Sexta-feira, 15 de Abril de 2011
Pelo Presidente da Associação 25 de Abril, coronel Vasco Lourenço, foi-nos enviada uma carta, a qual, devido à sua extensão, publicaremos durante os próximos dias sempre neste horário.
continuação de 12, 13 e 14 a esta mesma hora
9. Saída de Rocha Vieira de CEME e de Vasco Lourenço de GML
Neste ponto remeto-o para as pág. 554 e 555 de Do Interior da Revolução.
Não vou acrescentar muito mais, salientando apenas dois pontos:
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Rocha Vieira enviou uma carta a Eanes, onde colocava a questão de “ou ele, ou eu”, mas fez publicar essa carta no jornal de direita O Dia, de forma que quando Eanes recebeu a carta, ela já era pública.
Para quem apregoou lealdade de procedimentos, não está mal…
10. Vasco Lourenço e a carreira militar
Contrariamente ao que afirma Rocha Vieira, Vasco Lourenço não resolveu, logo a seguir ao fim do período de transição, a não continuação da sua carreira militar.
Com efeito, decidi continuar no Exército, no Serviço de Reconhecimento das Transmissões, onde estivera antes do 25 de Abril, e só em 1987 pediria a minha passagem à situação de reserva. Com um pormenor: quando, poucos meses depois do fim do período de transição é aprovada legislação que permitia aos conselheiros da Revolução a passagem à situação de reserva, contando o tempo por inteiro independentemente do tempo de serviço prestado, desde que utilizassem essa possibilidade no prazo de seis meses, decidi não usufruir da mesma. Isto, porque considerei que essa legislação era feita à minha medida, para me obrigar a passar à reserva. Decidi, então, que só sairia quando eu próprio o quisesse fazer (viria a passar à reserva, a meu pedido, apenas quatro anos e meio depois, em Abril de 1987), daí resultando que me tornei no único conselheiro da Revolução que estava na reserva, com pensão reduzida. No meu caso, 29/36. Situação que durou até que, ao abrigo da Lei 43/99, fui promovido a coronel.
Por agora, fico-me por aqui: gostaria de ver Rocha Vieira clarificar as distorções feitas por mim, seja em anteriores situações, seja neste texto.
Melhores cumprimentos
Vasco Lourenço
P.S. Como certamente compreenderá, não considero esta carta reservada, pelo que lhe darei a divulgação que entender…
Quinta-feira, 14 de Abril de 2011
Pelo Presidente da Associação 25 de Abril, coronel Vasco Lourenço, foi-nos enviada uma carta, a qual, devido à sua extensão, publicaremos durante os próximos dias sempre neste horário.
continuação de 12 e 13 a esta mesma hora
6. As armas entregues a Edmundo Pedro
Cá temos um episódio bem triste, bem demonstrativo da traição, da falta de lealdade, de que fui vítima.
A páginas 515 e seguintes, conto em Do Interior da Revolução o meu não papel, a sonegação de que fui alvo, neste assunto. Acrescentarei que, nós militares, sabemos bem que não é o facto de uma acção estar prevista, como possível, no plano de operações que ela se efectua mesmo. Para que isso se verifique, durante a conduta há que decidir sobre a sua efectivação e dar ordem nesse sentido. Deixem de justificar o que se passou com o facto de, na alínea “Forças Amigas, Partidos Políticos”, do plano de operações estar “preparar para, em caso de necessidade, receber armas para ajudar na ocupação de pontos sensíveis”…
Mas o livro de Pedro Vieira vem-me esclarecer mais alguns pormenores sobre a forma ignominiosa como Edmundo Pedro foi tratado, quando em Janeiro de 1978 foi preso…
Ao analisar o conteúdo do livro de Pedro Vieira, constato que, afinal, não era eu o único que devia saber e não sabia do “affaire” das armas. Rocha Vieira também nada sabia, afinal Eanes também nada lhe contara…
Mas, sendo assim, a quem Edmundo Pedro entregara já trinta e uma armas, como é contado na pág. 122? Que fora ao EME é um facto, mas a quem e quando? Durante a chefia do EME de Eanes, ou durante a chefia de Rocha Vieira?
Deliciosa é também a revelação atribuída a Eanes, da sua conversa com Mário Soares e das posições de cada um…
O facto é que a forma como tudo foi conduzido valeu a Edmundo Pedro seis meses de prisão preventiva, até ser totalmente ilibado pelo juiz que organizou o seu processo…
Sobre este assunto, Rocha Vieira escamoteia totalmente a sua mais que reprovável atitude para comigo, no dia da prisão de Edmundo Pedro. (A propósito não foi Luís Cabral que nos visitou nesse dia, mas sim Kenneth Kaunda…)
Para seu conhecimento e para refrescar a memória de Rocha Vieira, envio-lhe a carta confidencial – pessoal que, no dia 18 de Janeiro de 1978, como conto na pág. 517 de Do Interior da Revolução, o governador Militar de Lisboa enviou ao chefe de Estado-Maior do Exército (anexo A)
7. O CAAC, ou o caso dos vinte e nove capitães de Mafra
Rocha Vieira dá um tratamento especial a este assunto, na pág. 128 e ss., dedicando-lhe mesmo um capítulo intitulado “Diferendo com Vasco Lourenço”.
Por mim, porque o caso se passou já no período que não trato especificamente em Do Interior da Revolução, limitei-me a fazer-lhe uma pequena referência na pág. 553.
Porque Rocha Vieira utiliza este caso, relatando-o à sua maneira, escamoteando muitos pormenores e deturpando outros, decidi enviar-lhe seis documentos, então produzidos: o meu despacho de envio ao CEME, por avocação (Anexo B); despacho do instrutor para encerramento e seu envio ao CEME (Anexo C); meu despacho de análise ao despacho do CEME, de recusa de avocação (Anexo D); relatório final do instrutor (conclusões) (Anexo E); meu despacho final (Anexo F); relatório de informações (Anexo G), que então distribui por várias entidades, nomeadamente os conselheiros da Revolução e os comandantes das Regiões Militares (do Exército).
Apesar de considerar que tudo fica claro, com a leitura desses documentos, gostaria de salientar:
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A enorme responsabilidade da Direcção de Instrução do Exército em todo este processo. Responsabilidade essa que teve total cobertura do CEME. Com efeito, apesar de lhe ter proposto que usasse a sua competência disciplinar para punir os que eu considerava principais responsáveis, dado eu não o poder fazer por não estarem sob a minha alçada disciplinar, nada fez…
Sobre a atitude do DDI, general Altino de Magalhães no processo, relembro aqui um pequeno episódio:
Quando na reunião feita no gabinete do vice-CEME, general Melo Egídio, acuso Altino de Magalhães de nada ter ligado ao processo, nem sequer ligando a uma delegação dos capitães, na audiência que lhes concedeu, o mesmo reagiu: “Não lhes liguei nenhuma? Lembro-me que isso se passou no dia de São Martinho, convidei-os para comerem umas castanhas que tinha mandado assar, e diz-me que não lhes liguei nenhuma?! Injusto!”
