Pelas paredes da tarde desliza a luz incendiada do sol. Desprende-se um calor seco e sufocante da atmosfera de Junho. Saem da terra novelos de sonolência a asfixiarem a paisagem da Casa de Ceide.
Incurável, disse. Estes médicos novos não poupam os doentes. Quem ali esteve não foi um médico foi um avejão. Muita honra em conhecer o escritor, conversa, observação e depois disse-lhe tudo sem réstia de esperança. Camilo adivinhava há muito o diagnóstico. Uma coisa é adivinhar outra é ouvir de quem sabe, ficar sozinho com a dor da certeza. Cego já está há muito! Praticamente só vê sombras. Quem lê os jornais, as cartas, os livros é ela. Quem escreve os textos é ela. Precisa dos olhos, toda a gente precisa dos olhos, mas ele precisa dos olhos para sentir e depois escrever.
A tarde está abafada, surda de calor, nem se ouve o canto de um pássaro nem o ladrar de um cão. Há um silêncio mórbido a escorrer pelas paredes, um silêncio povoado de assombrações de escárnio do seu drama. Fora! Fora! Pousa a mão sobre o tampo da escrivaninha. São escuros e feios estes diabinhos que dançam à sua volta torturando-lhe o espírito. Voam por todos os cantos da sala como se nesse voar irrequieto e provocador o incitassem à loucura do gesto definitivo. Mas existirão de facto gestos definitivos ou apenas gestos julgados como tal?
No patamar de cantaria o médico despede-se da senhora viscondessa. Nada a fazer. Em pouco tempo ficará cego… Leve-o para o Gerês sempre distrai e o ar da serra dar-lhe-à tranquilidade. Ana não responde. Não existem respostas para verdades trágicas. Perante o inevitável as palavras perdem sentido, tornam-se desmembrados sons de dor e os sons de dor são tão íntimos e profundos que só o silêncio os escuta.
A caleche aguarda. As duas éguas sacodem as moscas. O médico desce os poucos degraus e toma o seu lugar. Ao grito do cocheiro a parelha arranca e põe-se a desaparecer no horizonte ofuscada pelo pó xistoso e as vibrações do calor.
A maior clareza da vida está na lucidez dos actos. Podem nem ser muitos, podem mesmo ser raros, pode ser apenas um único acto que dá clareza a toda uma vida. Agora nada justifica procurar razões antigas, interpretá-las, fazer penitência de pecados velhos. O passado é um rio de hipóteses fedorentas que suportam erros e frustrações das pessoas. Seria uma inutilidade mental e de tempo mergulhar nesse rio, basta-lhe a consciência da decadência física para que o presente seja insuportável. Respira mal, o estômago roubou-lhe o prazer alimentar, o fígado rabuja a cada cálice de Porto, os rins estão secos, as artroses prendem-lhe as pernas e deformam-lhe os dedos, os olhos murcharam e não têm estrelas até os ouvidos estão surdos ao zurrar dos burros. Está azedo, inconformado, incapaz de manter diálogo com o seu corpo. Quando o corpo se transforma num monte de esterco nem sequer merece a nossa piedade. Por isso ninguém gosta de velhos, nem ele gosta de velhos, são presenças que escondem sob a indulgência da idade as putices que fizeram na vida, como ele.
A vaga sombra projectada pela acácia do Jorge vinca a ossatura das janelas encerradas a fim de resguardarem a casa do calor ácido desprendido da terra seca. A atmosfera parada comprime a paisagem tornando-a inerte. A luz magnética do sol espalhada pelo terreiro lapida a matéria de formas mortas repassadas de febre na tarde ausente de sons.
A esperança é negra e quando a esperança é negra deixa de ser esperança para ser apenas um fio de ilusão. A autêntica esperança vinda de dentro como força da natureza é de cores quentes e sensuais que despertam alegria e vontade para ultrapassar os nossos desaires. Também pode vestir-se de cores frias, não deliberadamente negativas, capazes de nos ajudar a encontrar o amor e a paz, sossego para as interrogações que abrem caminho às mágoas da existência. A sua esperança não é nada disso, nem quente nem fria, reduz-se a um pavio que tremelica, exausto, no mundo espesso daquelas paredes, numa demencial e hesitante chama espalhando presságios. Os móveis, os objectos, os quadros, o retrato do Jorge, os tapetes, o bengaleiro onde pendem as cartolas, as tábuas do sobrado gemendo ao correr dos passos participam dessa atmosfera que faz da casa um reduto de clausura.
Camilo vagueia o olhar turvo pelo aposento mergulhado na semi-obscuridade que os resguardos interiores das janelas defendem da luz ferina. Tudo ali deixou de respirar, perdeu cor e formas, só ele respira mecanicamente como se já não fosse sua a consciência de existir naquele espaço. Inquieta-se, mexe-se na cadeira, vai buscar oxigénio ao fundo do mais fundo do peito. Resvala no sofrimento interior arrastando os segundos de uma decisão que desde há muito está tomada. A hesitação serve apenas para prolongar o drama e enfraquecer a coragem. A mão fria de dedos esguios agita-se e começando a deslizar lentamente pela superfície polida de madeira abre o tampo da escrivaninha.
Oh, este calor amarelo que parece o fogo do juízo final a envolver o universo das almas. Sobe da terra um sopro agudo de indícios assombrados procurando esconderijo entre eucaliptos. A igreja perfila-se no horizonte com as paredes brancas absorvendo a paz da solidão e os sinos do campanário estão adormecidos à espera das horas fatigadas. Tudo parece constituído por imagens graníticas de uma ancestralidade tormentosa que perdura na copa ampla do caramanchão calcinado por estios e invernias sob a maldição do espírito de Pinheiro Alves. O terrado é campo tumular onde não assenta zumbido de voz, chiar de rodas, voar de pássaro ou ladrar de cão. Repouso branco da natureza pingando uma opressão indesejável que deixa no ar pesado uma quietude imaculada.
Longínqua, traça-se num tom de fogo a distante linha sinuosa de um destino nascido em dia de infortúnio. Espírito rebelde, inconformado, aventureiro, sentindo a sua pobreza original como humilhação da personalidade tratou de se impor pelo talento da pena, a mordacidade audaciosa e provocadora de um carácter incapaz de se rever fora do seu egoísmo. Feio, bexigoso, magro, tocado por qualquer coisa sobrenatural levava a desgraça consigo num desafio permanente de perversidade a esse malfadado destino.
A agonia de um destino é dolorosa porque marca a separação entre o percurso vivido e o acerto de contas com o outro a viver. Todavia é uma separação imaginária pois a vida é um todo, sem um antes e um depois mas um sempre, absoluto, em que os comportamentos são julgados. E quem os julga? Onde haverá lugar à condenação definitiva dos actos do ser? Ele nem sequer receia o julgamento pois se receio houvesse seria o de si próprio e esse está feito há muito tempo e decidida a sentença. Os outros, mesmo de Deus, são caminhos para uma trajectória onde a sua vontade prevalece. O único julgamento real é o meu! A mão que escreve é a mão que executa, aquela a quem concedo esse direito. Essa mão parada como se pensasse, tomasse fôlego de decisão. Mão sofrida a rodar com vagarosidade exasperante como à procura de um percurso a prosseguir firme, representação profética de um caminho encontrado ao sentir o frio metálico do revólver.
Tudo só, tudo inerte na languidez da tarde. Ana sob a sombra pálida da Acácia ficou a ver a caleche do médico a rodar no horizonte donde já desapareceu. A sua figura alta, forte, de mulher enérgica, está presa da indecisão em encontrar respostas antecipadas à bateria de perguntas a que irá ser submetida. As pérolas do sol percorrem a atmosfera abrindo um manto de angustiosas sensações, espécie de aviso prévio de que, naquele instante, cada segundo é mais do que uma gota de tempo, lâmina de golpe súbito desferido por um estampido seco, imparável, rasgando a tarde de alto a baixo. Relincham os cavalos na estrebaria, as cigarras suspendem o canto, os cães ladram na distância. Um fio de sangue corre pelos espaços do dia fazendo do som um cutelo que arranca de Ana o grito de alma (Camilo!) antes de desaparecer como uma sombra no interior da habitação.
