Ao Carlos Loures
Nos grandes armazéns da rua Preciados, a um sábado pela tarde, quando caem os primeiros pingos grossos de chuva – pérolas de gelo, prenúncio da neve que cairá nuns dias mais -, nos grandes armazéns, dizia, depósito sem alma de livros e música, empilhados em quatro andares sem um único recanto onde sentar-se, cruzo-me com a mulher que um dia imaginei e que afinal existia, ou talvez tenha passado a existir nesse momento em que a pensei, talvez tenha irrompido nesse dia pelo mundo, com cinquenta anos feitos, com uma biografia, uma infância que lhe enche as molduras de fotos que terá na sala, um passado que a trouxe até aqui, a este sábado à tarde em pleno Inverno, nos grandes armazéns da rua Preciados.
Chamar-se-á Gloria ou Rocío ou Blanca, ou outro nome luminoso e festivo, porque seria demasiado cruel chamar-lhe Soledad.
Coloco-me atrás dela na caixa e espreito sem vergonha os artigos que pousa sobre o balcão, menos por coscuvilhice do que para confirmar o que já conheço, o que imaginei certo dia, longe da rua Preciados e dos seus grandes armazéns.
“How green was my valley”, “It’s a wonderful life”, “The magnificent Ambersons”, “Meet John Doe”. Pousa-os um por um com carinho no balcão, como se desfrutasse já da sua companhia, como se sentisse já por cada um a ternura que nos une a um velho amigo, como se de cada um conhecesse as virtudes e as manias, e tomasse ambas com o enternecimento risonho que reservamos aos que nos são muito queridos.
O funcionário da caixa desliza-os suavemente pelo tapete e pousa-os com cuidado após o bip do leitor de código de barras, e Rocío (porque afinal me decidi chamar-lhe assim, Rocío, orvalho, frescura da manhã) olha o rapaz com gratidão, pressente-o conhecedor desses comuns segredos que outros não vêem, por mais que se desfilem frente aos seus olhos, estende-lhe o cartão com um quase imperceptível tremor nos dedos, ele passa-o na máquina, ela digita o código, a operação desenrola-se sem uma única troca de olhares, e quando a máquina debita o seu talão, já ele guardou tudo numa bolsa de papel reciclado, agora que os sacos de plástico se fizeram malditos, e só então se olham fugazmente, murmurando um agradecimento mútuo.
E eu perco Rocío para sempre, mas sei, porque a conheço, que ela passará o fim-de-semana em casa, com o iogurte de meio quilo sobre os joelhos, as persianas semicerradas para que a luz não entre, e porque o mundo de fora lhe interessa cada vez menos à medida que o outro, o seu, se vai ampliando.
E enquanto George Bailey corre a cidade em desespero, e Rocío se encolhe no sofá, reconfortada na sua tristeza, eu penso como seria o dia de hoje na rua Preciados se Rocío nunca tivesse nascido, se não houvesse esta tarde em que coincidimos nos grandes armazéns e eu a deixei fugir para sempre sem saber que a inventei.
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