um prazo (que no fim durou dois anos) para lhe descobrir os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, custava-lhe separa-se dele. A pretexto da necessidade pedagógica, dilatava dia após dia as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, porventura deficiente. Às vezes inquietava-o uma impressão de que tudo aquilo já tinha acontecido… Em geral, os seus dias eram felizes; ao fechar os olhos pensava: Agora vou estar com o meu filho. Ou então, mais raramente: O filho que gerei espera por mim e não existirá se eu não for ter com ele.

Gradualmente, lá o foi habituando à realidade. Uma vez mandou-o colocar uma bandeira num píncaro distante. No outro dia, flutuava a bandeira no cume. Tentou outras experiências análogas, cada vez mais audaciosas. Compreendeu com um certa amargura que o seu filho estava pronto para nascer – e talvez até impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o para o outro templo cujos despojos branqueavam rio abaixo, a muitas léguas da inextricável floresta e de pântanos. Mas antes (para que ele nunca soubesse que era um fantasma, para que se julgasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total dos seus anos de aprendizagem.

A sua vitória e a sua paz ficaram turvados pelo desgosto. Nos crepúsculos da noite e da madrugada, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que o seu filho irreal executava rito idênticos, noutras ruínas circulares, rio abaixo; de noite não sonhava, ou sonhava como o fazem todos os homens. Apercebia-se com certa palidez dos sons e formas do universo: o filho ausente alimentava-se dessas diminuições da sua alma. O desígnio da sua vida fora preenchido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. Ao fim de um tempo que certos narradores da sua história preferem calcular em anos e outros em lustros, à meia-noite acordaram-no dois remadores: não conseguiu ver as caras deles, mas falaram-lhe de um homem mágico num templo do Norte, capaz de andar sobre o fogo sem se queimar. O mago lembrou-se de repente das palavras do deus. Lembrou-se de que, de todas as criaturas que compõem o globo, o fogo era a única que sabia que o seu filho era um fantasma. Esta recordação, que o descansou ao princípio, acabou por atormentá-lo. Receou que o seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de qualquer modo a sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projecção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! Qualquer pai se interessa pelos filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou na felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensando entranha a entranha e feição a feição, em mil e uma noites secretas.

O fim das suas reflexões foi brusco, mas anunciaram-no alguns sinais. Primeiro (ao cabo de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; a seguir, para os lados do Sul, o céu com a cor rosada das gengivas dos leopardos; depois as fumaradas que enferrujaram o metal das noites; depois a fuga pânica dos bichos. Porque se repetiu o que acontecera há muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa madrugada sem pássaros, o mago viu abater-se sobre as paredes o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas logo compreendeu que a morte vinha coroar a sua velhice e absolvê-lo dos seus trabalhos. Caminhou ao encontro dos círculos de fogo. Estes não morderam a sua carne, acariciaram-no e inundaram-no sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, e compreendeu que ele próprio também era uma aparência, que outro estava sonhá-lo.

(Extraído do livro «Ficções», de Jorge Luis Borges, traduzido por José Colaço Barreiros,
© Editorial Teorema, Lda., Lisboa, 2000).

publicado por Carlos Loures às 03:00
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Sábado, 9 de Outubro de 2010

Do vazio

Marcos Cruz

António era um bife. Mal passado, passava mal. Mas tinha a resistência suficiente para lutar contra os que o queriam passar bem, pois sabia que “uma vez bem passado, bem passado para sempre”. Passava mal no presente, mais precisamente, já que o seu passado fora até bem passado, ou, como todos os passados, bem e mal passado. Em parte, era com isso que ele se passava: se, por um lado, “uma vez bem passado, bem passado para sempre” e, por outro, o seu passado havia sido bem e mal passado, ou seja, em parte, bem passado, porque não estaria ele bem passado no presente? Talvez, sem o ter presente, estivesse.