“Pois é, o problema é que eles não lhe pediram audiência para virem comer castanhas”, retorqui-lhe, então.
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O facto de Rocha Vieira me ter pressionado fortemente para acelerar o processo, mesmo que não se procedesse a todas as diligências necessárias, e aplicar a cada capitão a pena de três ou cinco dias de prisão disciplinar.
A este respeito recordo apenas a cena final, passada em pleno palco do ginásio do Instituto de Odivelas.
Rocha Vieira diz-me que lera o meu despacho, não concorda, rematando: “Eu não engulo isso!”
“Tens bom remédio, deita fora!”, respondi-lhe, acrescentando: “Eu usei a minha competência disciplinar, tu podes usar a tua, mantendo, anulando ou agravando. Se tiveres coragem para isso, agrava!”
Sobre isto há a esclarecer:
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O curso que foi interrompido nunca foi retomado. Os capitães que o frequentaram, não fizeram qualquer outro curso semelhante.
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Se voltou a ser ministrado um outro CAAC, nos moldes referidos, isso já foi feito sem o Rocha Vieira como CEME e sem mim como GML.
8. A promoção de Vasco Lourenço a major
Aqui estamos perante uma das situações mais caricatas, mais kafkianas que enfrentei na vida.
Sendo capitão, fora nomeado comandante da Região Militar de Lisboa, porque se considerava que no Exército não havia mais nenhum oficial que pudesse desempenhar esse cargo; passados mais de oito meses, criara-se uma situação especial que permitisse a minha continuação como comandante dessa Região Militar, dando origem mesmo a uma situação única de comando de Região Militar por um conselheiro da Revolução, pois se continuava a considerar que era o único oficial do Exército que podia desempenhar o cargo; passados mais um ano e sete meses, apesar de por várias vezes ter levantado a questão da minha substituição no cargo, continuava a considerar-se não haver quem me pudesse substituir, mantendo-me, portanto, no comando da RML; a minha acção, directamente responsável pela recuperação da disciplina e da operacionalidade da RML e, em consequência disso, de todo o Exército, fazia com que Rocha Vieira, como CEME, me manifestasse, por várias vezes, que me considerava o seu melhor comandante das Regiões Militares.
Pois bem, de repente sou surpreendido com a homologação, por parte do CEME, de proposta do Conselho da Arma de Infantaria, das promoções por escolha de dois capitães mais modernos que eu, que assim me ultrapassariam.
Averiguando o que estivera por detrás disso, sei que o director dessa Arma, general Imaginário Egreja, afirmara na discussão da minha apreciação “que não podia pronunciar-se, pois não conhecia o capitão Vasco Lourenço, mas apenas o general Vasco Lourenço”.
Fortemente surpreendido, tomo conhecimento que o CEME, na informação periódica que fizera sobre mim, me atribuíra uma nota não positiva, no que se refere ao aprumo, ainda que considerasse que eu devia ser promovido por escolha.
Confrontei, de imediato Rocha Vieira com essa situação, dizendo-lhe que não o considerava mais aprumado que eu, perguntando-lhe como podia não ter aprumo quem aprumou uma região militar, acabando com a bagunça existente. Justificou-se, metendo as mãos pelos pés, com o argumento de que se tinha pronunciado pela minha promoção por escolha…
Muito naturalmente, coloquei o assunto no Conselho da Revolução: se for ultrapassado na promoção a major, por qualquer oficial mais moderno que eu, deixo as
chaves do gabinete em cima da secretária e abandono de imediato o comando do Governo Militar de Lisboa.
O Conselho decidiu promover-me, de forma a não ser ultrapassado…
Quarta-feira, 13 de Abril de 2011
Pelo Presidente da Associação 25 de Abril, coronel Vasco Lourenço, foi-nos enviada uma carta, a qual, devido à sua extensão, publicaremos durante os próximos dias sempre neste horário.
continuação de ontem
1. 25 de Novembro de 1975
Na página 95, Rocha Vieira afirma que no dia 25 de Novembro, na reunião com Costa Gomes, é Melo Antunes que passa a palavra ao coordenador do Grupo Militar, Eanes, para que este faça a exposição sobre a situação e a forma de lhe dar resposta.
Eu compreendo que Melo Antunes, com toda a sua qualidade e importância, mas também com a pouca apetência para as questões operacionais, lhes seja útil para menorizar o papel de Vasco Lourenço nos acontecimentos. Por isso, não hesitam em atribuir a Melo Antunes um papel que todos sabemos não lhe ter pertencido. Tem, aliás, sido essa a tónica das intervenções de Ramalho Eanes e ela volta nas declarações de Rocha Vieira neste livro.
Pois bem, na qualidade de responsável operacional, perante quem Eanes, como coordenador do Grupo Militar, respondia, fui eu, que, depois de dizer a Costa Gomes que tínhamos solução para o que se passava, passei a palavra ao Eanes, a quem pedi que explicasse como. Recordo-me bem que o Moura de Carvalho, da Força Aérea, a certa altura me disse: “Hoje, estás a intervir pouco”, ao que respondi: “Não é preciso, depois de passar a palavra ao Eanes, ele está a portar-se bem…”
2. Comando das operações
Na página 97, Rocha Vieira afirma que “Eanes era o chefe do grupo Militar e era nas mãos dele que os seus camaradas queriam pôr a delegação de Costa Gomes para dirigir as operações de resposta à situação gerada pela sublevação dos pára-quedistas. Só que Eanes não tinha nenhuma função militar, daí que tenha aparecido na linha institucional como ‘assessor’ de Vasco Lourenço que, enquanto conselheiro da Revolução, já nomeado comandante da Região Militar de Lisboa, detinha uma posição institucional. Foi uma maneira de transferir para Eanes a autoridade para dar ordens às unidades. E quem de facto as deu foi ele.”
Se já tinha a sensação de ter sido traído por aqueles em quem confiava, essa traição está aqui, bem “preto no branco”.
Este é um assunto que trato, com relativo pormenor, em Do Interior da Revolução. Veja-se, nomeadamente, a sua pág. 562.
Não deixa de ter graça a preocupação de Rocha Vieira em realçar a questão institucional. Com isso, foge ao cerne da questão: a única opção viável para comandar a RML, naquele momento e naquelas condições, era Vasco Lourenço, o que aliás levara Melo Antunes, Eanes e Loureiro dos Santos a tentarem e a conseguirem convencê-lo a aceitar substituir Otelo Saraiva de Carvalho no comando dessa RML.
Agora, para quem é do Estado-Maior, gostaria que me explicassem se a cadeia de comando desaparece, só porque o comandante do posto principal não está no posto avançado?
