Sexta-feira, 27 de Agosto de 2010
Os regimes democráticos são regimes em movimento. Verdadeiramente não há democracia; há processos de des-democratização e de re-democratização. O que caracteriza uns e outros são as transformações que ocorrem nos vínculos políticos que unem o Estado e os cidadãos comuns e os vínculos sociais que unem os cidadãos entre si. Estes processos nunca se confinam exclusivamente ao Estado; ocorrem também na sociedade. Identificar os processos dominantes num dado momento é fundamental para tomar o pulso à qualidade da vida política e social. Os factores que os condicionam variam de país para país mas há também evoluções convergentes a nível internacional das quais é possível de deduzir o espírito da época. As três últimas décadas caracterizaram-se por um conflito muito intenso entre processos de democratização e de re-democratização, por um lado, e de des-democratização, por outro. Ao mesmo tempo que se democratizaram os sistemas políticos – Sul da Europa, anos setenta, Europa Central e de Leste, África e América Latina, anos oitenta e noventa – des-democratizaram-se as sociedades com o aumento das desigualdades sociais, da violência e da insegurança pública.
Tudo indica que este conflito foi decidido a favor dos processos de des-democratização que hoje, com a possível excepção de alguns países da América Latina, dominam o nosso tempo. Eis os sinais mais evidentes. Quando as desigualdades sociais se aprofundam, as políticas públicas, em vez de as reduzirem, ratificam-nas. Exemplos: eficácia fiscal centrada nas classes médias; precarização do emprego com as mudanças no direito do trabalho que se anunciam; a degradação do serviço nacional de saúde. A protecção dos cidadãos e dos não cidadãos contra actos arbitrários do Estado ou de outros centros de poder económico está a diminuir. Exemplos: o encerramento de centros de saúde sem avaliação de custos sociais; o desemprego decorrente das deslocalizações das empresas; a suspensão da regularização dos imigrantes. A falta de transparência das decisões e ausência de controle dos cidadãos sobre as políticas públicas. Exemplos: a corrupção endémica (o caso Somague é a ponte do iceberg); o tráfico de influências que domina as privatizações e os investimentos públicos (a localização do novo aeroporto é um exemplo). O aumento da violência e da insegurança pública. Exemplos: a incompreensível descoordenação entre as forças de segurança; a pasmosa falta de modernização dos meios de investigação criminal ante um crime cada vez mais modernizado; ausência de critérios para organizar o Estado segundo uma lógica territorial (serviços básicos) e uma lógica operacional (serviços especializados).
A des-democratização que ocorre no Estado é paralela à que ocorre na sociedade. Degradam-se as redes de confiança e de solidariedade; medicaliza-se a solidão e a angústia; reduz-se ao mínimo a aspiração familiar (a decisão de não ter filhos); eleva-se ao máximo o stress familiar quando há crianças e estas são as primeiras vítimas. Se a sociedade politicamente organizada não accionar processos de re-democratização, pode estar em causa a sobrevivência da democracia. O que vem não será uma ditadura. Será uma ditamole ou uma democradura.
(Publicado na revista "Visão" em 13de Setembro de 2007)
Segunda-feira, 12 de Julho de 2010
Carlos Leça da VeigaUma outra Constituição Política (Continuação)
Se, ao longo das legislaturas passadas e actuais, a opinião pública só vai conhecendo – porém sem qualquer valor operacional – as variações das suas apetências e das suas próprias intenções eleitorais, na conformidade de quanto resulta dos inquéritos aleatórios que lhe são feitos por e para privados, então, para que o Congresso, no seu período anual de funcionamento, tenha uma maior aproximação, momento a momento, com a realidade mais sentida pela população eleitora ter-se-á de introduzir nas votações do Congresso da República, um número de Cidadãos e de Cidadãs, candidatos não eleitos nas últimas legislativas mas representantes significativos de segmentos minoritários do eleitorado nacional e, assim, ao influenciar as deliberações do Congresso, torne a Democracia muito mais imprevisível e, sobretudo, muito mais válida. Mas mais, a presença destes Jurados no Congresso obrigará todos os membros deste Órgão da Soberania, apetrechados com o direito a voto e às iniciativas políticas e legislativas próprias, a terem de fazer ouvir-se sob a expectativa de conseguirem a sensibilização convincente não só dos seus pares mas, também, a dos jurados e não, como na prática parlamentar actual, em que basta-lhes dizerem qualquer coisa, inclusive coisa sem nexo, que já sabem quantos votos favoráveis conseguirão.