Mas então por que razão passava mal? Era uma problema pesado, difícil de ultrapassar, e por isso António pediu ajuda. Foi ter com um bife que, por haver passado muito e (aparentemente) passar bem sem estar bem passado, talvez o pudesse fazer passar melhor no futuro, passando-lhe uma receita, ou algo assim, que o dispensasse de ser bem passado para deixar de passar mal. Era o melhor presente possível e, à beirinha do Natal, António passava o tempo todo, incluindo todo o tempo passado com o outro bife, a pedi-lo. Porém, passado pouco tempo, e vendo que António o havia passado mal a ansiar pelo momento de o passar a passar bem sem estar bem passado, o outro bife explicou-lhe que esse não era pedido que ele pudesse fazer a não ser a si próprio, pois nem ele, o outro bife, e muito menos o Pai Natal o poderiam satisfazer.

 Completamente passado, aqui já não interessa se bem se mal, António deixou o outro bife com um cortante “passar bem” e foi para casa pensar que passaria a mais desconsolada consoada da sua mal passada existência. Só, e descompassado com a ideia de que mais vale só que mal acompanhado, jantou um bife bem passado e passou o resto da noite a dormir, passando a linha do Natal sem se aperceber. Ao acordar, olhou para a árvore luzente que, apesar de tudo, havia comprado e percebeu que alguma coisa se tinha passado, pois no lugar do passado estava lá um presente. Entusiasmado, correu a abri-lo. Era uma bifana.

 Dormia como um anjo por nascer, mas já se constatava que era uma bela bifana, daquelas que fazem qualquer bife, mesmo o mais indefinidamente passado, como António, ultrapassar-se. A incredulidade guiou-o, qual sonâmbulo, até à casa de banho, onde passou água pelos olhos. Foi então que, confrontado com o espelho, viu que não se via. O seu tempo, dizia-lhe a superfície das imagens avessas - e que ali estampava também a do Natal - tinha passado. António deixara de ser um bife para passar a ser nada, como acontece com todos os bifes. E não lhe restava sequer o consolo de, enquanto nada, pensar que quando fora um bife o havia sido mal passado, já que passara à história com essa incerteza. Resignado, decidiu aprender com o passado e viver plenamente a espécie de segundo nascimento que lhe fora concedida. Outrora recém-nado, hoje recém-nada. Nesse preciso momento, a bifana acordou.

(ilustração de Adão Cruz)
publicado por Carlos Loures às 19:30
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Sábado, 24 de Julho de 2010

A Promoção

Im conto inédito de António Sales

Jeremias Palonso da Silva é pobre, quer dizer, está socialmente situado na escala hierárquica dos pobres. É pobre mas não miserável, ou seja não se encontra abaixo da linha insustentável da pobreza. Todavia, esta situação não foi determinada por azares da vida ou despedimento compulsivo o que também seria um azar.

Jeremias Palonso da Silva é pobre por opção. Esquisito, não é! Sendo economista era natural que “beneficiasse” das condições normais de qualquer cidadão pronto a ganhar a vida para casar, ter filhos, alimentar a família, pagar a escola, os livros, a casa, os electrodomésticos, a mobília, plasmas, computadores wireless, automóvel, férias, impostos, coisas que obrigam qualquer sujeito a ter 2 ou 3 empregos, fazer horas extraordinárias, comer mal, não acompanhar o crescimento das crianças, criar úlceras duodenais, esquecer-se da mulher e apanhar um par de cornos, pagar ao estado um balúrdio de IRS, ter uma depressão e cair redondo no sofá do psiquiatra antes de lhe dar o AVC da praxe.


Por acaso ou deliberadamente (foi coisa que não consegui tirar a limpo), Jeremias Palonso escapou a esta malha porque é solteiro, não tem filhos o que representa economia superior a um totoloto, como se imagina. Nestas condições só obedece às suas próprias exigências. Faz bem o que sabe, impecável nas suas tarefas e nem ganha mal para as exigências da sua vida. Ao entardecer de um dia molhado e ventoso o chefe chamou-o para lhe anunciar, com um sorriso, que iria ser promovido. Aumento e mordomias de automóvel novo, telemóvel última geração, 500 euros mensais para o cartão de credito e ajudas de custo em deslocações dentro ou fora do país. Fora do país Dr. Bento? Isso mesmo meu caro, um director das relações exteriores não era certamente para ali ficar como um escriturário. Passaria aos quadros superiores da empresa.