Como gostaria que me desmentissem as afirmações que faço no livro sobre o efectivo e real funcionamento dessa cadeia de comando, nomeadamente na subordinação de Eanes a Vasco Lourenço, durante os dias 25 e 26 de Novembro de 1975.
3. Ataque ao Regimento de Polícia Militar
A páginas 519 do livro Do Interior da Revolução, conto o que se passou, nomeadamente a intervenção de Rocha Vieira.
Apesar de habituado a certas afirmações, não deixei de me surpreender com o que é dito sobre Rocha Vieira, na pág. 99 do seu livro: “Ainda cedo, depois de um sono breve no Palácio de Belém, acordou com o estampido de tiros vindos da Calçada da Ajuda. Liga de imediato pelo telefone civil para o comandante do Regimento de Polícia Militar (Lanceiros 2), major Campos Andrada, que era do seu curso de entrada na Escola do Exército e que ingressara na Arma de Cavalaria”!
Para além de reafirmar tudo o que está em Do Interior da Revolução (nomeadamente o meu pedido, antes dos tiros, a Rocha Vieira para contactar o Eanes via rádio), acrescento apenas que durante essa noite não consegui sequer um sono breve e que, quando os tiros se desencadearam, o Campos Andrada estava a falar ao telefone comigo!
Haja decoro!
4. Prisões militares
Ao ler o que Rocha Vieira conta na pág. 101 do seu livro, compreendo a razão de ser do episódio que conto em Do Interior da Revolução, pág. 516, onde intervenho para anular a ordem que o Posto de Comando avançado enviara para a PSP de Lisboa, para se prenderem uma série de oficiais.
Aliás, para além do episódio do dia 27 no COPCON, onde apesar de tudo acabei por participar, penso que todas as outras prisões de oficiais foram por mim sancionadas, tendo na maioria das situações sido eu próprio a comunicar-lhes a sua prisão.
5. Mais conselheiro da Revolução que comandante da Região Militar de Lisboa
Aqui estamos perante uma afirmação que assenta fundamentalmente numa opinião de quem a profere.
Não irei dar-lhe muito troco, no entanto, dado o orgulho que tenho, na forma como comandei a Região Militar de Lisboa, em circunstâncias bastante difíceis; na forma como recuperei a disciplina nas unidades dessa grande unidade; na forma como consegui impor-me a todos os meus comandados, não poderei deixar de tecer alguns comentários.
Não o fiz sozinho, pois tive a colaboração de um conjunto de militares que funcionou em equipa, mas não aceito que digam que o mérito foi da equipa e não meu!
Pois se fui eu que escolhi e coordenei a equipa! Os bons resultados desta só me envaidecem!
Aliás, Rocha Vieira, se fizer um esforço de memória lembrar-se-á que, durante os anos de 1976 e 1977, como chefe de Estado-Maior do Exército me afirmou várias vezes que eu era, sem dúvida, o seu melhor comandante de Região Militar. Depois, quando começaram as divergências entre nós, terá mudado de ideias. Mas, disso falaremos mais à frente…
6. As armas entregues a Edmundo Pedro
Cá temos um episódio bem triste, bem demonstrativo da traição, da falta de lealdade, de que fui vítima.
A páginas 515 e seguintes, conto em Do Interior da Revolução o meu não papel, a sonegação de que fui alvo, neste assunto. Acrescentarei que, nós militares, sabemos bem que não é o facto de uma acção estar prevista, como possível, no plano de operações que ela se efectua mesmo. Para que isso se verifique, durante a conduta há que decidir sobre a sua efectivação e dar ordem nesse sentido. Deixem de justificar o que se passou com o facto de, na alínea “Forças Amigas, Partidos Políticos”, do plano de operações estar “preparar para, em caso de necessidade, receber armas para ajudar na ocupação de pontos sensíveis”…
Domingo, 27 de Fevereiro de 2011
coordenação de Augusta Clara de Matos
Boas e Más Memórias
Jean-Arthur Rimbaud Cartas da Abissínia
(Trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares)
Aden, 6 de Janeiro de 1883
Minha querida Mamã, Minha querida irmã,
(...) Volto a partir no fim do mês de Março para Harar. A referida bagagem fotográfica vai chegar dentro de quinze dias, e eu tenho em vista utilizá-la rapidamente e repor os respectivos encargos, o que não será muito difícil, uma vez que em França se devem vender as reproduções destas regiões ignotas e dos tipos singulares que as habitam; além do que, mesmo lá, poderei obter um lucro imediato de toda esta maçada. (...)
Aden, 15 de Janeiro de 1883
(...) Isabelle não tem razão quando deseja ver-me aqui neste país. É um fundo de vulcão, sem erva. A única vantagem é que o clima é muito saudável e se fazem negócios bastante bons. Mas, de Março a Outubro, o calor é excessivo. Agora estamos no inverno, o termómetro só atinge 30° à sombra; nunca chove. Há um ano que durmo sempre ao relento. Pessoalmente, gosto muito deste clima, pois tive sempre horror à chuva, à lama e ao frio. No entanto, é provável que no fim de Março volte a partir para Harar. Lá, é montanhoso e muito alto; de Março a Outubro, chove sem parar e o termómetro situa-se nos 10°. A vegetação é magnífica e há febres. Se partir, provavelmente ficarei durante um ano. Tudo será decidido em breve. De Harar, enviar-vos-ei vistas, paisagens e tipos humanos. (...)
Aden, 28 de Janeiro de 1883
Senhor de Gaspary
Vice-Cônsul da França em Aden
Senhor,
Perdoe-me submeter a presente ocorrência à sua consideração.
Hoje, às 11 horas da manhã, o chamado Ali Chemmak, fiel de armazém da casa onde estou empregado, mostrou-se insolente comigo, tendo-me eu permitido dar-lhe uma bofetada sem violência.
Os coolies l e diversas testemunhas árabes agarraram-me, deixando-o livre para ripostar; o dito Ali Chemmak acertou-me na cara, rasgou-me a roupa e seguidamente pegou num pau com que me ameaçou.
As pessoas presentes intervieram, Ali recuou e pouco depois saiu para apresentar na polícia municipal queixa contra mim, por murros e ferimentos, e apresentou várias testemunhas falsas para declararem que eu ameaçara espetar-lhe um punhal, etc., etc. e outras mentiras destinadas a envenenar o caso em meu desfavor e a excitar o ódio dos indígenas contra mim.
Tendo comparecido por este motivo perante a polícia municipal em Aden, permiti-me informar o Senhor Cônsul da França em Aden sobre as violências e ameaças de que fui alvo por parte dos indígenas, solicitando a sua protecção no caso de o desfecho do acontecimento parecer aconselhá-la.
Ao vosso inteiro dispor, Senhor Cônsul,
Subscrevo-me,
RIMBAUD
Empregado da Casa
Mazeran, Vianney & Bardey,
em Aden
Aden, 19 de Março de 1883
Recebi a vossa última carta e o caixote dos livros chegou-me ontem à tarde. Agradeço-vos.