Hoje em dia, na Assembleia da República, logo à partida, a maioria que suporta o Executivo Nacional sabe, de antemão, que qualquer insuficiência ou deficiência explicativa, que qualquer ausência de fundamentação para quanto proponha ou defenda e, mais acintoso, qualquer atropelo ao direito instituído, têm, desde logo, os votos precisos para ser vitorioso. É forçoso, tal como num tribunal, ter de pensar-se como é que os Jurados reagirão, neste caso, às iniciativas políticas apresentadas, aos seus méritos e à maneira mais ou menos completa como são expostas e, por igual, como são, ou não, contrariadas. A Democracia, como a experiência histórica o tem demonstrado, só poderá sê-la se tiver de viver na expectativa do imprevisível. Valerá a pena reparar-se nos actuais debates parlamentares em que, regra muito comum, ninguém responde a ninguém, em que ninguém tem de trazer consigo fundamentações bem acabadas e em que quem quer que seja, com maior ou menor perspicácia ou, maior ou menor desfaçatez, contraria ou aprova as propostas apresentadas, sabendo-se que, no final, as votações, voz popular, são favas contadas. Na velha Grécia os deputados escolhidos por sorteio ajudaram a que a História consagrasse Atenas como fundadora dos méritos virtuosos da Democracia. Agora não é pretendido utilizar personalidades inteiramente aleatórias, fruto do acaso dum sorteio mas sim Cidadãos ou Cidadãs que, efectivamente, representam uma parte importante do eleitorado do qual, em tempo oportuno, mau grado derrotados, tenham obtido uma aceitação significativa, por exemplo, votações favoráveis de, no mínimo, 10% dos votos expressos.
Ainda quanto à organização do poder político e tendo em atenção o conteúdo do Artigo 2º da Constituição actual, muito em especial no que diz respeito ao aprofundamento da Democracia participativa, parece ter grande importância para a formação democrática da vontade política da população que, cada Circulo Eleitoral Legislativo passe a ser uma estrutura orgânica da Democracia e tenha um funcionamento, tanto ordinário como extraordinário, sob convocatória duma Mesa de Presidência eleita em lista própria no mesmo acto da eleição do Deputado Legislativo do Circulo. Esta Assembleia do Circulo Legislativo permitirá que a comunidade participe activa e directamente na vida política nacional com a operacionalidade que actual Artigo 109º não faculta e, nessas condições, não mantenha os Cidadãos sujeitos a serem, apenas, eleitores a prazos fixados. A Assembleia do Circulo Legislativo, por intermédio da sua Presidência, tem de ser convocada ordinariamente uma vez por ano durante o mês anterior ao início da sessão legislativa do Congresso da República e extraordinariamente por iniciativa do Presidente da Mesa do Circulo, do Deputado eleito pelo Circulo, a pedido fundamentado dirigido à Mesa, do, ou dos Candidatos vencidos na última eleição para Deputado pelo Circulo (desde que sejam os que tenham obtido pelo menos uma percentagem eleitoral superior a 10%) e, também, a pedido dum número significativo (a determinar-se) de eleitores à semelhança do previsto no Artigo 263º da actual Constituição da República e que diz respeito à constituição e área da Organização de Moradores. A Mesa da Assembleia do Circulo Eleitoral Legislativo tem por obrigação receber todas as opiniões e sugestões legislativas de qualquer Eleitor e, em tempo devido, para aceitação, apreciação e votação, apresentá-la à Assembleia. O Deputado do Circulo Eleitoral ficará sujeito ao mandato imperativo face a todas as deliberações da Assembleia do Circulo Eleitoral que obtenham mais de 50% de votos favoráveis entre os presentes na Assembleia.
Parece ser muito importante que a Constituição da República passe a permitir ao Municipalismo poder ter uma afirmação política com uma capacidade significativa de intervenção no nível nacional. Considera-se ser necessário haver uma estrutura constitucional para a congregação orgânica de todos os Municípios – a Assembleia Municipal da República – em que cada uma delas esteja representado pelo respectivo Presidente e cujo funcionamento só tenha efeitos de circunstância política. Para efeitos da sua organização e representação no Congresso da República terá de eleger um Conselho Superior Municipal constituído pelos trinta Presidentes de Câmaras mais votados nessa Assembleia Municipal da República, isto é, dez por cento do total das Câmaras Municipais.