Palonso ficou atordoado. O corpo tomado por temperatura tropical perante tão surpreendente proposta e confiança na minha pessoa. Não duvide Palonso, não duvide! Pois, mas se o doutor me permite dê-me 48 horas para pensar. Pensar? Mas pensar o quê? – inquiriu o doutor admirado com tão absurdo pedido. Ó homem mas se não lhe agrada diga? Vamos negociar. Nem por sombras Dr. Bento. Negociar seria da minha parte ingratidão. Eu gosto de pensar. Ás vezes nem penso mas preciso de tempo para fingir que penso. Suponho que é uma doença da personalidade, coisa que dá nos economistas resultante do vício analítico que não consigo dominar. Agradeceu e retirou-se a fim de começar a pensar, ou ir pensando, porque o caminho da clarividência do pensamento é coisa que se faz na mais completa e fria lucidez da razão.

A oferta era tentadora! Uma oportunidade para sete cães a um osso se ele tivesse a indigna veleidade de largar o osso. Indigna, mas indigna porquê? Promovem-no, é só. Merece-o pelo trabalho executado e como tem resolvido alguns negócios da exportação. Aceitar é a oportunidade para abandonar a mediania da sua vida lisboeta presa de modesto rendimento. É certo que está confortável na velha casa em Alfama, mesmo atraente e com a distinção de uma preciosidade antiga recuperada. Os amigos gostam de lá ir e as amigas, então, perdem-se por lá ficar. Três assoalhadas remodeladas num milagre decorativo para uma renda saudável porque é barata. Bolas! Mas aceitar a proposta do Dr. Bento muda o cenário para Campo de Ourique, um bairro que sempre o atraiu: ruas amplas, arborizadas, restaurantes, livrarias, ambiente convidativo a alugar 4 assoalhadas, amplas, com todos os requisitos. Decoraria tudo a seu gosto e sem olhar a despesas.

Neste pensamento de novo-rico desarticulou-se qualquer coisa no cérebro que o deixou perplexo. “Sem olhar a despesas” significava já em si uma atitude veloz que serve a promoção do ego. Era como se visse tudo novo, moderno, rico, espampanante antes mesmo de nada ter. Plasmas, som “sorounded”, sofás Chateaux de Aix, cozinha equipada como sala de operações culinárias, cama King Size com lençóis de seda. Para quê Jeremias? Tu só sabes fazer omoletas (e mal), ovos estrelados, hambúrgueres e coisas assim básicas para as quais um fogão de dois bicos é suficiente. E os lençóis de seda para receber as “meninas”? Sabes bem que o quarto é relativo porque a companhia delas é a tua carteira.

Jeremias Palonso equacionou estas situações com o ar sério que punha nas coisas por ele consideradas importantes. Mesmo com o aumento tornava-se óbvio que teria de recorrer ao crédito para comprar todo esse conforto moderno. Mas crédito era juros, encargos, responsabilidades. Quando desfrutasse de todas aquelas molezas da vida tornar-se-ia difícil recuar porque o bem-estar quebra as pessoas. Se a promoção era mais dinheiro e mordomias também seria mais trabalho, mais azáfama, concentração, stress. A máquina fiscal caí-lhe em cima e nunca mais daria tréguas. Com a subida do rendimento subiam as tentações que passariam a vícios. Gastar não é difícil, o difícil é conseguir dominar essa vontade demoníaca. O mal do endividamento das pessoas é a ambição, o vício, o prazer, o desejo, o discurso optimista, o prestígio, o poder, a mais valia social, as férias no estrangeiro, os hotéis de 5 estrelas, a vaidade em ser notícia nos jornais económicos. A sociedade não quer pobres mas ricos e há que fazer tudo para estupidificar os primeiros e santificar os segundos.

Dentro desta meditação pouco propensa ao entusiasmo, Jeremias Palonso da Silva propôs-se estabelecer, por curiosidade, uma lista do essencial à sobrevivência de um indivíduo em condições de dignidade. Divertiu-se ao reconhecer a consciência do supérfluo como modo de conquistar a liberdade. Jeremias da Silva regozijou com a imensa poupança que um marmanjo pode fazer no seu dia a dia. Podia mesmo ir mais longe e recorrer à Abraço ou ao Banco Contra a Fome para receber dois cabazes de compras por ano. A conclusão entregava-se à sua exclusiva vontade mandando nos seus gastos contra a vontade de estranhos. Poderia mesmo trabalhar menos e receber menos porque também estado comeria menos. Nada de ser escravo do trabalho para bem do consumo e incansável gestor para bem da pátria.