Próximo da janela e da escrivaninha onde se encontra aberta a caixa das balas a cadeira de baloiço oscila num melancólico vaivém. Do perfil magro e anguloso do corpo destaca-se a cabeça tombada sobre o peito, os braços pendentes na direcção do solo, os óculos a oscilarem presos pela fita que contorna o pescoço. Um fio de sangue desce da têmpora direita sulcando a face e perde-se através do farto bigode até acabar absorvido no cós da camisa. Uma das mãos (dedos longos e estrangulados nas articulações, mãos belas dos artistas infelizes), segura ainda o revolver, objecto transportador das sombras ocultas que dominando todas as resistências submergem a vida de um homem supliciado ainda na lividez do rosto e na respiração quase imperceptível.
Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa, a 16 de Março de 1825, na Rua da Rosa, filho ilegítimo de Manuel Joaquim Botelho e de Jacinta Rosa do Espírito Santo, uma sua criada. Antes de Camilo, tinha já nascido uma outra filha do casal, Carolina. No ano seguinte, a família mudou-se para a Rua da Oliveira.
A sua vida foi atribulada: ficou órfão bastante cedo, tendo passado a viver, primeiro com uma tia, em Vila Real, depois com uma irmã, período de que data a sua aprendizagem literária.
A mãe morreu em 1827 e o pai perfilha Camilo e a irmã dois anos depois, em 1829. Camilo iniciou os estudos primários em Lisboa (1830), na escola de mestre Inácio Minas, situada na Rua dos Calafates, e depois na escola de Satírio Salazar, na Calçada do Duque.
Os parentes decidem confiar a educação dos dois órfãos a uma tia paterna, Rita Emília — uma das personagens de Amor de Perdição —, e os dois regressam, por isso, a Vila Real (1836). Quando a irmã se casa (1839), instala-se com o marido em casa de um cunhado, o P. António de Azevedo, em Vilarinho de Samardã, nas proximidades de Vila Real. Camilo acompanha-a e recebe do P. António uma educação literária e religiosa tendente ao estado clerical; terá então sido iniciado nos clássicos portugueses e adquiriu os conhecimentos básicos de latim e francês. Simultaneamente contactou de perto com a vida rural, que depois iria descrever em algumas das suas novelas.
Com apenas dezasseis anos (1841), Camilo casa com Joaquina Pereira de França e instala-se em Friúme (Ribeira de Pena). O casamento precoce parece ter sido resultado de uma mera paixão juvenil, não tendo resistido muito tempo. No ano seguinte prepara-se para ingressar na Universidade, indo estudar com o Padre Manuel da Lixa, em Granja Velha.
Em 1843 nasce a sua filha Rosa e decide inscrever-se na Escola Médica do Porto. Nos anos seguintes frequenta irregularmente as aulas e chega mesmo a perder o ano por faltas, em 1845. Pensou ainda em matricular-se no curso de Direito, em Coimbra, mas o projecto não teve continuidade. Nesse mesmo ano faz a sua estreia literária com o poema herói-cómico Pundonores Desagravados
Em 1846 encontra em Vila Real a jovem Patrícia Emília de Barros — sua prima — e foge com ela para o Porto, sendo perseguido pela justiça, em resultado da queixa dos parentes da moça. Passa a colaborar nos jornais O Nacional e o Periódico dos Pobres. Escreve a peça Agostinho de Ceuta, que é representada pela primeira vez num teatro de Vila Real.
Depois da morte da esposa (1847), Joaquina Pereira, muda-se para o Porto e entrega-se a uma vida de boémia, entremeada com escândalos de carácter amoroso, ao mesmo tempo que se dedica mais profissionalmente à actividade jornalística, prestando colaboração ao Jornal do Povo. Rosa, a sua filha legítima, morre e nasce uma outra filha, Bernardina Amélia, fruto da relação com Patrícia Emília.
Em 1850 instala-se durante algum tempo em Lisboa e passa a viver exclusivamente da sua actividade literária. É por esta altura que conhece Ana Plácida, noiva de Manuel Pinheiro Alves, o que não o impede de se envolver amorosamente com uma freira do Porto, Isabel Cândida Vaz Mourão. Decide então inscrever-se no seminário do Porto, decisão a que não será estranho o casamento de Ana Plácido, mas rapidamente abandona o curso de Teologia. Nos anos seguintes funda dois jornais de carácter religioso, O Cristianismo (1852) e A Cruz (1853) e continua a colaborar com vários outros, em ocasiões distintas.
Em 1857, transfere-se para Viana do Castelo, como redactor do jornal A Aurora do Lima. Ana Plácido vai também para lá, a pretexto de apoiar uma irmã doente, e a ligação entre os dois torna-se pública. O escândalo cria-lhe dificuldades com vários jornais em que colaborava. Talvez por isso decide publicar o jornal O Mundo Elegante, em 1858. Ainda nesse ano, sob proposta de Alexandre Herculano, é eleito sócio da Academia Real das Ciências. Por essa altura, Camilo e Ana Plácido passam a viver juntos e deslocam-se de terra em terra para fugir à justiça. Em 1859 nasce o filho Manuel Plácido.
Após queixa de Manuel Pinheiro Alves contra a mulher e o amante, Ana Plácida é presa em Junho de 1860 e Camilo foge à justiça durante algum tempo, mas acaba por entregar-se em Outubro, ficando detido na cadeia da Relação do Porto, onde é visitado pelo próprio rei D. Pedro V. Finalmente, em Outubro de 1861 os dois são absolvidos pelo juiz, curiosamente, pai de outra grande figura das letras, Eça de Queirós.
Episódio não provado da sua vida é a participação na revolta da Maria da Fonte e da Patuleia. No Porto, inicia uma vida de boémia e escândalo, marcada por inúmeras aventuras amorosas e uma tentativa de suicídio. Em 1850, depois de uma breve atracção pela vida sacerdotal, inicia o seu período de maior produção literária, de que referiremos apenas as principais obras: logo em 1850, o panfleto O Senhor Alexandre Herculano e o Clero; em 1851, Anátema; em 1855, O Livro Negro do Padre Dinis e A Filha do Arcediago. Entre 1859 e 1862, desenrolam-se os lances principais da sua aventura com Ana Plácido: fuga para Lisboa, prisão por adultério, novamente na Cadeia da Relação, julgamento e absolvição dos dois amantes. Em 1863, nasce em Lisboa o segundo filho do casal, Jorge, que viria a criar-lhe sérios problemas, com o seu alcoolismo crónico. Com a morte de Manuel Pinheiro Alves, o marido de Ana Plácido, Manuel Plácido, legalmente seu filho, herda a casa de São Miguel de Ceide, em Famalicão. No ano seguinte, já instalados em São Miguel de Ceide, nasce o terceiro filho, Nuno, que viria, também ele, a manifestar comportamentos desregrados durante a juventude. Ao longo destes anos, Camilo desenvolve uma intensa actividade literária, ganhando notoriedade pública como escritor. Em 1868 volta ao Porto para dirigir a Gazeta Literária. No ano seguinte passa longas temporadas em Lisboa, embora o domicílio familiar permaneça em São Miguel de Ceide. Anos depois, em 1875, pensando na educação dos filhos, transfere a residência para Coimbra. Dois anos depois, o filho mais velho, Manuel Plácido, morre. Por esta altura Camilo tem já alguns problemas de visão, que se irão agravar com a idade.
Mais tarde, em 1881, participa activamente no rapto de uma jovem para a casar com o filho Nuno. As relações com o filho degradam-se e Camilo acaba por o expulsar de casa em 1882. Em 1883, atormentado por dificuldades financeiras, leiloa a sua biblioteca. Em 1885 é-lhe finalmente concedido o título que ele solicitara em vão, quinze anos antes — visconde. Em 1888 casa com Ana Plácido.