Sexta-feira, 18 de Junho de 2010
Carlos Leça da Veiga
É preciso começar a pensar numa Terceira República. A Constituição da República, tal com está instituída, é uma solução política que deve ser contestada tendo em vista o seu abandono e a sua substituição por um texto fundamental aprovado por plebiscito nacional que, pelo menos, abula as disposições actuais consideradas erradas por serem, desde logo, limitativas do exercício bastante e suficiente da cidadania e que, também, como é premente, acrescente quantas garantam, comprovada e inequivocamente, a todo o instante, a salvaguarda efectiva da vontade livre da população e das condições reais da vida nacional. Textos constitucionais com tibiezas e falhos de compromissos políticos frontais, definitivos e inquestionáveis não servem os Cidadãos e tudo permitem.
A Terceira República, com uma outra Constituição, tem de conseguir impor-se.
Na vida, como na ciência, só há progresso pela eliminação de tudo quanto esteja comprovadamente errado e nunca pela afirmação de verdades que, estas, quantas vezes, acabam por não ser verificáveis. Nada de ortodoxias!
Desde 1820 que as produções constitucionais portuguesas, nas suas variadas formulações – excluam-se as perturbações fortemente antidemocráticas do cabralismo, do sidonismo e do salazarismo – uma após outra, com uma constância sistemática, têm pontuado a vida político-social portuguesa contudo, em boa verdade, nunca tiveram as actualizações nem as adaptações mais imperiosas antes sim, no seu essencial, com desprezo por quanto a sociologia poderá ensinar, permaneceram limitadas a repetir quanto, em matéria de organização constitucional, é importado do exterior europeu.
Na Europa e para a Europa, o reino unido e o estado francês, têm sido os fornecedores tradicionais das modalidades constitucionais que, como noutros estados, fazem as suas aparições. Desde os idos da Magna Carta, passando pelo “Bill of Rights”, pelo retrocesso intolerável consequente ao discursar de Burke e pelo falhanço constitucional do regime de assembleia da Revolução setecentista no estado francês, o modelo constitucional adoptado para os portugueses prossegue inalterado no mais fundamental. Tudo continua a passar-se como se nada mudasse na História. Tudo tem sido arquitectado sem ter-se na conta devida o número dos Homens e das Mulheres que, sucessivamente, ao longo da História, adquirem consciência social, ganham instrução, reforçam e aperfeiçoam a sua herança cultural, sentem e percebem a força das ideias, reconhecem o direito de partilhar todos os benefícios, desejam as vantagens dum desenvolvimento humanista, reclamam os seus reposicionamentos sociais e, com maior ou menor discernimento político, reclamam o direito de participar no usufruto da liberdade, da igualdade e da fraternidade que, a todos, por igual, tem de contemplar. Nas sociedades actuais as mudanças sociais não podem deixar de fazer sentir-se a todos os níveis institucionais e, consequentemente, as Constituições políticas dos Estados, para poderem afirmar-se como democráticas, têm de contemplá-las com uma ponderação que resulte dum balanço entre quanto do passado, por ser vantajoso, deverá persistir e quanto de novo, no presente, por ser ambicionado, tem de ser incorporado, tudo deliberado, em última análise, pelo escrutínio do universo eleitoral nacional entre quantas propostas sejam apresentadas à eleição.
(Continua)
Sexta-feira, 11 de Junho de 2010
Carlos Leça da VeigaA quem mais convêm uma linguagem hermética?Repare-se com atenção na Constituição da República Portuguesa e verifique-se como ela, no mais substancial, está dominada pela justificação racional do poder político. A proposição deste poder político têm uma pormenorização exaustiva das suas regras enquanto que todos os capítulos dirigidos à instituição dos direitos sociais promocionais têm uma explanação que pouco mais é que um somatório de promessas, “daquilo que deve ser”, “daquilo que deverá fazer-se”, “do que irá promover-se” porém sem que os articulados respectivos tenham qualquer indicação precisa e rigorosa do modo como essas disposições constitucionais têm de ser executados inclusive fiquem garantidas com firmeza indiscutível e inabalável.