Nas primeiras 24 horas ruminou ideias, tal como os bois os alimentos, a fim de encontrar o seu futuro nas outras 24 e chegar ao Chefe com uma resposta precisa conforme havia prometido. A sua gratidão por se terem lembrado dele era infinita até porque as condições excelentes surpreendiam. Contudo, analisando o sistema social e político em que viviam, verificando a voracidade do estado pelo dinheiro dos contribuintes, decidira agradecer mas declinar o convite. O Chefe ficou siderado. Nem se mexeu: o olhar fixo no empregado, a boca aberta com as palavras suspensas nos lábios. Ó Jeremias você está a gozar comigo, só pode! Então, ensandeceu. Nem uma coisa nem outra, doutor. Nunca falei tão sério e nunca estive tão lúcido. E se não for pedir-lhe muito gostava mesmo de passar do escritório para as embalagens e despacho. Palonso! Exclamou o Chefe levantando-se, mas isso será baixá-lo de categoria, baixar o ordenado e para um lugar desses não precisamos de um economista, qualquer 9º ano mal tirado serve. Palonso você só pode estar a mangar comigo. Se assim não for, Dr. Bento, aceite o meu pedido de demissão.

E foi assim que Jeremias Palonso da Silva se tornou pobre por sua livre vontade.
publicado por Carlos Loures às 01:00
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Domingo, 11 de Julho de 2010

Insones, noctívagos & afins - Flor, telefone, moça

Carlos Drummond de Andrade

Não, não é um conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras vezes não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente, porque era a amiga quem falava, e é doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.

Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores – ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.

- Sei de um caso de flor que é tão triste!

E sorrindo:

- Mas você não vai acreditar, juro.

Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.

- Era uma moça que morava na rua General Polidoro – começou ela. – Perto do cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que de não ver passar nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.

Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério para dar uma espiada. Você já reparou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores – por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstito até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar para passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direcção à praia, descer no mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça, pela curiosidade dos enterros, sei lá por que, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo. Coitada!

- No interior isso não é raro…

- Mas a moça era do Botafogo.

- Ela trabalhava?

- Em casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir a certidão de idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear – ou melhor, “deslizar” pelas ruinhas brancas do cemitério, mergulhada em cisma. Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há-de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro onde está a parte nova do cemitério e os túmulos mais modestos. E deve ter sido lá que, uma tarde, ela apanhou a flor.

- Que flor?

- Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz – não tem cheiro como inconscientemente já se esperava – depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso.

Se a moça jogou a margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa, também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer este ponto, mas foi incapaz. O cero é que já tinha voltado, estava em casa bem quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu.

- Alooô…

- Quede a flor que você tirou de minha sepultura?

A voz era longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E meio sem compreender?

- O quê?

Desligou. Voltou para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos depois, o telefone tocava de novo.


- Alô.

- Quede a flor que você tirou de minha sepultura?

Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas preparada.

- Está aqui comigo, vem buscar,

No mesmo tom lento, severo e triste, a voz respondeu:

- Quero a flor que você me furtou. Me dá a minha florzinha.

Era homem, era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. A moça topou a conversa:

- Vem buscar, estou te dizendo.

- Você bem sabe que eu não posso buscar coisa nenhuma, minha filha. Quero minha flor, e você tem obrigação de devolver.

- Mas quem está falando aí?

- Me dá minha flor, eu estou te suplicando.

- Diga o nome, senão eu não dou.

- Me dá minha flor, você não precisa dela e eu preciso. Quero minha flor, que nasceu na minha sepultura.

O trote era estúpido, não variava, e a moça, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve mais nada.

Mas no outro dia houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, inocente, foi atender.

- Alô.

- Quede a flor…

Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira é essa! Irritada voltou ao trabalho. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa recomeçasse:

- Olhe, vire a chapa. Já está pau.