Definitivamente cego, em 1890, põe fim à vida e aos sofrimentos físicos e morais (a morte de um filho de Ana Plácido que se crê ser de Camilo, a loucura do filho Jorge, a irresponsabilidade do filho Nuno), suicidando-se com um tiro na cabeça.
Camilo foi seguramente o primeiro escritor profissional português. Durante quase toda a sua vida activa assegurou a sua subsistência e a da família, depois de assumida a relação com Ana Plácido, com os seus trabalhos jornalísticos e as novelas que publicava em ritmo frenético: a sua bibliografia ultrapassa muito a centena de títulos, descontada a profusa colaboração espalhada pelos jornais da época.
A sua actividade desdobrou-se pelos mais variados géneros: destacando-se como novelista, foi também poeta, contista, dramaturgo, polemista, jornalista, tradutor e editor, deixando uma obra vastíssima. Essa actividade literária tão intensa — "forçado das letras", chamou-lhe alguém — bem como a leitura frequente e atenta dos escritores portugueses, sobretudo os clássicos, são os principais responsáveis pelo domínio da língua, que revela em numerosas passagens das suas obras. É verdade que o ritmo vertiginoso com que escrevia (o Amor de Perdição, por exemplo, terá sido escrito em cerca de quinze dias) não lhe permitia trabalhar como gostaria a escrita. Essa urgência da escrita é certamente a grande responsável pela irregularidade qualitativa da sua obra, onde encontramos textos de inegável qualidade a par de outros que não conseguiram resistir ao tempo.
Embora seja um escritor da segunda metade do século XIX, a verdade é que muitas das suas novelas reflectem o clima social, político e mental da primeira metade — época extremamente conturbada, a nível político, e marcada por profundas transformações de natureza social.
As invasões francesas, iniciadas em 1807, obrigaram ao exílio da família real no Brasil. Esse facto mostrou a fragilidade do poder estabelecido (a monarquia absoluta) e terá certamente dado força aos grupos sociais mais favoráveis aos ideais proclamados pela Revolução Francesa — liberdade, igualdade, fraternidade — ou simplesmente interessados em substituir o poder das classes tradicionais (nobreza e clero) pelo seu próprio poder. Essas duas forças estavam muito equilibradas e o conflito entre absolutistas e liberais prolongou-se só vindo a resolver-se, a favor dos segundos, em meados da década de 30. O facto de as ideias liberais, de origem francesa, poderem ser associadas ao invasor do país (os sucessivos exércitos de Napoleão) terá fortalecido a adesão de muita gente ao grupo absolutista, adiando a implantação da monarquia constitucional. O anticlericalismo da facção liberal também não contribuía para a expansão das suas ideias, já que a população rural, religiosa, analfabeta e controlada pelo clero, rejeitava com vigor as ideias defendidas pelos "herejes".
Quando finalmente em 1834 os absolutistas são vencidos, o conflito transfere-se para o campo liberal, opondo conservadores e progressistas. A estabilidade só chegará em 1851, com a Regeneração.
Ora, Camilo formou-se, como homem e como escritor, nesta sociedade em efervescência. E é nesse clima de agitação, de instabilidade, que decorre a acção de muitas das suas novelas.
As suas novelas constituem um painel descritivo, em tom frequentemente sarcástico, da sociedade portuguesa do século dezanove. A sua atenção debruça-se sobretudo sobre uma aristocracia em clara decadência — material e moral — e uma burguesia em ascensão, que, aos seus olhos, se destaca pela boçalidade.
A obra de Camilo é, em grande parte, um reflexo do seu próprio percurso biográfico. A agitação, a instabilidade, os raptos, o conflito entre a paixão e a razão que encontramos nas novelas de Camilo, encontramo-los igualmente na vida de Camilo. Por outro lado, como profissional das letras que era, Camilo não pôde ignorar os apelos do seu público, que os editores traduziam sob a forma de pressões incontornáveis. Camilo vivia da escrita, e para isso precisava vender, o que implicava obedecer de alguma maneira às solicitações do público leitor. É essa sujeição aos gostos dominantes que explica também a "conversão" naturalista, detectável nas últimas obras de Camilo.
Independentemente dessas cedências, há na sua obra passagens antológicas, onde transparecem os costumes, os comportamentos, os jeitos de falar do norte de Portugal.
A exuberância, o imprevisto, o excesso passional das suas intrigas cativaram igualmente a geração literária dita ultra-romântica, que o homenageou quase no fim da vida.
A intriga é quase sempre de teor passional, como se esperaria de um escritor romântico. Os impulsos do coração determinam a acção das personagens principais, que, normalmente, se defrontam com outras, movidas por outros impulsos menos ideais: o estatuto social, as rivalidades familiares, os interesses económicos...
As suas intrigas são frequentemente demasiado lineares, mas não se pode negar a Camilo uma capacidade de efabulação notável.
As condicionantes estéticas da sua época, os circuitos editoriais, a sociologia e psicologia do seu público e a sua própria personalidade impuseram à sua obra novelística características fortemente românticas. No entanto, a sua longa permanência de quase meio século na vida literária, e a sua dependência financeira da escrita, levaram-no, talvez a contragosto, a tentar acompanhar a evolução ideológica do seu tempo. Daí que o mais romântico dos nossos escritores nos apareça, quase no fim da vida, a ensaiar uma escrita realista e até naturalista.
É autor de uma obra multifacetada. Nela se destaca, como sabemos, a componente novelística, mas estende-se também pelo teatro, jornalismo, ensaios biográficos e históricos, poesia, polémica, crítica literária, além de dezenas de traduções e uma extensa epistolografia.
Vida e obra, realidade e ficção interpenetram-se no percurso de Camilo Castelo Branco, o escritor mais abundante do Romantismo português.
A produção literária de Camilo sofreu grande influência das atribulações, nomeadamente amorosas, da sua vida. Tendo de se sujeitar frequentemente às exigências dos seus editores, fazendo cedências, apressando a escrita, recorrendo a estereótipos que satisfizessem o gosto da época, a sua produção é algo irregular e apresenta algumas falhas. No entanto, soube pintar de forma ímpar os costumes e gentes da sua região e os seus modos de falar; as suas personagens revelam ainda uma intensidade passional que o celebrizou.
A sua vida foi atribulada: ficou órfão bastante cedo, tendo passado a viver, primeiro com uma tia, em Vila Real, depois com uma irmã, período de que data a sua aprendizagem literária. Quando contava dezasseis anos, casou-se com uma aldeã, de quem cedo se separou. Estudou Medicina no Porto, de 1842 a 1844, e preparou-se para ingressar no curso de Direito em Coimbra, que não chegou a frequentar. A partir de 1848, dedicou-se à actividade jornalística, no Porto. Integrando-se no grupo dos «leões» do café Guichard, dedicou-se aos escritos polémicos e à novelística. Entre as várias aventuras amorosas que vinha tendo, salienta-se a sua paixão por Ana Plácido, cujo casamento o levou a matricular-se num seminário, em 1850. Dois anos mais tarde, regressou à actividade jornalística e literária, impondo-se nos círculos culturais de então. Em 1859, fugiu com Ana Plácido. Os dois foram presos, acusados de adultério, e absolvidos posteriormente, em 1861. Após a morte do marido de Ana Plácido, passaram a viver na casa deste, em São Miguel de Ceide. Dependente da sua escrita para sustento da família, Camilo viveu dificuldades económicas. Os seus problemas agravaram-se com o avanço progressivo da cegueira. Em 1888, casou-se com Ana Plácido e, dois anos mais tarde, suicidou-se com um tiro de pistola.
A maior glória da literatura portuguesa escreveu uma carta datada de 21 de Maio de 1890: «Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país, durante quarenta anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego». A 1 de Junho do mesmo ano, depois do dr. Edmundo de Magalhães Machado, oftalmologista de renome, o ter examinado cuidadosamente na sua casa de S. Miguel de Ceide. Camilo percebe que a cegueira era irreversível. Despediu-se do médico, saindo este acompanhado de Ana Plácido: «Calmo e decidido, Camilo sacou do revólver, em seu poder há vários anos, e disparou sobre o parietal direito».