A Constituição oferece e diz garantir direitos cuja concretização, como está escrito, compete ser efectivada pelo Estado, contudo, muito estranho, nada diz como será obrigatório fazê-lo e, muito importante, como pode e deve acontecer se os mesmos não forem cumpridos. E como conseguirá saber-se se, de facto, como foram cumpridos? E como pode um qualquer cidadão, coisa importante, reclamar a sua não concessão? As garantias efectivas de quaisquer não cumprimentos são dadas contra quê?
Não serão as afirmações dos juristas quem, em tempos posteriores, aparecerão a explicar quanto, desde logo, não está explicito no texto fundamental que, este, não é para ser lido só pelo hermetismo da linguagem dos juristas mas sim pela generalidade dos Cidadãos.
A afirmação, devidamente comprovada, que não foi cumprido um qualquer dos direitos sociais constitucionais deveria ter uma sanção imediata, prevista e estipulada pela própria Constituição – as tais garantias – como, por exemplo, obrigar à queda do Governo algo que, como as coisas estão, só poderá acontecer no caso imensamente distante de, por circunstância difícil de verificar-se, aquele Governo não ter a seu lado a maioria parlamentar. Acrescente-se que a interpretação dos direitos promocionais tem uma leitura constitucional, no mínimo, ambivalente e, como tal, é possível concluir-se, por exemplo, pela desculpa, fácil de invocar-se, da impossibilidade orçamental dum cumprimento adequado ou, como agora, pela invocação duma qualquer determinação chegada da ditadura de Bruxelas e escondida sob as roupagens do direito subsidiário. Tal como está disposto na actual Constituição da República, no Parlamento é que não e que nunca será sabida qual a explicação do não cumprimento cometido pois, nessa Assembleia, tem de haver uma maioria que suporta o Executivo e essa, por óbvio, não vai denunciar-se e condenar-se a si própria. Ser-se juiz em causa própria não pode ter validade probatória, muito menos capacidade para fazer justiça e só pode alicerçar uma ditadura.
Dizem os bonzos da política portuguesa que, na conformidade do sistema político em vigor, deverá saber-se do acerto duma deliberação parlamentar, do seu erro ou do seu incumprimento pelo executivo, na consulta eleitoral seguinte, isto é, anos após a falta ter sido cometida, situação que parece ser completamente despropositado já que, para além do mais, será fazer exactamente o contrário da tão propalada celeridade da justiça.
Já vem dos tempos quase imemoriais de E. Kant que «assim se a constituição permite a rebelião terá de declarar tal direito publicamente e dispor claramente sobre a respectiva aplicação». Na nossa, tudo quanto são direitos sociais – tão importantes quanto o da rebelião – não têm esta condição claramente explanada e feita com a conveniência mais exigível. A ambivalência e o carácter aleatório do enunciado dos direitos sociais inscritos na Constituição têm de considerar-se incompatíveis com a dignidade dum texto constitucional e são uma forte viciação da prática democrática.
A leitura duma Constituição política, quando feita por um cidadão comum, que não por um constitucionalista – e essa leitura é a que, na realidade, pode aduzir-lhe verdadeiro valor social e político – tem de ser vista, como é de justiça e, também, por evidência, como uma consequência adaptada à altura e ao decorrer das conveniências estratégicas, políticas, culturais, ecológicas e sociais do tempo histórico em que é usada e, por necessário, considerado o prazo previsto duma sua eventual revisão, tudo aprovado em obediência à vontade maioritária directa do universo eleitoral da população que não, como tem sido, pela vontade final dos Constituintes. Todos os cidadãos têm o dever de considerar-se constituintes e, assim, poderem apresentar quantos modelos constitucionais entenderem, contudo, a escolha dum deles – à semelhança quanto é feito com os programas eleitorais partidários – tem de ir a votos no universo eleitoral nacional.
Domingo, 16 de Maio de 2010
Carlos Leça da Veiga
Os testemunhos que fazem falta
Tal como vão as coisas, infelicidade a nossa, o discorrer dos empossados nas funções legislativa e executiva nacionais já não consegue convencer qualquer Cidadão ou Cidadã, dentre aqueles que não têm canga partidária e, como convêm, têm um mínimo de luzes.
No mar da alienação política que domina a generalidade da população portuguesa, apesar de tudo, como parece, são cada vez mais aqueles libertos das tutelas político-partidárias. A todos esses, deve pergunta-se-lhes, o que pensam fazer, devem fazer ou, pelo menos e, por agora, o que devem dizer?