A máquina fotográfica e tudo o resto estão em excelente estado.
Quanto aos livros, vão ser-me muito úteis num país onde não há informação e onde ficamos estúpidos que nem asnos se não rememorarmos um pouco o que estudámos. Sobretudo os dias e as noites são muito longos em Harar, e estes velhos livros vão-me fazer passar o tempo agradavelmente. Pois é preciso dizer que, não havendo nenhum lugar público de reunião em Harar, somos constantemente obrigados a ficar em casa. Aliás, conto fazer um curioso álbum sobre isto tudo.
Envio-vos um cheque de cem francos para que o descontem e me adquiram os livros da lista que segue. O gasto com livros é útil.
Dizeis que restam cerca de cem francos do meu antigo dinheiro. Quando vos facturarem o grafómetro (instrumento de nivelamento) que encomendei em Lyon, paguem-no com o que resta. Renunciei a toda esse quantia. (...
Harar, 6 de Maio de 1883
(...) Aqui, toda a gente quer ser fotografada; até oferecem um guinéu por fotografia. Ainda não estou bem instalado, nem ao corrente dos assuntos; mas em breve estarei, e enviar-vos-ei coisas curiosas.
Junto duas fotografias minhas tiradas por mim. Sempre estou melhor aqui do que em Aden. Há menos trabalho e muito mais ar, verdura, etc....
Renovei o meu contrato por três anos, mas suponho que o estabelecimento vai fechar em breve, pois os benefícios não cobrem as despesas. Enfim, está assente que no dia em que for despedido me darão três meses de vencimento como indemnização. No fim do ano corrente completarei três anos nesta casa.
Isabelle faz mal em não se casar se aparecer alguém sério e instruído, alguém com futuro. A vida é assim, e a solidão é uma coisa má nestas paragens. Pelo que me diz respeito, lamento não ter casado e não ter família própria. Mas agora estou condenado à errância, ligado a uma empresa longínqua, e todos os dias perco o gosto pelo clima e pelas maneiras de viver, e mesmo pela língua da Europa. Helásl Para que servem estas idas e vindas, estas fadigas e aventuras junto de raças estrangeiras, e estas línguas com que se atafulha a memória, e estes sofrimentos inomináveis, se um dia, após vários anos, não puder repousar num lugar que me agrade mais ou menos e ter uma família, e ter pelo menos um filho a quem passe o resto da vida a educar segundo as minhas ideias, a ilustrar e a dotar com a instrução mais completa que se pode adquirir nesta época, e que eu veja tornar-se num engenheiro de renome, um homem poderoso e rico através da ciência? Mas quem sabe quanto poderão durar os meus dias aqui nestas montanhas? E posso desaparecer no meio destas tribos, sem que a notícia alguma vez seja divulgada.
Falais-me de notícias políticas. Se soubessem como isso me é indiferente! Há mais de dois anos que não toco num jornal. Presentemente, todos esses debates são incompreensíveis para mim. Como os muçulmanos, sei que o que acontece, acontece, e é tudo. (...),
Quarta-feira, 16 de Fevereiro de 2011
coordenação de Augusta Clara de Matos
Boas e Más Memórias
Jean-Arthur Rimbaud Cartas da Abissínia
(trad. de Célia Henriques e Vitor Silva Tavares)
Alexandria , Dezembro de 1878
Cheguei aqui após uma travessia de dez dias e, depois de andar às voltas há duas semanas, eis que só agora as coisas começam a encaminhar-se! Vou ter em breve um emprego; já trabalho bastante para viver, pobremente, é verdade. Ou me ocuparei numa grande exploração agrícola a cerca de dez léguas daqui (já lá fui, mas não vai haver nada antes de algumas semanas); — ou entrarei proximamente nas alfândegas anglo-egípcias, com um bom vencimento; - ou penso que partirei em breve, preferencialmente para Chipre, ilha inglesa, como intérprete de um grupo de trabalhadores. Em todo o caso, prometeram-me arranjar qualquer coisa; é com um engenheiro francês -homem prestável e talentoso - que terei de tratar. Só que me pedem o seguinte: uma palavrinha tua, Mamã, reconhecida pela mairie, constando do seguinte:
"Eu abaixo assinada, esposa de Rimbaud, proprietária em Roche, declaro que o meu filho Arthur Rimbaud deixou de trabalhar na minha propriedade, que saiu de Roche de livre vontade, no dia 20 de Outubro de 1878, que se comportou honrosamente quer aqui quer noutros lugares e que presentemente não se encontra sob a alçada da lei militar.
Assinatura"
E o mais importante é o carimbo da mairie.
Sem este documento não me darão emprego fixo, embora julgue que continuarão a ocupar-me de vez em quando. Mas livrem-se de dizer que fiquei em Roche apenas alguns dias, porque me farão mais perguntas e isso nunca mais acabará; além de que o documento fará as pessoas da companhia agrícola acreditar que eu sou capaz de dirigir o trabalho.
Peço-lhe o favor de me mandar este documento o mais rapidamente possível: a coisa é muito simples e dará bons resultados, pelo menos dá-me um bom emprego durante todo o inverno. (...)
*
Larnaca (Chipre), 15 de Fevereiro de 1879
(...) Amanhã, 16 de Fevereiro, faz exactamente dois meses que estou aqui empregado. Os patrões encontram-se em Larnaca, porto principal de Chipre. Sou fiscal de uma pedreira no deserto, à beira-mar: está também a ser construído um canal. Têm de se embarcar as pedras nos cinco barcos e no vapor da Companhia. Há ainda um forno de cal, fábrica de tijolos, etc. A primeira povoação fica a uma hora de marcha. Aqui existe apenas um caos de rochas, o rio e o mar. Há só uma casa. Não existe terra, nem jardins, nem uma única árvore. No verão, a temperatura atinge 80 graus. De momento, é frequente termos 50. Estamos no inverno. Chove por vezes. Alimentamo-nos de caça, de galinhas, etc... Todos os europeus estiveram doentes, excepto eu. No campo, estivemos no máximo vinte e cinco europeus. Os primeiros chegaram a 9 de Dezembro. Há três ou quatro mortos. Os trabalhadores cipriotas vêm das aldeias em redor; chegaram-se a empregar sessenta por dia. Eu dirijo-os: aponto os dias, distribuo o material, elaboro relatórios para a Companhia, faço as contas da alimentação e de todas as despesas; e distribuo os pagamentos; ontem fiz um pagamentozinho de quinhentos francos aos trabalhadores gregos.