O suicídio sempre lhe fora familiar, parece que «primeiro como uma especulação da inteligência», depois, à medida que a cegueira progredia como resolução final. O escritor recusava deixar-se ficar um morto vivo. Considerado um dos grandes prosadores românticos, ainda durante a sua vida foi muito admirado pela geração ultra-romântica, e homenageado oficialmente recebendo, em 1885, o título de visconde de Correia Botelho. É geralmente tido como um dos grandes escritores portugueses.
Obras: Da extensíssima bibliografia de Camilo salientam-se Pundonores Desagravados, 1845 (sátiras); Anátema, 1851 (novela); Inspirações, 1851 (poesias); Mistérios de Lisboa, 1854 (folhetim); O Livro Negro do Padre Dinis, 1855 (novela); A Filha do Arcediago, 1857 (novela); Amor de Perdição, 1862 (novela); Memórias do Cárcere, 1862 (memórias); Esboços de Apreciações Literárias, 1865 (crítica literária); Vaidades Irritadas e Irritantes, 1866 (opúsculo); A Queda de um Anjo, 1866 (novela); O Retrato de Ricardina, 1868 (novela); Curso de Literatura Portuguesa, 1876 (crítica literária); Eusébio Macário, 1879 (novela); A Corja, 1880 (novela); A Brasileira de Prazins, 1883 (novela).
Gostaria de começar com uma pergunta ou então com o simples facto das rosas que daqui se vêem entrarem no poema. O que é então o poema? um tecido de orifícios por onde entra o corpo sentado à mesa e o modo como as rosas me espreitam da janela? Lá fora um jardineiro trabalha, uma criança corre, uma gota de orvalho acaba de evaporar-se e a humidade do ar não entra no poema. Amanhã estará murcha aquela rosa: poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte e depois entrar num canteiro do poema, enquanto um botão abre em verso livre lá fora onde pulsa o rumor do dia. O que são as rosas dentro e fora do poema? Onde estou eu no verso em que a criança se atirou ao chão cansada de correr? E são horas do almoço do jardineiro! Como se fosse indiferente a gota de orvalho ter ou não entrado no poema!
(Soletrar o Dia. Obra Poética, 2002)
Carlos de Oliveira (Belém do Pará, 1921 — Lisboa, 1981) MICROPAISAGEM
(…)
5) O trabalho oficinal é o fulcro sobre que tudo gira. Mesa, papel, caneta, luz eléctrica. E horas sobre horas de paciência, consciência profissional. Para mim esse trabalho consiste quase sempre em alcançar um texto muito despojado e deduzido de si mesmo, o que me obriga por vezes a transformá-lo numa meditação sobre o seu próprio desenvolvimento e destino. É o caso da “Micropaisagem”. Um texto diante do espelho: vendo-se, pensando-se.
6) Escrevo com frequência interpretações doutros poetas. Perguntam-me porquê. Respondo precisamente citando um poeta: “J’imite. Tout le monde imite, tout le monde ne le dit pas” (Aragon). Porém os poetas nestas coisas não devem ser tomados muito à letra. Quem não sabe ainda que o poeta é um fingidor?
(“O Aprendiz de Feiticeiro”)
Paul Verlaine (Metz,1844 - Paris, 1896)
ART POÉTIQUE
De la musique avant toute chose, Et pour cela préfère l'Impair Plus vague et plus soluble dans l'air, Sans rien en lui qui pèse ou qui pose.
Il faut aussi que tu n'ailles point Choisir tes mots sans quelque méprise: Rien de plus cher que la chanson grise Où l'Indécis au Précis se joint.
C'est des beaux yeux derrière des voiles, C'est le grand jour tremblant de midi, C'est, par un ciel d'automne attiédi, Le bleu fouillis des claires étoiles!
Car nous voulons la Nuance encor, Pas la Couleur, rien que la nuance! Oh! la nuance seule fiance Le rêve au rêve et la flûte au cor!
Fuis du plus loin la Pointe assassine, L'Esprit cruel et le Rire impur, Qui font pleurer les yeux de l'Azur, Et tout cet ail de basse cuisine!
Prends l'éloquence et tords-lui son cou! Tu feras bien, en train d'énergie, De rendre un peu la Rime assagie. Si l'on n'y veille, elle ira jusqu'où?
O qui dira les torts de la Rime? Quel enfant sourd ou quel nègre fou Nous a forgé ce bijou d'un sou Qui sonne creux et faux sous la lime?
De la musique encore et toujours! Que ton vers soit la chose envolée Qu'on sent qui fuit d'une âme en allée Vers d'autres cieux à d'autres amours.
Que ton vers soit la bonne aventure Eparse au vent crispé du matin Qui va fleurant la menthe et le thym... Et tout le reste est littérature.
Para ver e ouvir «Art poétique» de Paul Verlaine e Léo Ferré, cantado por Léo Ferré:
E agora, quem se segue? -Archibald Mac Leish, Adão Cruz e Manuel Alegre- às oito em ponto.
José Francisco Trindade Coelho, nasceu em Mogadouro a 18 de Junho de 1869 e suicidou-se em Lisboa em 1908. Dividiu os estudos primários entre Mogadouro e Travanca e completou os estudos secundários como interno num colégio portuense.
Órfão de mãe aos 6 anos, partiu com o pai para o Porto, onde fez os estudos liceais num colégio interno, e depois para Coimbra, onde frequentou o curso de Direito e se casou, conhecendo grandes dificuldades financeiras.
Em 1886, graças ao interesse de Camilo junto do seu amigo Tomás Ribeiro, então ministro de Estado, foi nomeado delegado do procurador régio no Sabugal, mudando depois para Ovar e, em 1889, para Lisboa. Depois de uma passagem por África, regressou à capital e foi colocado em Sintra. Em 1895, foi finalmente nomeado juiz em Lisboa.
Paralelamente à carreira jurídica, desenvolveu uma intensa actividade jornalística: fundou, ainda em Coimbra, Porta-Férrea e O Panorama Contemporâneo; em Portalegre, a Gazeta de Portalegre e o Comércio de Portalegre; em Lisboa, a Revista Nova; colaborou em muitos outros periódicos, como O Progressista, O Imparcial, Tirocínio, Beira e Douro, Jornal da Manhã, Portugal, Novidades e O Repórter. Publicou diversas obras didácticas (desde manuais pedagógicos, como o ABC do Povo, de 1901, adoptado oficialmente nas escolas públicas, até ao guia de cidadania Manual Político do Cidadão Português, de 1905, entre muitos outros títulos).
Em 1907, durante a ditadura de João Franco, foi exonerado do lugar de delegado do procurador régio. Esse dissabor, acrescido das desilusões com a Justiça acumuladas durante toda a vida e da doença nervosa de que padecia, levá-lo-ia ao suicídio, no ano seguinte.
Celebrizou-se pelo livro de memórias In Illo Tempore (1902) e, sobretudo, pelo volume de contos rústicos Os Meus Amores (1891), eivado de saudosismo e de reminiscências da infância vivida em Trás-os-Montes, onde foi de encontro ao desejo neogarrettista de regresso às origens nacionais, expresso no artigo inaugural da Revista Nova, de 1893: «Necessário é retemperar-nos nas camadas onde essas qualidades [fundamentais do nosso génio] mais perfeitamente se mantêm, indo às províncias do país buscar para os desfalecimentos do espírito a saúde e o vigor que para as enfermidades do corpo vamos pedir às brisas salgadas do mar e ao ar fortificante dos campos, mergulhando e realentando-nos nesse fecundo veio, que, depois de Garrett, ninguém mais soube sondar e seguir».
A sua obra reflecte a infância passada em Trás-os-Montes, num ambiente tradicionalista que ele fielmente retracta, embora sem intuitos moralizantes. O seu estilo natural, a simplicidade e candura de alguns dos seus personagens, fazem de Trindade Coelho um dos mestres do conto rústico português. Fiel a um ideário republicano, dedicou-se a uma intensa actividade pedagógica, na senda de João de Deus, tentando elucidar democraticamente o cidadão português.