Não pode aceitar-se – como o poder deseja – que tantos continuem a permanecer enfeudados às ordens dos partidos políticos parlamentares e, também, frente ao evoluir malsão das coisas nacionais, estejam indiferentes, acomodados e silenciosos.
Ninguém consegue fugir a ter uma responsabilidade pesada na formação da sua própria personalidade, por desígnio, da sua cidadania.
Ter-se-á de perguntar, a todos e a cada um, o que podem concluir do conjunto das proclamações e dos escritos dos que vivem à sombra e à custa do efectivo colaboracionismo partidário que, embora bem disfarçado, está montado na arena de S. Bento?
Ter-se-á de inquiri-los sobre o que pensam de quantos, em São Bento, na realidade, são opositores convictos e sinceros do sistema político em curso que, desde há quase quatro anos, tem sido tornado cada vez menos democrático pela ditadura do chamado partido socialista?
De imediato, no mínimo dos mínimos, dever-se-ia responder que, hoje em dia, não é possível ficar-se tranquilo inclusive recear-se pelo bem-estar futuro.
Depois, uma vez pensados e repensados os conteúdos soprados de S. Bento e apreciada a sua vacuidade manifesta, não poderá deixar de dizer-se que, quem quer que seja, até o menos formado, o mais inculto, o menos dotado, o mais iletrado e o menos informado não pode, na medida das suas possibilidades, com toda a justiça, querer dar-se ao direito e ao prazer de desejar fazer ouvir a sua voz inclusive pretender fazer chegá-la junto aos outros cidadãos sem, com isso – haja justiça e decência – querer dizer-se que intenta ombrear com os prevaricadores.
Ser asfixiado por S. Bento e silenciado pela comunicação social, isso é que não. Estivessem por essas paragens vozes autorizadas e comportamentos políticos de craveira alta, então, a atenção da população não precisaria de permanecer de pé atrás, demasiado indiferente e até, pode acreditar-se, haveria de querer dar uma atenção comprometida a quanto estivesse em causa. Tudo leva a acreditar, como o pós-25 de Abril demonstrou, que haveria de pretender oferecer a sua participação activa na coisa pública. Recordem-se os tempos saudáveis que deram continuidade política democrática aquela data histórica quando, por felicidade, a ditadura do Parlamento ainda não tinha vindo a demonstrar-se como, afinal, passou a ser-lhe permitido por uma Constituição mal amanhada.
Falar bem ou mal do executivo, votar ou não votar, ter ou não filiação associativa, ouvir ou não as telenovelas do politicamente correcto não representa, neste século XXI, qualquer manifestação de cidadania suficientemente válida já que, poder fazer isso e só isso, necessariamente, não esgota a vida duma Democracia participada, bem pelo contrário.
Aqueles, a si mesmo chamados representantes da Nação, não só não lhes basta arvoraram-se no direito de desprezar qualquer mandato imperativo como, também, não mostram qualquer hesitação em desrespeitar o sentir de quem, pelo voto, assegurou garantir-lhes a eleição.
Por isso aqui estou a tomar a liberdade de convidar aqueles meus compatriotas sem sujeições doutrinárias e que, por igual, estão longe das subordinações partidárias a, tal como eu, quererem proceder no sentido de demonstrar o seu antagonismo activo à situação política, cultural, económica, ecológica e social vigente.
Face ao desprezo lançado sobre as potencialidades libertadoras do 25 de Abril e, também, frente às atitudes políticas constitucionais de deformação e de adulteração da Democracia, para que conste e para que um dia – mais tarde – seja possível lerem-se testemunhos da realidade vivida, tomo a liberdade de convidar os outros, tal como eu, os eternos ludibriados, a deixarem os seus testemunhos escritos, banais que sejam – tal como este é – para que a História, não possa viver sem o registo dessas recriminações e, pelo contrário – um velho costume – fique, por inteiro, á mercê das mentiras e dos caprichos da documentação oficial já que, quem manda, manda sempre mal.
Importa que, por intermédio da contribuição dada por cada qual, venha, um dia, a poder conhecer-se a verdade histórica com correcção bastante e suficiente e, assim, não vingue a burla política forjada pelos grupos e pelos interesses sociais dominantes que, uma vez introduzida com proficiência na documentação oficial, no futuro, por obra de muitos dos historiadores, será a versão oficial dos momentos vividos.