Sou pago ao mês, creio que 150 francos: até agora não recebi mais do que uma vintena. Mas penso que em breve me pagarão por inteiro e creio até que vou ser despedido, porque acho que se vem instalar uma nova companhia em vez da nossa, que tomará tudo de empreitada. Foi devido a esta incerteza que demorei a escrever. Em todo o caso, custando a minha alimentação apenas 2,25 por dia e não devendo eu ao patrão grande coisa, ficarei sempre com algum para poder aguardar por outro trabalho, que para mim haverá sempre aqui em Chipre. Vão construir caminhos de ferro, fortes, casernas, hospitais, porto, canais, etc.... No dia l de Março irão ser feitas concessões de terrenos, sem outros encargos salvo o registo das escrituras. (...)
*
Larnaca (Chipre), 24 de Abril de 1879
Só hoje pude obter a procuração na chancelaria; mas suponho que não vai apanhar o barco e que terá de esperar pela partida do outro, na quinta-feira.
Continuo a ser chefe de estaleiro nas pedreiras da Companhia, onde carrego, faço explodir e cortar pedra.
O calor é muito. De fritar ovos. As pulgas são um suplício horrível, noite e dia. Além disso, os mosquitos. Temos de dormir à beira-mar, no deserto. Tive pegas com os operários e vi-me obrigado a pedir armas.
Gasto muito. A16 de Maio termino o meu quinto mês aqui.
Acho que vou regressar; mas antes disso, gostaria que me dessem notícias.
Escrevam-me.
Não vos dou o meu endereço nas pedreiras porque o correio nunca passa por aqui, mas na cidade, a seis léguas de distância. (..)
*
Mont-Troodos (Chipre), domingo, 23 de Maio de 1880
(...) Não encontrei nada para fazer no Egipto e parti para Chipre já lá vai um mês. Ao chegar, deparei com os meus antigos patrões na falência. No entanto, ao fim de uma semana, arranjei o emprego em que estou presentemente. Sou fiscal no palácio que estão a construir para o governador-geral, no topo do Troodos, a montanha mais alta de Chipre (2100 m).
Até agora estava só com o engenheiro, numa das barracas de madeira que formam o acampamento. Ontem chegaram cinquenta operários e a obra vai para a frente. Sou o único fiscal, e por enquanto só recebo duzentos francos por mês. Pagam-me há quinze dias, mas faço muitos fretes: temos de viajar sempre a cavalo; os transportes são muito difíceis, as localidades muito distantes e a comida muito cara. Além disso, enquanto nas planuras se tem muito calor, nesta altitude faz, e vai fazer ainda durante mais um mês, um frio desagradável; chove, saraiva, e a ventania é de nos deitar abaixo. Foi-me preciso comprar colchão, cobertores, casacão, botas, etc., etc.
No alto da montanha há um campo para onde virão dentro de algumas semanas as tropas inglesas, logo que se faça sentir muito calor na planície e menos frio na montanha. Teremos então garantido o serviço de aprovisionamento.
Por enquanto, estou ao serviço da administração inglesa: conto ser aumentado em breve e continuar no emprego até ao fim deste trabalho, que provavelmente terminará lá para Setembro. Assim, poderei obter uma boa carta de recomendação, com vista a empregar-me noutras obras que certamente irão seguir-se, e pôr de parte umas centenas de francos.
Sinto-me mal; tenho taquicardia que me incomoda bastante. Mas é melhor não pensar nisso. Aliás, que posso fazer? No entanto, o ar aqui é muito saudável. Na montanha só há pinheiros e fetos.
Estou a escrever esta carta hoje, domingo; mas tenho de a pôr no correio a dez léguas daqui, num porto chamado Limassol, e não sei quando terei oportunidade de lá ir ou de enviá-la para lá. Provavelmente nunca antes de oito dias. (...)
*
Aden, 17 de Agosto de 1880
Deixei Chipre com 400 francos, ao fim de quase dois meses, após altercações que tive com o caixa e com o meu engenheiro. Se tivesse ficado, teria atingido uma boa posição em poucos meses. No entanto, posso voltar para lá.
Procurei trabalho por todos os portos do Mar Vermelho, em Djedda, Suakim, Massauah, Hodeidah, etc. Vim para aqui depois de ter tentado encontrar qualquer coisa que fazer na Abissínia. Ao chegar, estive doente. Sou empregado na casa de um comerciante de café1, e ainda só ganho sete francos2. Quando tiver algumas centenas, vou para Zanzibar, onde, segundo dizem, há trabalho.
Dêem-me notícias.
*
Aden, 25 de Agosto de 1880
Parece-me que terei posto recentemente no correio uma carta para vocês a contar-vos como, por infelicidade, tive de abandonar Chipre e como aqui cheguei depois de ter andado às voltas pelo Mar Vermelho.
Aqui, estou no escritório de um comerciante de café. O agente da companhia é um general na reforma. Os negócios vão mais ou menos, mas havemos de fazer muito mais. Eu ganho pouco, não passa dos seis francos por dia; mas se ficar por cá, e bem necessito, porque isto está tão longe de tudo que são precisos vários meses até se ganharem umas escassas centenas de francos para, em caso de necessidade, se poder partir; se ficar, creio que me darão um cargo de confiança, talvez uma agência noutra cidade, e assim poderei ganhar algum dinheiro um pouco mais rapidamente.
Aden é um rochedo medonho, sem uma única pontinha de erva nem uma gota de água boa: bebe-se água do mar destilada. Aqui o calor é excessivo, sobretudo em Junho e Setembro, que são os dois meses de canícula. A temperatura constante, noite e dia, num escritório muito fresco e ventilado é de 35 graus. É tudo muito caro, e assim por diante. Mas não há nada a fazer: estou aqui como um prisioneiro e terei de cá ficar pelo menos três meses antes de me poder aguentar nas pernas ou ter um emprego melhor.
E aí em casa? A ceifa já acabou?
Dêem-me notícias.
*
Aden, 22 de Setembro de 1880
Recebi a vossa carta de 9 de Setembro e, como amanhã parte um correio para França, passo a responder-vos.
Estou tão bem quanto aqui se pode estar. A casa faz negócios de várias centenas de milhares de francos por mês. Sou o único empregado e tudo me passa pelas mãos; presentemente estou muito a par do comércio de café. O patrão deposita em mim total confiança. Todavia, sou mal pago: tenho apenas cinco francos por dia, alimentação, alojamento, roupa lavada, etc., etc., com cavalo e viatura, o que representa bem uma dúzia de francos por dia. Mas como sou o único empregado algo inteligente de Aden, no final do segundo mês aqui, isto é, em 16 de Outubro, se não me pagarem duzentos francos limpos por mês, vou-me embora. Prefiro partir a deixar-me explorar. Aliás, já tenho cerca de duzentos francos no bolso. Provavelmente irei para Zanzibar, onde há trabalho. Mas também aqui há muito para fazer. Várias sociedades comerciais vão-se estabelecer na costa da Abissínia. A casa também tem caravanas em África; e portanto é possível que eu vá para lá, obtendo maiores benefícios e aborrecendo-me menos do que em Aden, que é, toda a gente o reconhece, o sítio mais chato do mundo, todavia só depois daquele em que vocês vivem.