Embora os pais fossem ricos (a mãe morreu ainda ele era jovem) a verdade é que ele chumbou no 1. º ano do curso de Coimbra e o pai cortou-lhe a mesada, pelo que Trindade Coelho teve que arranjar forma de ultrapassar as dificuldades.
Começou então a dar explicações e a escrever em jornais. Entretanto casou e apareceu um filho, facto que mais complicou a sua vida, enquanto estudante. Nessa altura, chegou mesmo a ter um esgotamento. Ele próprio escreveria do ambiente Coimbrão: «aquela vida em que estive metido e que nunca se deu comigo nem eu com ela, mas em que nunca me dei razão porque lha atribuía a ela e a mim uma inferioridade que mais pesava por ser sincera».
Nesse período escrevia nos jornais com o pseudónimo de Belistírio. Também fundou, nessa época, duas publicações: Porta Férrea e Panorama Contemporâneo.
Após a conclusão do curso permaneceu em Coimbra, como advogado. Mas a clientela era pouca e ele enveredou pela carreira administrativa. Ingressa na magistratura e é colocado como Delegado do Procurador Régio, na comarca de Sabugal. Sabe-se que para obter esse lugar, foi precisa a «cunha» de Camilo Castelo Branco, que admirava, literariamente Trindade Coelho. Sabe-se, também, que valeu a pena porque foi Trindade Coelho um magistrado de elevadíssima craveira moral.
Foi depois transferido para a comarca de Portalegre. Aí fundou dois jornais: Gazeta de Portalegre e Comércio de Portalegre. Entretanto granjeara fama e os políticos da época quiseram fazer dele um deputado. Como não podia candidatar-se pelo círculo onde trabalhava, foi transferido para Ovar. A última etapa profissional foi Lisboa, onde não teve tarefa fácil por causa do Ultimato Inglês, durante o qual ele teve que fiscalizar a imprensa da capital. Desgostado com as críticas que lhe faziam transferiu-se para Sintra, em 1895. Entretanto, chegou a ir a África (Cabo Verde) defender 33 presos políticos. Ao fim de 3 meses regressou vitorioso, porque conseguiu libertar os presos, prendendo os acusadores. Continuou a escrever nos jornais: Portugal, Novidades, Repórter e fundou a Revista Nova, onde publicou os Folhetos para o Povo.
Era um homem inconformado. Nem a fama de magistrado, nem o prestígio de escritor, nem a felicidade conjugal conseguiam fazer de Trindade Coelho um cidadão feliz. À medida em que avançava no tempo mais se desgostava com a vida, pelo que o desespero o levou ao suicídio em 9 de Junho de 1908. Deixou uma obra variada e profunda, distribuída por quatro vertentes. Jornalismo, carácter jurídico, intervenção cívica e literária. Além dos órgãos que criou, já citados, colaborou, com os pseudónimos de Belisário e José Coelho, em: O Progressista, o Imparcial, Tirocínio, Beira e Douro. Jornal da Manhã. Algumas obras: Manual Político do Cidadão Português, o ABC do Povo, o Livro de Leitura. A série Folhetos para o Povo, onde se incluem, entre outros: Parábola dos Sete Vimes, Rimas à Nossa Terra, Remédio contra a Usura, e Cartilha do Povo, A Minha candidatura por Mogadouro. Como obras literárias deixou: Os Meus Amores (1891) e já inúmeras reedições e In Illo Tempore (livro de memórias de Coimbra-1902). Em 1961 comemorou-se o primeiro centenário do seu nascimento. E nessa altura publicou-se um volume: O Senhor Sete, onde se reuniram os seus disperses.
Não é literária a simpatia com que o autor apresenta aquele mundo de costumes velhos (A Lareira), onde reina ainda uma cândida ingenuidade (Idílio Rústico), e é com a mesma ternura cheia de poesia que nos fala dos bichos (Sultão, Mãe!, A Choca) e das crianças (Abissus Abissum). Por vezes os temas tratados denotam certa influência de Fialho de Almeida. Mas a realização é puramente sua, sem nada de rebuscado ou torturado. Além de ter sobre ele um dom inato do diálogo, a sua maneira calma, natura, quase objectiva, de narrar em nada lembra o estilo impulsivo e alucinado do contista alentejano.
«Para os que sentem as suas raízes, pretendem preservá-las e sobre elas ajudar a construir um futuro mais justo, Trindade Coelho mogadourense autêntico, é modelo de exemplar cidadão.
Os seus livros são tão interessantes quanto a sua história pessoal. Aluno atento, mas rebelde e irreverente, conseguiu superar as vicissitudes da Escola Régia, do Colégio (interno) e da velha Universidade de Coimbra, superando a vida académica com simplicidade e bonomia. Soube distinguir o trigo do joio e conseguiu fazer-se reputado Homem público e literato ilustre, destacando-se entre os escritores da sua época.
Desde muito jovem manifestou dotes literários únicos, mas só tardiamente conheceu a fama. In illo tempore, vestiu o traje conimbricense e teve que fazer da escrita o seu ganha-pão, como sebenteiro e colaborador de jornais e revistas, redigindo artigos de circunstância, crónicas ou contos.
A sua escrita revela dotes de um espírito inovador, numa expressão pessoal que se liberta do ultra-romantismo e da fácil retórica. Em vez de puro lirismo campestre, Trindade Coelho oferece-nos uma literatura realista, com notas de doçura sentimental, revelando aspectos novos, emoções íntimas ou a crítica oportuna, alheia aos convencionalismos literários da época.
Em Os Meus Amores, autêntica jóia literária, o contista partilha connosco sentimentos puros quando recorda a sua terra natal e penetra na alma do seu povo, descrevendo com pormenor os mais belos recantos da paisagem, os costumes populares ou a simpatia para com os amigos e até para com os animais.
Mas a obra de Trindade Coelho, riquíssima de conteúdo, não se destaca apenas pela sua bucólica dimensão poética, distanciada da grande cidade, ou ainda pelos episódios ligados às praxes académicas coimbrãs. A instrução, a pedagogia, a educação cívica, a política, a jurisprudência e a epistolografia foram aspectos que interessaram a sua personalidade inquieta e plural e que vieram a reflectir-se na sua vasta obra de escritor.
Ler, hoje, Trindade Coelho, é viajar com alguém que tem o admirável condão de escrever como quem fala, numa linguagem aparentemente simples – nunca simplista –, mas sempre profundamente humana e sugestiva! Ele sabe amar e ser amado, como um desses raros artistas que vivem apaixonadamente cada instante da sua vida!»
Assim escreveu Tereza Sanches. In Fórum Terras de Mogadouro.
Em 1907 demitiu-se do seu cargo na magistratura e, sem que se soubessem os motivos, suicidou-se, no ano seguinte, dando um tiro no coração. Não seria fácil conciliar a sua morte violenta com a existência combativa e entusiasta deste homem “alegre como uma romaria”, no dizer de Eugénio de Castro, nem com a índole sadia e fresca – por vezes, mesmo, faceta – dos seus escritos, se o não soubessem sujeito a crises de esgotamento nervoso que o prostravam. Nada disto transparece, contudo, nas suas histórias simples e comoventes, que têm por cenário o torrão natal.
Na retina, guardou as paisagens e fainas daquele recanto sereno de Trás-os-Montes que tão novo teve de deixar; no ouvido, a língua vigorosa, de pitoresco e expressivo sabor que ali se fala; no coração, as saudades de uma vida idílica e patriarcal, onde os usos permanecem intactos, e os homens têm a dignidade da sua condição.
Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa, a 16 de Março de 1825, na Rua da Rosa, filho ilegítimo de Manuel Joaquim Botelho e de Jacinta Rosa do Espírito Santo, uma sua criada. Antes de Camilo, tinha já nascido uma outra filha do casal, Carolina. No ano seguinte, a família mudou-se para a Rua da Oliveira.
