Catarse, substantivo feminino, é a expulsão daquilo que, sendo estranho à essência ou à natureza de um ser, o corrompe. É um processo de purificação. Embora não pareça, catar, o verbo transitivo, na sua forma reflexiva catar-se, tem um significado muito semelhante, embora mais popular. Enquanto catarse nos remete para o classicismo grego, para o orfismo, o pitagorismo, o platonismo ou para acepções mais técnicas, do foro da psiquiatria, o verbo catar, menos clássico, mais democrático, lembra-nos mães, às portas de suas casas em bairros pobres espiolhando os filhos ou, numa versão mais National Geographic, chimpanzés catando-se mutuamente (porque os sais que extraem das pelagens fazem falta à sua dieta - não sei se isto é verdade. A Dra. Jane Goodall, grande especialista no estudo da espécie, não o confirma).
O blogue é uma forma moderna de catarse. Moderna e barata, pois os psiquiatras não cobram pouco… É também uma forma de cada bloguista se catar, limpando-se de obsessões, ou de os bloguistas se catarem mutuamente, extraindo uns dos outros os sais necessários ao seu equilíbrio emocional. Catarse = catar-se. O português não é uma língua traiçoeira – é como um cão fiel e bonacheirão - desde que tratada com respeito, não nos morde. Mas voltemos aos blogues, esquecendo a sua função catártica e voltando-nos agora para a sua vocação comunicacional. Numa entrevista dada no Brasil em 2009, um entrevistador perguntou a José Saramago se acreditava que a organização das pessoas em rede, permitida pela explosão dos blogues, poderia ser um motor para a mudança social no futuro. Ao que o escritor respondeu: «Eu tenho umas quantas dúvidas. Quando aparece um caso como o da Internet, com a potencialidade que apresenta de comunicação, de troca de ideias, as pessoas falam de revolução pela Internet, mas no fundo somos ingénuos e vamos continuar a ser, aconteça o que acontecer. Não sei como essa revolução se daria. A Internet daqui a dez anos talvez não seja o que é. Nós estamos livremente na rede, não sei se em dez anos essa liberdade será permitida. E mesmo que isso não aconteça, há uma questão central: quem é que está no poder? Estamos nas mãos do poder e, portanto, é-nos praticamente impossível propor uma alternativa económica, sem uma alternativa política e social. Podemos organizar-nos em rede e fazer uma manifestação nas ruas, mas no dia seguinte acaba. Porque os meios de comunicação podem simplesmente decidir não falar dela. E se não falam dela, a manifestação não existiu e acabou». Grande verdade – hoje em dia, o que não é relatado pela comunicação social, é como se não existisse.
Bem, a liberdade da blogosfera ameaçada pelo poder, é um cenário verosímil. Mas há outras ameaças. Quando se abriram as primeiras estradas, depressa nelas apareceram salteadores. Quando se iniciaram as rotas marítimas, a pirataria não se fez esperar. As rotas aéreas também não são imunes à pirataria. A blogosfera, rede de caminhos entre milhões de pessoas, é também apetecível para flibusteiros especializados. Quem é que vai impedir a catarse? Quem é que vai impedir os bloguistas de catar-se mutuamente? O poder? Os piratas? Há um terceiro cenário plausível – a ilimitada liberdade da blogosfera pode transformar-se num elemento de auto dissolvência, desencadeando uma implosão.
O mais provável ainda é uma catadupa de novas tecnologias tornar esta obsoleta e daqui por umas dezenas de anos esta catarse, terapia ocupacional, actividade dos tempos livres, ser objecto da ironia dos nossos sucessores. Porque a natureza humana não muda, a tontice que hoje nos faz rir das modas de há cem ou cinquenta anos, levará qualquer idiota a ridicularizar os blogues, com a mesma desfaçatez com que hoje nos rimos quando vemos dançar o charlston. Ora vejam.