A população portuguesa que sente e presente, de sobremaneira, as vicissitudes políticas do situacionismo em curso, senão tão perverso, mais hipócrita que o salazarento – agora tudo é feito em nome da Democracia – deverá reservar algum do seu tempo disponível para deixar escrito tudo quanto constitui motivo do seu desagrado, da sua desconfiança e da sua indignação inclusive quanto considere ser traição à confiança facultada pela sua vontade eleitoral, isto no caso dalguma vez terem votado em qualquer partido. Pelo certo, haverá testemunhos numerosos do mal estar político, económico, cultural, ambiental e social sentido pela população anónima os quais, sejam eles os mais anódinos, importa que fiquem registados mesmo que, mais tarde, os historiadores de serviço – por desgraça, havê-los-á – não aceitem querer atribuir-lhes, com suficiência, o seu valor documental probatório.
Em quaisquer circunstâncias, qualquer Cidadão ou qualquer Cidadã, nunca deverá dispensar-se de querer deixar um seu testemunho. Por mim – já o disse e repito-o – não aceito prescindir de pronunciar-me mesmo à míngua do saber e da autoridade que penso serem necessárias para alcançar uma exposição bem elaborada e, por igual, minimamente convincente. Em boa verdade, caso optasse por coibir-me, então, isso sim, ficaria prisioneiro duma má consciência.
Com efeito, face ao que leio, ouço e vejo tenho de concluir que a Nacionalidade portuguesa, mais outra vez, não caminha nada bem. Perante esta conclusão é obrigatório recusar o cenário à vista. Como tal, sinto-me com a motivação suficiente para ter de interrogar-me sobre que razão plausível terá a força bastante para continuar a impor-me um silêncio verdadeiramente inapropriado. Embora não haja Democracia, há liberdade e isso permite poder quebrar-se o silêncio. Se há liberdade não vejo razão para não aproveitá-la mesmo que, a seu par, saiba que a Democracia em uso, com o seu cariz perverso duma máquina demolidora e trituradora das vontades individuais, essa pseudodemocracia, manipulada pela força coligada das elites político-partidárias parlamentares, bem sabido, irá ficar a rir-se de quanto dela e deles poder dizer.
A Democracia devia oferecer as maiores facilidades à exposição pública das opiniões dos cidadãos inclusive deveria incentivá-las tal como, sobretudo, devia permanecer de portas bem abertas e com a funcionalidade mais apropriada para receber quem quisesse abalançar-se a uma participação cívica activa, a política inclusive, tudo a par, nada mais desejável, dela própria – essa Democracia – dever sentir-se obrigada a manifestar a sua exemplaridade, em público e em raso, por intermédio das suas figuras cívicas mais representativas e, como tal, as mais susceptíveis de causarem um apelo forte no sentido e no incentivo da promoção duma cidadania muito participada e duma ética cívica aprimorada. Assim, por um dever cívico de base, aqueles outros portugueses apontados como sendo os de maior projecção pública e com o magistério político mais influente – de quem deveria e teria de esperar-se inteligência, honestidade, cultura e respeitabilidade – deveriam mostrar que, quando usam as facilidades concedidas por um desejável regime democrático, não estão, por força de conveniências próprias, objectivos estritamente partidários, entendimentos iniciáticos ou interesses alienígenos a abrir as portas ao descrédito institucional e, em principal, a uma viciação irreparável dum espírito de cidadania responsável.
Enfim, por força das más práticas políticas e, também, por força dos exemplos comportamentais mais reprováveis é que são lançadas sobre a massa populacional anónima as motivações bastantes para a eclosão subsequente dum clima de incredibilidade desastrosa, de pessimismo indesejável e dum desanimo muito desgastante face à defesa da causa pública, por desígnio, à das instituições da República e dos respectivos Órgãos de Soberania.
Ousados, em excesso, na irreflexão das suas diatribes políticas, no nepotismo utilizado, no autoritarismo praticado, nas desonestidades consentidas e nas arbitrariedades cometidas – isso está bem patente aos olhos do público – muitos homens de Estado, para conseguirem justificar-se já só podem contar com aprovação cega, facultada a todo o momento, não só pelos seus círculos partidários de aduladores mas, também, pela venalidade de certa comunicação social. Assim, deste modo, permitem-se viver sem ter de dar atenção, muito menos dar ouvidos a quem, outros, possam dizer-lhes que, afinal, vão nus.