A sua vida foi atribulada: ficou órfão bastante cedo, tendo passado a viver, primeiro com uma tia, em Vila Real, depois com uma irmã, período de que data a sua aprendizagem literária.
A mãe morreu em 1827 e o pai perfilha Camilo e a irmã dois anos depois, em 1829. Camilo iniciou os estudos primários em Lisboa (1830), na escola de mestre Inácio Minas, situada na Rua dos Calafates, e depois na escola de Satírio Salazar, na Calçada do Duque.
Os parentes decidem confiar a educação dos dois órfãos a uma tia paterna, Rita Emília — uma das personagens de Amor de Perdição —, e os dois regressam, por isso, a Vila Real (1836). Quando a irmã se casa (1839), instala-se com o marido em casa de um cunhado, o P. António de Azevedo, em Vilarinho de Samardã, nas proximidades de Vila Real. Camilo acompanha-a e recebe do P. António uma educação literária e religiosa tendente ao estado clerical; terá então sido iniciado nos clássicos portugueses e adquiriu os conhecimentos básicos de latim e francês. Simultaneamente contactou de perto com a vida rural, que depois iria descrever em algumas das suas novelas.
Com apenas dezasseis anos (1841), Camilo casa com Joaquina Pereira de França e instala-se em Friúme (Ribeira de Pena). O casamento precoce parece ter sido resultado de uma mera paixão juvenil, não tendo resistido muito tempo. No ano seguinte prepara-se para ingressar na Universidade, indo estudar com o Padre Manuel da Lixa, em Granja Velha.
Em 1843 nasce a sua filha Rosa e decide inscrever-se na Escola Médica do Porto. Nos anos seguintes frequenta irregularmente as aulas e chega mesmo a perder o ano por faltas, em 1845. Pensou ainda em matricular-se no curso de Direito, em Coimbra, mas o projecto não teve continuidade. Nesse mesmo ano faz a sua estreia literária com o poema herói-cómico Pundonores Desagravados
Em 1846 encontra em Vila Real a jovem Patrícia Emília de Barros — sua prima — e foge com ela para o Porto, sendo perseguido pela justiça, em resultado da queixa dos parentes da moça. Passa a colaborar nos jornais O Nacional e o Periódico dos Pobres. Escreve a peça Agostinho de Ceuta, que é representada pela primeira vez num teatro de Vila Real. Depois da morte da esposa (1847), Joaquina Pereira, muda-se para o Porto e entrega-se a uma vida de boémia, entremeada com escândalos de carácter amoroso, ao mesmo tempo que se dedica mais profissionalmente à actividade jornalística, prestando colaboração ao Jornal do Povo. Rosa, a sua filha legítima, morre e nasce uma outra filha, Bernardina Amélia, fruto da relação com Patrícia Emília.
Em 1850 instala-se durante algum tempo em Lisboa e passa a viver exclusivamente da sua actividade literária. É por esta altura que conhece Ana Plácida, noiva de Manuel Pinheiro Alves, o que não o impede de se envolver amorosamente com uma freira do Porto, Isabel Cândida Vaz Mourão. Decide então inscrever-se no seminário do Porto, decisão a que não será estranho o casamento de Ana Plácido, mas rapidamente abandona o curso de Teologia. Nos anos seguintes funda dois jornais de carácter religioso, O Cristianismo (1852) e A Cruz (1853) e continua a colaborar com vários outros, em ocasiões distintas.
Em 1857, transfere-se para Viana do Castelo, como redactor do jornal A Aurora do Lima. Ana Plácido vai também para lá, a pretexto de apoiar uma irmã doente, e a ligação entre os dois torna-se pública. O escândalo cria-lhe dificuldades com vários jornais em que colaborava. Talvez por isso decide publicar o jornal O Mundo Elegante, em 1858. Ainda nesse ano, sob proposta de Alexandre Herculano, é eleito sócio da Academia Real das Ciências. Por essa altura, Camilo e Ana Plácido passam a viver juntos e deslocam-se de terra em terra para fugir à justiça. Em 1859 nasce o filho Manuel Plácido.
Após queixa de Manuel Pinheiro Alves contra a mulher e o amante, Ana Plácida é presa em Junho de 1860 e Camilo foge à justiça durante algum tempo, mas acaba por entregar-se em Outubro, ficando detido na cadeia da Relação do Porto, onde é visitado pelo próprio rei D. Pedro V. Finalmente, em Outubro de 1861 os dois são absolvidos pelo juiz, curiosamente, pai de outra grande figura das letras, Eça de Queirós.
Episódio não provado da sua vida é a participação na revolta da Maria da Fonte e da Patuleia. No Porto, inicia uma vida de boémia e escândalo, marcada por inúmeras aventuras amorosas e uma tentativa de suicídio. Em 1850, depois de uma breve atracção pela vida sacerdotal, inicia o seu período de maior produção literária, de que referiremos apenas as principais obras: logo em 1850, o panfleto O Senhor Alexandre Herculano e o Clero; em 1851, Anátema; em 1855, O Livro Negro do Padre Dinis e A Filha do Arcediago. Entre 1859 e 1862, desenrolam-se os lances principais da sua aventura com Ana Plácido: fuga para Lisboa, prisão por adultério, novamente na Cadeia da Relação, julgamento e absolvição dos dois amantes. Em 1863, nasce em Lisboa o segundo filho do casal, Jorge, que viria a criar-lhe sérios problemas, com o seu alcoolismo crónico. Com a morte de Manuel Pinheiro Alves, o marido de Ana Plácido, Manuel Plácido, legalmente seu filho, herda a casa de São Miguel de Ceide, em Famalicão. No ano seguinte, já instalados em São Miguel de Ceide, nasce o terceiro filho, Nuno, que viria, também ele, a manifestar comportamentos desregrados durante a juventude. Ao longo destes anos, Camilo desenvolve uma intensa actividade literária, ganhando notoriedade pública como escritor. Em 1868 volta ao Porto para dirigir a Gazeta Literária. No ano seguinte passa longas temporadas em Lisboa, embora o domicílio familiar permaneça em São Miguel de Ceide. Anos depois, em 1875, pensando na educação dos filhos, transfere a residência para Coimbra. Dois anos depois, o filho mais velho, Manuel Plácido, morre. Por esta altura Camilo tem já alguns problemas de visão, que se irão agravar com a idade.
Mais tarde, em 1881, participa activamente no rapto de uma jovem para a casar com o filho Nuno. As relações com o filho degradam-se e Camilo acaba por o expulsar de casa em 1882. Em 1883, atormentado por dificuldades financeiras, leiloa a sua biblioteca. Em 1885 é-lhe finalmente concedido o título que ele solicitara em vão, quinze anos antes — visconde. Em 1888 casa com Ana Plácido.
Definitivamente cego, em 1890, põe fim à vida e aos sofrimentos físicos e morais (a morte de um filho de Ana Plácido que se crê ser de Camilo, a loucura do filho Jorge, a irresponsabilidade do filho Nuno), suicidando-se com um tiro na cabeça.
Camilo foi seguramente o primeiro escritor profissional português. Durante quase toda a sua vida activa assegurou a sua subsistência e a da família, depois de assumida a relação com Ana Plácido, com os seus trabalhos jornalísticos e as novelas que publicava em ritmo frenético: a sua bibliografia ultrapassa muito a centena de títulos, descontada a profusa colaboração espalhada pelos jornais da época.
A sua actividade desdobrou-se pelos mais variados géneros: destacando-se como novelista, foi também poeta, contista, dramaturgo, polemista, jornalista, tradutor e editor, deixando uma obra vastíssima. Essa actividade literária tão intensa — "forçado das letras", chamou-lhe alguém — bem como a leitura frequente e atenta dos escritores portugueses, sobretudo os clássicos, são os principais responsáveis pelo domínio da língua, que revela em numerosas passagens das suas obras. É verdade que o ritmo vertiginoso com que escrevia (o Amor de Perdição, por exemplo, terá sido escrito em cerca de quinze dias) não lhe permitia trabalhar como gostaria a escrita. Essa urgência da escrita é certamente a grande responsável pela irregularidade qualitativa da sua obra, onde encontramos textos de inegável qualidade a par de outros que não conseguiram resistir ao tempo.