Em casa tenho uma temperatura de 40°: suam-se litros de água por dia. Só queria que estivessem 60° como quando eu estava em Massauah!
Vejo que têm aí um bom verão. Tanto melhor. É uma vingança pelo famoso inverno. (...)
(...)- Escrever bem o meu endereço, porque há aqui um Rimbaud agente dos transportes marítimos. Fizeram-me pagar 10 cêntimos de suplemento de franquia.
Julgo que não devem encorajar o Frédéric a ir estabelecer-se em Roche, por pouca ocupação que ele tenha noutro lado. Aborrecer-se-ia depressa, e não se poderia esperar que ficasse. Quanto à ideia de se casar, quando não se tem nem um chavo nem poder para o ganhar, não será uma ideia miserável? Pela minha parte, quem me condenasse ao casamento em tais circunstâncias, faria melhor assassinar-me imediatamente. Mas cada um com sua ideia, o que ele pensa não me diz respeito, não me toca em nada, e desejo-lhe toda a felicidade possível sobre a terra e especialmente no cantão de Attigny (Ardenas). (...)
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Aden, 2 de Novembro de 1880
Ainda aqui vou ficar um certo tempo, embora já esteja contratado para outro sítio, onde me devo dirigir em breve. A casa fundou uma agência no Harar, uma região que localizareis no mapa, no sudeste da Abissínia. De lá exporta-se café, peles, gomas, etc., que se compram em troca de tecidos de algodão e mercadorias diversas. O país é muito saudável e fresco graças à sua altitude. Não há estradas e quase nenhumas comunicações. Vai-se de Aden a Harar: primeiro por mar, de Aden a Zeilah, porto da costa africana; daí a Harar, em vinte dias de caravana.
O Sr. Bardey, um dos chefes da casa, fez uma primeira viagem, estabeleceu uma agência e levou muitas mercadorias. Deixou lá um representante3 sob as ordens do qual eu ficarei. Estou contratado a partir do dia l de Novembro, com um vencimento de 150 rupias por mês, quer dizer 350 francos, ou seja 11 francos por dia, mais alimentação, despesas de viagem e 2% sobre os lucros. No entanto, não partirei antes de um mês ou seis semanas, porque tenho de levar para lá uma soma considerável que ainda não está disponível. Escusado será dizer que não se pode ir sem ser armado, e que se corre o perigo de deixar lá a pele nas mãos dosgallas - embora o perigo também não seja assim tão grave.(...)
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Harar, 13 de Dezembro de 1880
Cheguei a este país depois de vinte dias a cavalo através do deserto somali. Harar é uma cidade colonizada pelos egípcios e dependente do governo deles. A guarnição é de vários milhares de homens. A nossa agência e os nossos armazéns estão aqui instalados. Os produtos comerciáveis são o café, o marfim, as peles, etc. O país é alto mas não é árido. O clima fresco e não doentio. Todas as mercadorias são importadas da Europa e transportadas por camelos. Aliás, há muito a fazer nesta terra. Não temos aqui correio regular. Somos obrigados a enviar a correspondência para Aden, e só de tempos a tempos. Por conseguinte, só recebereis esta carta daqui a muito tempo. (...)
(continua)
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l Um tal Sr. Pinchará, antigo oficial atirador subalterno, colocado em Aden para o salvamento de navios encalhados no cabo Guardafui (o que bem poderia ser a origem da estúpida legenáa "Rimbaud, ladrão de salvados").
2 Vianney, Bardey & Cie, com sede em Lyon e uma agência em Aden.
O principal negócio era o comércio de mofa, que faziam vir da Abissínia, ensacavam em Aden e expediam para França.
3 Salário ridículo, na medida em que, segundo as memórias de Alfred Bardey, o trabalho de Rimbaud consistia,
à data, em receber fardos de café, triá-los e embalá-los.
(in Jean-Arthur Rimbaud, Cartas da Abissínia seguido de Philippe Soupault, Mar Vermelho, & etc)
Sexta-feira, 4 de Fevereiro de 2011
coordenação de Augusta Clara de Matos
Boas e Más Memórias
E Satanás, que fora expulso para a Terra, de lá continuou a enviar cartas com as suas impressões aos arcanjos Miguel e Gabriel
Mark Twain Cartas da Terra
CARTA II
«Não vos contei nada sobre o homem que não seja verdade.» Deveis perdoar-me, se repito esta observação aqui e ali nestas cartas: quero que leveis a sério as coisas que vos conto e julgo que, se estivesse no vosso lugar e vós no meu, necessitaria dessa chamada de atenção de quando em quando para impedir que a minha credulidade esmorecesse.
(Mirando el Suelo - Pastor Outeiral, Ourense)
Pois não há nada acerca do homem que não seja estranho para um imortal. Ele não olha para nada como nós olhamos, a sua noção das proporções é completamente diferente da nossa, e a sua noção do que são valores é de tal maneira divergente da nossa que, malgrado toda a nossa imensa capacidade intelectual, não é provável que mesmo os mais dotados de nós fossem alguma vez capazes de o compreender plenamente.
Considerai esta amostra, por exemplo: ele imaginou um céu e deixou completamente de fora dele a mais suprema de todas as delícias, o êxtase ímpar que aparece antes de tudo o resto no âmago de cada indivíduo da sua raça — e da nossa —: as relações sexuais!
É como se uma pessoa estivesse perdida e moribunda num deserto abrasador e lhe fosse dito por um salvador que podia escolher e ter todas as coisas por que ansiava, excepto uma, e ela escolhesse prescindir da água!
O céu dele é como ele próprio: estranho, interessante, surpreendente, grotesco. Palavra de honra que não tem uma única característica que ele realmente aprecie. Consiste — única e exclusivamente — em distracções a que ele praticamente não liga aqui na Terra, contudo tem a certeza absoluta de que vai gostar delas no céu. Não é curioso? Não é interessante? Não deveis pensar que estou a exagerar, pois não é o caso. Vou dar-vos pormenores.
A maior parte dos homens não canta, a maior parte dos homens não sabe cantar, a maior parte dos homens não se demora onde outros estão a cantar, se tal se prolongar por mais de duas horas. Registai isso.
Somente cerca de dois homens em cada cem sabe tocar um instrumento musical, e nem quatro em cem têm qualquer desejo de aprender a fazê-lo. Tomai nota disso.
Muitos homens rezam, não há muitos que gostem de o fazer. Uns quantos rezam demoradamente, os demais preferem atalhar.
Há mais homens a ir à igreja do que aqueles que desejariam fazê-lo. Para quarenta e nove homens em cinquenta, o Dia do Senhor1 é uma tremenda maçada.
De todos os homens presentes numa igreja a um domingo, dois terços estão cansados, quando o serviço vai a meio, e os restantes antes de ele ter terminado.
