Até 1963 só conhecia de Lisboa a estação de Santa Apolónia e a Praça do Chile onde vivia um tio meu que visitei uma ou duas vezes com os meus pais. A única coisa que recordo dessa época era a de que brincava com os meus primos, no terraço existente por cima do último andar (3º) do prédio onde viviam.
A ideia de vir para Lisboa começou desde cedo a germinar no meu cérebro como o único objectivo a alcançar. A partir dos 13 anos senti que tinha de sair da cidade onde nasci (Castelo Branco) e que nada tinha para me oferecer no futuro.
Foi assim que em Setembro de 1963, desembarquei em Santa Apolónia, acompanhado da minha mãe para fazer exame de admissão ao Instituto Comercial de Lisboa. Fiquei aprovado. Matriculei-me no ensino nocturno, pois precisava trabalhar para me sustentar.
Voltei definitivamente a Lisboa em Outubro de 1963 e, depois de responder a vários anúncios, fui admitido em Novembro para a contabilidade de uma empresa, nas Escadinhas da Praia, no Bairro de Santos.
Começou assim o meu contacto com a cidade de Lisboa. Todos os dias apanhava o eléctrico na Praça do Chile para Santos (Como andava sempre atrasado depressa aprendi a saltar para o eléctrico em movimento – era giro). Ia a almoçar a casa e voltava para a empresa, de onde saía por volta das 18 horas, seguindo depois a pé para o Instituto Comercial (chamado “Cortiço”) na Rua das Chagas ao Calhariz. As aulas começavam ás 19 horas.
Em 1963 já havia o metropolitano de Lisboa – troço Restauradores/Rossio; em 1966 o troço Rossio/Anjos e em 1972 a ligação Anjos/Alvalade. N altura não gostava muito de andar debaixo da terra como as toupeiras e por isso privilegiava o eléctrico e os autocarros.
A adaptação ao novo modo de vida (trabalhar de dia e estudar de noite), mas principalmente o fascínio por conhecer a cidade de Lisboa (mais à noite do que de dia), tiveram como consequência que no primeiro ano lectivo só passei a duas disciplinas (cadeiras) e no segundo ano a quatro.
Foram dois anos de descoberta desta cidade que, de tal modo me fascinou, que nunca mais daqui saí (já lá vão 47 anos). Aqui aprendi a ser homem, do dia e da noite. Tenho na memória muitas estórias dessa vivência. A cidade era tão grande e oferecia tanto que num dia podia viver várias vidas.
Tudo era diferente para melhor e para pior. Por exemplo na casa de meus pais havia uma casa de banho, com sanita e chuveiro. Aqui em Lisboa vivi em alguns bairros antigos onde não havia casa de banho. Existia apenas uma “Sanita” que estava no exterior da casa (no vão das escadas traseiras). Tomava banho num balneário público na Rua do Poço do Borratém.
Frequentei os bares/cabaret do Intendente, do Cais do Sodré, da Praça da Alegria da Baixa, da Av. da Liberdade e todos os outros onde (ainda jovem) me deixavam entrar.
Ia aos bailes na Casa do Alentejo, na Casa de Trás-os-montes e Alto Douro, na Casa do Algarve, na Casa de Lafões, na casa das Beiras, na casa da ….. Espanhola (na Rua da Trindade, próximo da cervejaria) e até em sociedades recreativas na zona do Beato e outras.
Havia também bailes no fim do ano e Carnaval em quase todos os cinemas e teatros de Lisboa (Monumental, Roma, Império, Condes, Éden, S. Jorge, Jardim Cinema, Paris, Promotora, etc.). Nas festas dos Santos populares dançávamos nas Ruas do Bairro Alto, Alfama, Mouraria, Bica, e outros.
Também dançávamos nas casas de algumas meninas que, como não iam a outros bailes, convenciam as mães a organizar pequenas festas.
Quando as festas se prolongavam até de madrugada, íamos beber cacau à Praça da Ribeira.
Estudava no “Paladium” à noite no piso superior, onde estavam os bilhares, junto a uma porta que diziam em tempos fazer ligação com o cabaret “Príncipe Negro” na Calçada da Glória.
Nesse café conheci pela primeira vez a figura do “chulo”, situação que de inicio me incomodou mas a que depois me habituei. Sentava-se à mesa com uma mulher na frente; Pedia “o dinheiro”. Ela colocava notas sobre a mesa. Ele dizia que era pouco e dava pontapés nas pernas da senhora, por debaixo da mesa. Os pontapés só terminavam quando o “chulo” entendia que as notas sobre a mesa eram suficientes.
Vivi o ambiente do Parque Mayer. Lembro-me de ver o teatro de Revista, em particular e várias vezes aquelas em que entrava uma jovem mulher, que deixava todos a suspirar:
Vi pela primeira vez a polícia a bater nas pessoas de forma indiscriminada na Rua Áurea, quando estava à espera da minha namorada que trabalhava num Banco. Apenas tive tempo de me esconder num vão de escada.
Como o dinheiro era pouco fiz-me sócio da “Livrelco” (próximo da feira Popular) Em Entrecampos, para poder ler os livros que gostava. Era uma cooperativa de estudantes, consumidores de livros, que teve uma grande importância histórica na última época do regime fascista, o período marcelista. Foi extinta pelo governo em fins de 72 ou princípio de 73. Em relação há música o sistema era outro. Todos os sábados ia com a namorada à loja “Discoteca Melodia” na Rua do Carmo. Entrávamos, escolhíamos vários discos (single) e depois ouvíamos, por uns “headphones”, durante cerca de duas horas os últimos êxitos que iam sendo publicados de música estrangeira. Para podermos estar todo aquele tempo, no final comprávamos um disco.
No verão ia à praia de Carcavelos, com as raparigas que viviam no Bairro onde morava. Apanhávamos o eléctrico e depois o comboio nos Cais do Sodré às 6 horas da manhã. Naquela praia aprendi a nadar sem mestre.
Vi quase todos os espectáculos de música Rock dos anos 60, que se exibiam em Lisboa (geralmente no Monumental), portugueses e estrangeiros.
Como amante de música desde pequeno, nunca gostei muito do fado por achar que era tudo uma grande tragédia mas, chegado a Lisboa depressa entendi que o Fado era parte da cidade e não era só “choraminguices”. O fado tinha várias expressões que retratavam a vida social de Lisboa (os bairros pobres, a classe média, os ainda "fidalgos", estórias de cavalos e touradas, a exaltação do património da cidade, das suas vistas, do mar e dos seus poetas.
Frequentei por isso também todas as casas de fado que havia nos bairros típicos de Lisboa.
Vivi nas ruas de Lisboa o dia 25 de Abril de 1974 e senti a verdadeira liberdade no 1º de Maio de 1974 na Alameda D. Afonso Henriques. Todos se sentiam livres e falavam entre si de igual para igual.
Por tudo isto e o muito que tenho na memória, fica a imagem desta linda cidade de Lisboa, que me adoptou aos 17 anos e cuja beleza redescubro cada vez que a revejo de um miradouro, da ponte 25 de Abril, de um cacilheiro ou de um avião.