Embora seja um escritor da segunda metade do século XIX, a verdade é que muitas das suas novelas reflectem o clima social, político e mental da primeira metade — época extremamente conturbada, a nível político, e marcada por profundas transformações de natureza social.
As invasões francesas, iniciadas em 1807, obrigaram ao exílio da família real no Brasil. Esse facto mostrou a fragilidade do poder estabelecido (a monarquia absoluta) e terá certamente dado força aos grupos sociais mais favoráveis aos ideais proclamados pela Revolução Francesa — liberdade, igualdade, fraternidade — ou simplesmente interessados em substituir o poder das classes tradicionais (nobreza e clero) pelo seu próprio poder. Essas duas forças estavam muito equilibradas e o conflito entre absolutistas e liberais prolongou-se só vindo a resolver-se, a favor dos segundos, em meados da década de 30. O facto de as ideias liberais, de origem francesa, poderem ser associadas ao invasor do país (os sucessivos exércitos de Napoleão) terá fortalecido a adesão de muita gente ao grupo absolutista, adiando a implantação da monarquia constitucional. O anticlericalismo da facção liberal também não contribuía para a expansão das suas ideias, já que a população rural, religiosa, analfabeta e controlada pelo clero, rejeitava com vigor as ideias defendidas pelos "herejes".
Quando finalmente em 1834 os absolutistas são vencidos, o conflito transfere-se para o campo liberal, opondo conservadores e progressistas. A estabilidade só chegará em 1851, com a Regeneração.
Ora, Camilo formou-se, como homem e como escritor, nesta sociedade em efervescência. E é nesse clima de agitação, de instabilidade, que decorre a acção de muitas das suas novelas.
As suas novelas constituem um painel descritivo, em tom frequentemente sarcástico, da sociedade portuguesa do século dezanove. A sua atenção debruça-se sobretudo sobre uma aristocracia em clara decadência — material e moral — e uma burguesia em ascensão, que, aos seus olhos, se destaca pela boçalidade.
A obra de Camilo é, em grande parte, um reflexo do seu próprio percurso biográfico. A agitação, a instabilidade, os raptos, o conflito entre a paixão e a razão que encontramos nas novelas de Camilo, encontramo-los igualmente na vida de Camilo. Por outro lado, como profissional das letras que era, Camilo não pôde ignorar os apelos do seu público, que os editores traduziam sob a forma de pressões incontornáveis. Camilo vivia da escrita, e para isso precisava vender, o que implicava obedecer de alguma maneira às solicitações do público leitor. É essa sujeição aos gostos dominantes que explica também a "conversão" naturalista, detectável nas últimas obras de Camilo.
Independentemente dessas cedências, há na sua obra passagens antológicas, onde transparecem os costumes, os comportamentos, os jeitos de falar do norte de Portugal.
A exuberância, o imprevisto, o excesso passional das suas intrigas cativaram igualmente a geração literária dita ultra-romântica, que o homenageou quase no fim da vida.
A intriga é quase sempre de teor passional, como se esperaria de um escritor romântico. Os impulsos do coração determinam a acção das personagens principais, que, normalmente, se defrontam com outras, movidas por outros impulsos menos ideais: o estatuto social, as rivalidades familiares, os interesses económicos...
As suas intrigas são frequentemente demasiado lineares, mas não se pode negar a Camilo uma capacidade de efabulação notável.
As condicionantes estéticas da sua época, os circuitos editoriais, a sociologia e psicologia do seu público e a sua própria personalidade impuseram à sua obra novelística características fortemente românticas. No entanto, a sua longa permanência de quase meio século na vida literária, e a sua dependência financeira da escrita, levaram-no, talvez a contragosto, a tentar acompanhar a evolução ideológica do seu tempo. Daí que o mais romântico dos nossos escritores nos apareça, quase no fim da vida, a ensaiar uma escrita realista e até naturalista.
É autor de uma obra multifacetada. Nela se destaca, como sabemos, a componente novelística, mas estende-se também pelo teatro, jornalismo, ensaios biográficos e históricos, poesia, polémica, crítica literária, além de dezenas de traduções e uma extensa epistolografia.
Vida e obra, realidade e ficção interpenetram-se no percurso de Camilo Castelo Branco, o escritor mais abundante do Romantismo português.
A produção literária de Camilo sofreu grande influência das atribulações, nomeadamente amorosas, da sua vida. Tendo de se sujeitar frequentemente às exigências dos seus editores, fazendo cedências, apressando a escrita, recorrendo a estereótipos que satisfizessem o gosto da época, a sua produção é algo irregular e apresenta algumas falhas. No entanto, soube pintar de forma ímpar os costumes e gentes da sua região e os seus modos de falar; as suas personagens revelam ainda uma intensidade passional que o celebrizou.
A sua vida foi atribulada: ficou órfão bastante cedo, tendo passado a viver, primeiro com uma tia, em Vila Real, depois com uma irmã, período de que data a sua aprendizagem literária. Quando contava dezasseis anos, casou-se com uma aldeã, de quem cedo se separou. Estudou Medicina no Porto, de 1842 a 1844, e preparou-se para ingressar no curso de Direito em Coimbra, que não chegou a frequentar. A partir de 1848, dedicou-se à actividade jornalística, no Porto. Integrando-se no grupo dos «leões» do café Guichard, dedicou-se aos escritos polémicos e à novelística. Entre as várias aventuras amorosas que vinha tendo, salienta-se a sua paixão por Ana Plácido, cujo casamento o levou a matricular-se num seminário, em 1850. Dois anos mais tarde, regressou à actividade jornalística e literária, impondo-se nos círculos culturais de então. Em 1859, fugiu com Ana Plácido. Os dois foram presos, acusados de adultério, e absolvidos posteriormente, em 1861. Após a morte do marido de Ana Plácido, passaram a viver na casa deste, em São Miguel de Ceide. Dependente da sua escrita para sustento da família, Camilo viveu dificuldades económicas. Os seus problemas agravaram-se com o avanço progressivo da cegueira. Em 1888, casou-se com Ana Plácido e, dois anos mais tarde, suicidou-se com um tiro de pistola.
A maior glória da literatura portuguesa escreveu uma carta datada de 21 de Maio de 1890: «Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país, durante quarenta anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego». A 1 de Junho do mesmo ano, depois do dr. Edmundo de Magalhães Machado, oftalmologista de renome, o ter examinado cuidadosamente na sua casa de S. Miguel de Ceide. Camilo percebe que a cegueira era irreversível. Despediu-se do médico, saindo este acompanhado de Ana Plácido: «Calmo e decidido, Camilo sacou do revólver, em seu poder há vários anos, e disparou sobre o parietal direito».
O suicídio sempre lhe fora familiar, parece que «primeiro como uma especulação da inteligência», depois, à medida que a cegueira progredia como resolução final. O escritor recusava deixar-se ficar um morto vivo. Considerado um dos grandes prosadores românticos, ainda durante a sua vida foi muito admirado pela geração ultra-romântica, e homenageado oficialmente recebendo, em 1885, o título de visconde de Correia Botelho. É geralmente tido como um dos grandes escritores portugueses.
Obras: Da extensíssima bibliografia de Camilo salientam-se Pundonores Desagravados, 1845 (sátiras); Anátema, 1851 (novela); Inspirações, 1851 (poesias); Mistérios de Lisboa, 1854 (folhetim); O Livro Negro do Padre Dinis, 1855 (novela); A Filha do Arcediago, 1857 (novela); Amor de Perdição, 1862 (novela); Memórias do Cárcere, 1862 (memórias); Esboços de Apreciações Literárias, 1865 (crítica literária); Vaidades Irritadas e Irritantes, 1866 (opúsculo); A Queda de um Anjo, 1866 (novela); O Retrato de Ricardina, 1868 (novela); Curso de Literatura Portuguesa, 1876 (crítica literária); Eusébio Macário, 1879 (novela); A Corja, 1880 (novela); A Brasileira de Prazins, 1883 (novela).