O momento de maior satisfação para todos eles é quando o pregador ergue as mãos para a bênção final. Consegue ouvir-se o suave sussurro de alívio que se estende a todo o edifício e reconhece-se que ele é eloquente de gratidão.
Todas as nações olham com sobranceria para todas as outras nações.
Todas as nações detestam todas as outras nações.
Todas as nações brancas desprezam todas as nações de cor, seja de que matiz for, e oprimem-nas, quando podem.
Os homens brancos não se relacionam com «pretos», nem se casam com eles.
Não os deixam entrar nas suas escolas e igrejas.
O mundo inteiro odeia o judeu e não o suporta senão quando ele é rico.
Peço-vos que registeis todas essas características.
Adiante. Todas as pessoas sãs de espírito detestam barulho.
Todas as pessoas, sãs de espírito ou insanas, gostam de ter variedade na sua vida. A monotonia rapidamente as cansa.
Cada homem, segundo o equipamento mental que lhe coube em sorte, exercita o seu intelecto constantemente, incessantemente, e este exercício constitui uma parte considerável e valiosa e essencial da sua vida. O intelecto mais chão, tal como o mais elevado, possui algum tipo de aptidão e tem grande prazer em testá-la, pô-la à prova, aperfeiçoá-la. O diabrete, que é superior aos seus companheiros em jogos, é tão diligente e entusiástico na sua prática como o são o escultor, o pintor, o pianista, o matemático e os demais. Nenhum deles poderia ser feliz, se o seu talento fosse interditado.
Ora bem, já tendes os factos. Sabeis do que a raça humana gosta e do que não gosta. Ela inventou um céu, saído da sua própria cabeça, sem ajuda de ninguém: adivinhai como ele é! Nem em mil e quinhentas eternidades o conseguiríeis. A mente mais capaz por vós ou por mim conhecida em cinquenta milhões de evos não o conseguiria. Muito bem, vou falar-vos sobre ele.
1. Antes de mais nada, chamo-vos de novo a atenção para o facto extraordinário com que comecei. Isto é, que o ser humano, como os imortais, coloca naturalmente as relações sexuais de longe acima de todos os outros prazeres — e, todavia, deixou-as de fora do seu céu! A simples ideia de as ter excita-o; a oportunidade deixa-o frenético; neste estado, arriscará a vida, a reputação, tudo — até mesmo o seu insólito céu —, para concretizar essa oportunidade e aproveitá-la até ao seu irrefreável clímax. Da juventude à meia-idade, todos os homens e todas as mulheres apreciam a cópula acima de todos os outros prazeres juntos, porém, na verdade, é como vos disse: ela não existe no céu deles; a oração ocupa o seu lugar.
Deste modo, têm-lhe um elevado apreço; contudo, tal como as suas supostas «mercês», trata-se de uma coisa pobre. No seu melhor e mais demorado, o acto é breve para além da imaginação — a imaginação de um imortal, quer dizer. Em termos de repetição, o varão é limitado... oh, bem para além do concebimento imortal. Nós, que prolongamos o acto e os seus êxtases mais supremos de forma continuada e sem interrupções durante séculos, jamais seremos capazes de compreender ou de nos condoermos de forma adequada da horrível pobreza destas pessoas no que toca a esse valioso dom que, se possuído como nós o possuímos, faz com que todas as outras posses sejam triviais e nem valham o trabalho de passar factura.
2. No céu dos homens, toda a gente canta! O homem que não cantava na Terra, ali canta; o homem que não conseguia cantar na Terra, ali consegue cantar. Esta cantoria universal não é fortuita, nem ocasional, nem aliviada por intervalos de silêncio; prossegue, ao longo de todo o dia, e dia após dia, durante um período de doze horas. E toda a gente se queda — enquanto na Terra o lugar ficaria vazio em duas horas. A cantoria consta unicamente de hinos. Não, consta somente de um hino. As palavras são sempre as mesmas, em número serão para aí uma dúzia, não há rima, não há poesia: «Hosana, hosana, hosana, Senhor Deus dos Exércitos, 'rra! 'rra! 'rra! ssss! — bum!... a-a-ah!»
3. Entretanto, cada pessoa está a tocar harpa — aqueles milhões e milhões! —, ao passo que não mais de vinte em mil delas sabiam tocar um instrumento na Terra, ou sequer alguma vez quiseram saber.
Imaginem o ensurdecedor furacão de som — milhões e milhões de vozes a berrarem em uníssono, e milhões e milhões de harpas a rangerem os dentes ao mesmo tempo! Pergunto-vos: é medonho, é odioso, é horrível?
Imaginem também: trata-se de um serviço de louvor— um serviço de elogio, de lisonja, de adulação! Perguntais quem está disposto a aguentar este estranho cumprimento, este insano cumprimento — e quem não somente o aguenta, mas gosta dele, desfruta dele, precisa dele, o ordena? Preparai-vos!
É Deus! O Deus desta raça, quer dizer. Ele senta-se no seu trono, servido pelos seus vinte e quatro anciãos e outros dignitários quaisquer pertencentes à sua corte, e olha por sobre quilómetros e quilómetros de tempestuosos adoradores e sorri, e solta suspiros maviosos, e mostra a sua satisfação acenando com a cabeça para norte, para este, para sul — no que imagino seja o espectáculo mais bizarro e ingénuo até agora concebido neste universo.
É fácil de ver que o inventor do céu não foi o autor desta ideia, antes a copiou dos espectáculos-cerimónias de algum desgraçado Estadito soberano situado algures nas distantes colónias do Oriente.
Todas as pessoas brancas sãs de espírito odeiam barulho, porém aceitaram tranquilamente este tipo de céu — sem pensar, sem reflectir, sem examinar — e querem de facto ir para lá! Velhos de cabelo grisalho profundamente devotos dedicam grande parte do seu tempo a sonhar com o ditoso dia em que largarão as preocupações desta vida e entrarão nos prazeres daquele local. Não obstante, podeis ver quão irreal esse local é para eles e o quão pouco lhes prende a atenção como sendo realmente um facto, uma vez que não fazem nenhuma preparação prática para a grande mudança — nunca se vê nenhum deles com uma harpa, nunca se ouve nenhum deles a cantar.
Como já vistes, esse espectáculo singular é um serviço de louvor: louvor por hino, louvor por prostração. Substitui a «igreja». Vamos lá a ver: na Terra, estas pessoas não aguentam lá muita igreja — uma hora e um quarto é o máximo, e uma vez por semana, o limite que estabelecem. Que é o mesmo que dizer, ao domingo. Um dia em sete; e nem assim eles esperam por ele com impaciência. E por isso... considerai o que o céu deles lhes proporciona: «igreja» que dura para sempre, e um Dia do Senhor que não conhece fim! Eles cansam-se rapidamente deste breve Dia do Senhor hebdomadário que por aqui têm, contudo almejam um eterno: sonham com ele, falam sobre ele, pensam que pensam que vão gostar dele — do fundo dos seus corações simples, eles pensam que pensam que vão ser felizes nele!