- Você tem que dar conta de minha flor – retrucou a voz de queixa – Pra que foi mexer logo na minha cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta aquela flor.

- Esta é fraquinha. Não sabe de outra?

E desligou. Mas, voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a ideia daquela flor, ou antes, a ideia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no cemitério e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria fácil acertar. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem se de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como do interurbano. Parecia vir de mais longe ainda… Você está vendo que a moça começou a ter medo.

- E eu também.

- Não seja bobo. O facto é que aquela noite ela custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu mesmo quase nada. A perseguição telefónica não parava. Era sempre à mesma hora, no mesmo tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mundo, e que o seu sossego eterno – admitindo que se tratava de pessoa morta – ficara dependendo da restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça, além do mais, não se queria amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E se a voz não se calasse, ela tomaria providências.

A providência consistia em avisar o irmão e depois o pai. (A intervenção da mãe não abalara a voz). Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas o curioso é que, quando se referiam a ele, diziam «a voz».

- A voz chamou hoje? – indagava o pai, chegando da cidade.

- Ora. É infalível – suspirava a mãe, meio desalentada.

Descomposturas não adiantavam, pois, ao caso. Era preciso usar o cérebro. Indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. Pai e filho dividiram entre si as tarefas. Passaram a frequentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas, Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. E restava a rede de telefones particulares. Um por cada apartamento, dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir?

Dizem que o rapaz começou a tocar para todos os telefones da rua General Polidoro, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha dois-meia… Discava, ouvia o alô, conferia a voz – não era – desligava. Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar por ali perto – o tempo de sair do cemitério e tocar para a moça – e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão da hora também inspirou à família algumas diligências. Mas infrutíferas.

Claro que a moça deixou de atender ao telefone, Não falava mais nem para as amigas. Então a “voz”, que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais “você me dá minha flor”, mas “quero minha flor”,”quem furtou minha flor tem de restituir”, etc. Diálogo com essas pessoas a “voz” não mantinha. Sua conversa era com a moça. E a “voz” não dava explicações.

Isso durante quinze dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalos, mas teve de queixar-se à polícia. Mas, ou a polícia estava muito ocupada em prender comunistas, ou investigações telefónicas não eram a sua especialidade – o facto é que não se apurou nada. Então o pai correu à Companhia Telefónica. Foi atendido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a factores de ordem técnica…

- Mas é a tranquilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar do telefone?

- Não faça isso, meu caro senhor. Seria uma loucura. Então é que não se apurava mesmo nada. Hoje em dia é impossível viver sem telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho de amigo. Volte para casa, tranquilize a família e aguarde os acontecimentos. Vamos fazer o possível.

Bem, você já está percebendo que não adiantou. A voz sempre mendigando a flor. A moça perdendo o apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair á rua ou para trabalhar. Quem disse que ela queria mais ver enterro passando. Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. Porque – já disse que era distraída – nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse…

O irmão voltou de São João Batista dizendo que do lado por onde a moça passara aquela tarde havia cinco sepulturas plantadas.

A mãe não disse coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, comprou cinco ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi derramá-los, votivamente, sobre os cinco carneiros. Voltou para casa e ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto propiciatório havia de aplacar a mágoa do enterrado – se é que os mortos sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver afligido.

Mas a voz não se deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela miúda, amarrotada, esquecida que ficara rolando no pó e já não existia mais. As outras vinham de outra terra, não brotavam do seu estrume – isso não dizia a voz, mas era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam no seu propósito. Flores, missas, que adiantava?

O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortíssimo a quem expôs longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contacto com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era a sua fé de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às vezes a família ainda conjecturava, embora se apegasse cada dia mais a uma explicação desanimadora, que era a falta de qualquer explicação lógica para aquilo), seria de alguém que houvesse perdido toda a noção de piedade; e se era de morto, como julgar os mortos? De qualquer modo, havia no apelo uma tristeza húmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu sentido cruel, e reflectir: até a maldade pode ser triste. Não era possível compreender mais do que isso. Alguém pede continuamente uma certa flor, e essa flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem esperança?

- Mas, e a moça?

- Carlos, eu preveni que o meu caso da flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu.
publicado por Carlos Loures às 01:00
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