O suicida não é um homem que odeia a vida, como à primeira vista pode parecer. Pelo contrário: é um homem que a quer prolongar de qualquer maneira, nem que seja no remorso dos outros. Miguel Torga
Introdução Se em todas as épocas existem suicidas, nem todas elas os produzem saídos da mesma massa. Os que vamos ver nestas páginas são pessoas que viviam intensamente os problemas, estavam no centro deles e foram mesmo origens de alguns. Não foi, pois, a incomunicabilidade que os empurrou para a morte, mas talvez o excesso de comunicação com o Portugal que viam e que desfilava por eles como um funeral.
Para eles, a morte estava presente no mais despreocupado despregar de mãos. Viver a vida e cortá-la ao primeiro transtorno, após uma série de outros que já não se suportaram mais, corroídos pelo banal dia-a-dia gastos pela «doença de pátria», não era estado de incomunicabilidade.
O período que medeia a passagem do século XIX para o XX, factualmente compreendido entre o Ultimatum Inglês, de 11 de Janeiro de 1890 e a implantação da República, de 5 de Outubro de 1910, retrata uma longa e múltipla carência da sociedade portuguesa quanto ao seu papel cultural para com os seus escritores e os seus escritos.
A inexistência de meios, a falta de estímulos, a incompreensão e o desapego a que foram sujeitos, os homens da “bela arte de escrever”, como um Antero de Quental, um Camilo Castelo-Branco, um Soares dos Reis, um Júlio César Machado ou um José Fontana, entre muitos outros, provoca-lhes um sentimento de decepção para com a comunidade em que vivem. A morte apossara-se-lhe das vidas. Ninguém sabe doutra coisa, ninguém tem outra maneira de se afirmar — de protestar, de procurar a resignação — senão através do suicídio.
Sãos os tempos das crises de consciência, em que o mundo e a sua moral subvertida nos transportam, tendo sempre como sombra o ruir dos velhos alicerces, a uma sociedade feita de angústia, opressão e instabilidade. São as ditaduras veladas do rotativismo político, ou declaradas como o franquismo. São as viciações e as desonestidades do aparelho governativo e dos seus resultados eleitorais, com o consequente descrédito total do parlamentarismo monárquico. São as desconfianças permanentes do sistema económico e financeiro, a par do desespero, da impotência e da derrota das questões internacionais. São os desânimos pelo crescimento do obscurantismo e da ignorância, acompanhados pelo desenraizamento de quem se identifica como responsável e portador de uma natureza defeituosa, da qual, apenas se conhece a doença, mas não a cura. Em suma, são os tempos em que apenas se vivia a renúncia, a indiferença, o cansaço e o pessimismo.
Miguel Unamuno, logo após o regicídio, em 1908, viaja até Portugal onde conta com a amizade de algumas das mais destacadas figuras da vida cultural e política. Das impressões dessa deslocação, o prestigiado escritor espanhol haveria de publicar um livro que só passados setenta e cinco anos seria traduzido e publicado em Portugal.
Por Terras De Portugal E Da Espanha, é dos mais interessantes documentos que alguma vez foi escrito sobre este pedaço de chão que tem Lisboa por capital. Ler este livro de um estrangeiro ajuda a conhecer melhor quem somos e o que somos. Unamuno fala deste País com palavras de uma verdade crua, sincera e ao mesmo tempo arrasadora. Diz este autor:
«Portugal representa-se-me como uma formosa e doce jovem camponesa que, de costas para a Europa, sentada à beira-mar, com os pés descalços na praia onde a espuma das gemebundas ondas os banha, os cotovelos fincados nos joelhos e o rosto entre as mãos, olha como o sol se põe nas águas infinitas. Porque para Portugal o sol não nasce nunca: morre sempre no mar que foi teatro das suas façanhas e berço e sepulcro das suas glórias. […]É o oceano um vasto cemitério, sobretudo para Portugal. O mar, essa é a «campa», esse é o cemitério desta desgraçada pátria de Vasco da Gama, de João de Castro, de Albuquerque, de Cabral, de Magalhães, de todos os maiores navegadores do mundo, desta pátria do infante D. Fernando, do rei D. Sebastião, que além do mar morreram. Nesse imenso cemitério vivo, que vem a murmurar fados beijar as praias deste «Jardim da Europa, à beira-mar plantado,»
Nesse imenso cemitério descansa a glória de Portugal, cuja história é um trágico naufrágio de séculos. E este murmúrio do oceano, estas queixas que vêm do seu seio quando o sol nele se deita, — não são acaso as vozes das pobres almas portuguesas que vagueiam errantes nas suas ondas? Não pedem sufrágios aos vivos? Não é aqui o mar do Purgatório?»
E, naquela que é seguramente a parte mais eloquente do seu testemunho sobre Portugal e sobre o povo que nele vive, ficaria o registo de um capítulo a que o autor quis dar o título de UM POVO SUICIDA:
«Portugal é um povo triste, e é-o até quando sorri. A sua literatura, inclusive, a sua literatura cómica e jocosa, é triste. Portugal é um povo de suicidas, talvez um povo suicida. A vida não tem para ele sentido transcendente. Querem viver talvez, sim; mas para quê? Vale mais não viver.»
Neste mesmo capítulo, e com a data de Novembro de 1908, Miguel de Unamuno dá a conhecer uma carta de Manuel Laranjeira, seu amigo de grande afecto:
«Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção da moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa.
Chegámos a isto, amigo. Eis a nossa desgraça. Desgraça de todos nós, porque todos a sentimos pesar sobre nós, sobre o nosso espírito, sobre a nossa alma desolada e triste, como uma atmosfera de pesadelo, depressiva e má. O nosso mal é uma espécie de cansaço moral, de tédio moral, o cansaço e o tédio de todos os que se fartaram — de crer. Crer...! Em Portugal, a única crença ainda digna de respeito é a crença na morte libertadora. É horrível, mas é assim. […] Eu, por mim, não sei, não sei: em boa verdade, amigo, não sei para onde vamos. Sei que vamos mal. Para onde? Para onde nos levarem os maus ventos do destino. Para onde? Vamos... […] Não falta mesmo quem diga que isto não é já um povo, mas sim — o cadáver de um povo.»
Manuel Laranjeira haveria de se suicidar passados menos de quatro anos sobre esta carta a Unamuno. Seria o último de uma lista aterradora de suicidas que começa em 1876 com José Fontana e que continua com o médico Francisco da Cruz Sobral, em 1888, com o escultor Soares dos Reis, em 1889, Camilo Castelo Branco, Júlio César Machado e o sertanejo Silva Porto em 1890, Antero de Quental, em 1891, o militante operário Luís de Carvalho, em 1893, o escritor operário Henrique Verdial, em 1900, Mouzinho de Albuquerque, em 1902, o escritor e jurista Trindade Coelho e o jornalista Alberto Costa, o «PadZé», em 1908, o almirante Cândido dos Reis, membro da Carbonária Portuguesa, em 1910, Guedes Quinhones, velho militante socialista e jornalista operário, em 1911. E, depois de Manuel Laranjeira, em 1912, suicida-se o poeta Mário de Sá-Carneiro, em 1916, e Florbela Espanca, em 1930.
Portugal é um desespero trágico que aflige os melhores filhos do seu possível orgulho nacional. Alexandre Herculano exclamara: «isto dá vontade da gente morrer!». Rodrigo da Fonseca murmurara: «nascer entre brutos, viver entre brutos e morrer entre brutos é triste»? E no final de um soneto António Nobre apregoa: «Amigos, que desgraça nascer em Portugal! [...] Todos nós falhamos… Nada nos resta. Somos uns perdidos. Choremos, abracemo-nos, unidos! Que fazer? Porque não nos suicidamos?»
As dez histórias de suicídios aqui apresentadas são apenas uma parte de tantos outros que ocorreram durante esse mesmo período. São famosos e são do melhor que Portugal tem na sua História. Ao suicidarem-se é um pouco de Portugal que se suicida.