Isto acontece porque eles não pensam de todo — eles só pensam que pensam. Porquanto não pensam — nem dois seres humanos em dez mil têm algo com que possam pensar. E, quanto a imaginação... oh, bem, olhem para o céu deles! Aceitam-no, aprovam-no, admiram-no. Isso dá-vos a sua medida intelectual.
4. O inventor do céu deles despeja lá todos os países da Terra, no que é uma verdadeira salgalhada. Todos estão em igualdade absoluta, nenhum tem precedência sobre os demais, todostêm de ser «irmãos», têm de se misturar, de rezar juntos, tocar harpa juntos, soltar hosanas juntos - brancos, pretos, judeus, toda a gente, sem distinções. Aqui na Terra, todas as nações se odeiam umas às outras, e todas elas odeiam o judeu. Porém, toda e qualquer pessoa piedosa adora o tal céu e quer entrar nele. Quer mesmo. E, quando está em pleno arroubo sagrado, essa pessoa pensa que pensa que, se ao menos estivesse lá, apertaria toda a populaça contra o seu peito e abraçaria e abraçaria e abraçaria!
É um prodígio — o homem. Quisera eu saber quem o inventou.
5. Todo o homem na Terra possui alguma parcela de intelecto, grande ou pequena — e, seja grande ou pequena, sente orgulho nela. Ademais, o seu coração enfuna-se à menção dos nomes dos majestosos líderes intelectuais da sua raça, e ele adora as histórias das suas esplêndidas realizações. Pois ele é sangue do seu sangue, e, ao enobrecerem-se a si mesmos, eles enobreceram-no a ele. Vede!, o que a mente do homem pode fazer! ele lacrimeja; e faz a chamada dos ilustres de todas as eras; e faz referência às imperecíveis literaturas que eles deram ao mundo, e às maravilhas mecânicas que eles inventaram, e às glórias com que eles revestiram a ciência e as artes; e perante eles se descobre, como se reis fossem, e presta-lhes a mais profunda homenagem, e também a mais sincera, que o seu coração exultante pode prover — desta forma exaltando o intelecto acima de todas as outras coisas no mundo e entronizando-o sob a arcadura dos céus, numa supremacia inatingível. E depois concebe um céu onde não há um pingo de intelectualidade em lado nenhum!
É estranho, é curioso, é complicado? Por incrível que pareça, é exactamente como vos contei. Este sincero adorador do intelecto e pródigo recompensador dos seus poderosos serviços aqui na Terra inventou uma religião e um céu que não fazem quaisquer elogios ao intelecto, não lhe oferecem quaisquer distinções, não lhe concedem qualquer dádiva; na verdade, nem sequer lhe fazem referência.
Por esta altura já tereis reparado que o céu do ser humano foi cuidadosamente pensado e construído de acordo com um plano absolutamente definido — e que este plano é, que ele deverá conter, em laborioso pormenor, toda e qualquer coisa imaginável que seja repugnante ao homem, e nem uma única de que ele goste!
Muito bem, quanto mais prosseguirmos, mais este facto curioso se tornará evidente.
Tomem nota: no céu dos homens, não há exercícios para o intelecto, nada de que este possa viver. Uma vez ali, apodreceria num ano — apodreceria e federia. Apodreceria e federia — e nessa altura tornar-se-ia santo. É uma coisa abençoada — pois só os santos conseguem suportar os prazeres daquele manicómio
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1. Sabbath, no original (N. do T.)
(in Cartas da Terra, Bertrand Editora)
publicado por Augusta Clara às 14:00
editado por Luis Moreira às 00:03
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Quinta-feira, 20 de Janeiro de 2011
Coordenação de Augusta Clara de Matos
Cartas em andamento
por Ethel Feldman
Quem dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir. Depois tu sorris e eu esqueço tudo que aprendi.
Já passavam das dez da manhã quando acabei de ler. Não me lembro ao pormenor, como vim parar aqui. Quando os militares tomaram o poder substituíram a censura pela leitura selectiva. Sem eira nem beira fui colocada no ministério da cultura.
- Major, não arranja um trabalho para a minha filha?
O pobre coitado que tinha acabado de mudar de patente ficou embatucado. A memória de um favor por pagar visitava delicadamente o presente.
- Claro que sim. A revolução precisa de jovens que estejam ao lado da liberdade.
Pois foi assim que me tornei leitora profissional. Milhares de cartas por ler!
A vida é feita de regras e a que me foi destinada era só uma: - LER!
Bastava ler, dobrar a carta e colocar de novo no envelope. Em seguida ia para um caixote das CARTAS LIDAS.
Era uma jovem responsável, apoiante da revolução. Foi num ápice que li todas as cartas. Um velho funcionário aconselhou-me a voltar a colocar as cartas já lidas no caixote das CAIXAS POR LER, pois se me mostrasse desocupada seria despedida.
Lembro-me de ter sorrido. Sempre senhora da verdade corri ao gabinete do major.
- Major as cartas já foram lidas. Devo responder?
- Todas? Se não há mais cartas sou obrigado a mandá-la embora…
Quem me dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir.
Depois tu sorris e eu esqueço de tudo o que aprendi
(Porque agora a ladainha da velha? Porque esta dor que rompe o som?)
- Mas Major hão-de vir mais cartas para ler. Devo responder às que já li?
- Seu trabalho é de leitura. Ninguém escreve à espera de uma resposta. E se esperar, paciência – temos mais o que fazer. Continue lendo. Quando deixarem de escrever acaba o seu trabalho.
No corredor Sebastião sorria só com o olhar.
- Eu avisei. Coloque as cartas lidas no caixote das cartas por ler, se quiser este emprego…
Passaram 20 anos e o meu sorriso perdeu-se pelo caminho. Não sei quantas voltas já dei ao caixote.
Há cartas que sei de cor. Outras o tempo tratou de engolir o texto. Passados seis meses o major foi colocado noutro lugar, mas eu já me habituara à rotina das caixas.
Ninguém se preocupou – o trabalho quando bem feito não deve ser alterado. Já tinha encontrado uma metodologia que rentabilizava o circuito. Quem precisa de mudar quando tudo parece tão perfeito?
Hoje eram dez e eu já tinha lido tudo. Amanhã vou acompanhar o corpo de Sebastião. Morreu de morte natural – foi o que li na carta que a esposa enviou aos colegas. Esta vai para o caixote das CARTAS LIDAS.
Quem me dera que a felicidade fosse feita dessa vontade que tenho em não existir.
Depois tu sorris e eu esqueço de tudo o que aprendi
(Sempre a ladainha da velha. A mesma dor que rompe o som – todos os dias!)
publicado por Carlos Loures às 14:00
editado por Luis Moreira às 17:24
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