O que é um blogue? Uma feira de vaidades onde se exibem habilidades ou um espaço plural onde se expõem opiniões, sujeitas depois, a críticas, favoráveis ou desfavoráveis? Será também um meio de aliviar tensões, deitando cá para fora o que nos aflige ou preocupa. A esta função catártica há mesmo quem chame blogoterapia. Um blogue parece ser um pouco de tudo isto. Fonte dinâmica de informação e de entretenimento, os blogues possuem também o tal poder catártico, pois dizem-se coisas que doutro modo ficariam sepultadas e, quem sabe, a remoer dúvidas, a adensar angústias dentro das cabeças dos bloguistas. Aliviando tensões, os blogues terão salvo vidas, evitando suicídios, embora quem viaje um pouco pela blogosfera encontre comentários, disputas, susceptíveis de provocar suicídios. Porque é preciso cuidado com as pulsões que se libertam - podem transformar-se em rottweilers à solta e sem açaimo.
Dizia-me há semanas um amigo que os blogues, mais tarde ou mais cedo, implodem devido às quezílias que se levantam entre os colaboradores. Lutas ideológicas, religiosas, clubísticas, regionalistas, quando não mesmo a luta pelo poder dentro do blogue, vão criando rancores, os comentários azedam e o blogue extingue-se. Porém, neste momento estão a ser criados mais de 80 blogues, pois é o que acontece em cada segundo que passa; cinco mil por minuto, 120 mil por dia... Em todo o mundo, devem existir cerca de 200 milhões. Nesta perspectiva, acabar um blogue, não é grave, pois a blogosfera é um universo em permanente expansão. Agora, vejam esta definição:
“A blogosfera é um saco de gatos que mistura o óptimo com o rasca e acabou por tornar-se um prolongamento do magistério da opinião nos jornais. Num qualquer blogger existe e vegeta um colunista ambicioso ou desempregado ou um mero espírito ocioso e rancoroso. Dantes, a pior desta gente praticava o onanismo literário e escrevia maus versos para a gaveta, agora publicam-se as ejaculações. Mas, sem querer estar aqui a analisar a blogosfera e as suas implicações, nem a evidente vantagem dessa existência e da qualidade e liberdade que revela por vezes, destituindo do seu posto informativo os jornais e televisões aprisionados em formatos e vícios, o resíduo principal de tudo isto é que os jornais mudaram, e muito, e mudaram muito rapidamente». Clara Ferreira Alves teria supostamente escrito estas linhas no Diário Digital, texto que levantou a ira de muitos bloguistas. Soube-se depois que era apócrifo. Porém, sendo apócrifo, não é totalmente destituído de razão – os blogues transformaram-se em receptáculos de prosas absolutamente impensáveis – a iliteracia, a ignorância, ao fanatismo desbragado (político, religioso, futebolístico…), tudo é acolhido nos blogues.
Há blogues onde se dá vazão aos sentimentos mais primários, à obscenidade sem limites, à mais ordinária incontinência verbal, pois na blogosfera, liberdade é igual a impunidade. Nestas condições, de facto, separar o óptimo do rasca, não é fácil. Embora esse seja um problema que não afecta somente os colaboradores dos blogues, reconhece-se que neste meio ele assume uma maior acuidade. A blogosfera é livre e isso é bom enquanto todos se comportarem de forma civilizada. Oxalá a irresponsabilidade não obrigue a criar regras sem as quais até agora se tem vivido perfeitamente.
No Estrolabio não existe uma linha, uma identidade ideológica ou de qualquer outra natureza. Não havendo ortodoxia não pode haver fugas a qualquer linha. Aqui, cada um defende aquilo em que acredita. Sem lançar anátemas sobre aquilo em que os companheiros acreditam, embora possamos discordar, debater. O blogger não tem de respeitar as ideias dos outros (as ideias fizeram-se para ser debatidas, rebatidas e, se necessário, abatidas); mas deve respeitar sempre quem expende essas ideias com que não concorda.
Porque, na nossa opinião, o código deontológico de quem colabora em blogues permite rebater ideias com que se não concorda, por mais sagradas que sejam para outros. Mas obriga a respeitar sempre os outros, mesmo que sejam os defensores de ideias que nos parecem absurdas. É tão simples, não é?