Domingo, 19 de Dezembro de 2010

...




A homenagem ao velho poeta




Carlos Loures



No princípio daqueles anos 60 do século XX, apesar da boa e mítica reputação que a década viria depois a adquirir, as coisas eram muito diferentes do que hoje são e nem sempre a diferença era para melhor. As minorias étnicas ou religiosas, as mulheres, as crianças, os homossexuais, eram segregados de uma forma impiedosa e os seus direitos, mesmo aqueles que estavam consagrados na letra das leis, espezinhados com a cumplicidade de muitos progressistas e até, por vezes, de alguns dos lesados. Também se deve dizer, para sermos justos, que talvez nenhuma outra geração tenha feito tanto para derrubar tabus e preconceitos, barreiras e estúpidas ideias estratificadas ao longo de séculos e que tinham rastejado e sobrevivido a quase dois mil anos de cristianismo, às revoluções francesa e soviética, a um século de socialismo, a duas guerras mundiais, à proclamação de múltiplas independências em África e na Ásia, chegando quase intactos àquela época, aos famosos e progressistas anos 60.






Por isso, numa noite de Verão em que saí do Gelo e me preparava para dar por terminado o dia e ir até à Almirante Reis, onde, como já disse, morava num quarto alugado, quando o senhor Marinho fez menção de me acompanhar na travessia do Rossio, não fiquei muito satisfeito, pois ele, homem dos seus quarenta e tal anos, embora não parecesse, era um pederasta assumido e não faltaram, por isso, quando nos viram atravessar juntos para a placa central, as subtis e menos subtis graçolas de alguns dos amigos, como o Nunes, o Ernesto ou o Cortês, que tomaram o caminho da Avenida da Liberdade, rumo ao Café Lisboa que fechava mais tarde. O homem era uma pessoa respeitável e que respeitava a heterossexualidade de quase todos nós; nunca se ouvira dizer que tivesse feito abordagens, propostas ou sugestões a qualquer elemento do grupo supostamente intelectual que se sentava na chamada «mesa do Buíça» diversas noites por semana. Fora boxeur profissional e agora era treinador de boxe num clube conhecido, trabalhando com os seus discípulos no pavilhão amovível do Parque Mayer. Das suas mãos saíram alguns campeões nacionais da modalidade. O Ernesto, estudante de Belas Artes, que trabalhava também no Parque em biscates cenográficos para os teatros de revista, afirmava que nem entre os artistas e operários de cena, nem entre os praticantes de boxe, constava que o senhor Marinho incomodasse fosse quem fosse com as suas tendências sexuais. Caminhámos alguns minutos em silêncio e estávamos já a chegar à Rua da Betesga, onde ele morava junto do Café Bom, quando me disse:

- Você ficou chateado com as chalaças daqueles cretinos.

Neguei sem muita convicção, mas ele riu-se:

- Não, não diga que não, eu compreendo muito bem. - Fez uma pausa e acendeu um cigarro – Sabe, há na cabeça das pessoas em geral, não só na dos jovens como você, uma grande confusão entre homossexuais e maricas. Eu sou homossexual, mas não sou maricas. Detesto, aliás, os maricas ainda mais do que vocês, os heterossexuais. Eles prejudicam é a minha reputação, não a vossa. - Riu-se e eu ri-me também, pois, de facto, nunca estabelecera diferença entre maricas e pederastas. Para mim era tudo a mesma coisa. O senhor Marinho acrescentou:

- Já tenho mandado para o hospital, com pequenas fracturas, diga-se de passagem, tipos que se atrevem a chamar-me aquilo que eu não suporto que me chamem. Eu não me sinto frustrado por não ter nascido mulher, gosto muito de ser homem e acho de um ridículo mórbido os pederastas efeminados, cheios de ademanes, boquinhas e requebros. Repugnam-me profundamente. Quando me aparecem pela frente, também já lhes tenho distribuído umas boas lambadas. Considero-me um homem como os outros, salvo no que se refere aos meus hábitos e orientações sexuais. E isso é uma coisa que só a mim diz respeito.

Hoje, quatro décadas depois com lóbis de homossexuais e lésbicas a dominarem sectores importantes da vida social, esta ideia abriu caminho nas consciências e é corriqueira e talvez aceite até com demasiado liberalismo (pelo menos nas cidades grandes), pois muitas vezes, a haver discriminação, ela faz-se no sentido inverso ao que se fazia. O que também está errado, claro. Porém, naquela altura aquelas palavras produziram-me alguma impressão. Nunca vira o problema por aquela óptica, que, no entanto, me pareceu correcta. Disse-lhe isso mesmo, que sim, que achava que ele tinha muita razão e pedi-lhe desculpa se alguma vez os meus preconceitos tinham transparecido em alguma atitude por mim assumida. Ele disse que não, que eu era «um tipo porreiro» e simulou dar-me um murro no ombro. Rimo-nos. Despedi-me do senhor Marinho e fui até ao meu quarto, subindo a Rua da Palma e depois a Almirante Reis, pois a noite estava muito agradável e propícia a uma boa caminhada a pé. Além de fazer exercício, poupava também o dinheiro do eléctrico ou do metro.

O senhor Marinho não era um frequentador habitual do grupo, não era sequer membro daquela atrabiliária tertúlia. Aparecia ocasionalmente. Mas também não é do senhor Marinho que quero falar, mas sim de um seu protegido, um velho poeta de setenta e tal anos que com ele vivia e que, generosamente, sustentava com o seu magro vencimento de treinador. O poeta era um homem proveniente de uma abastada e aristocrática família de Lisboa, formado em Direito, que dissipara a grande fortuna que lhe coubera em herança numa vida de estúrdia e escândalo social. Defendia abertamente a homossexualidade em panfletos, em conferências e em artigos de revistas. Fora companheiro de Fernando Pessoa, colaborara na Orpheu, e publicara alguns livros, um ou dois deles em francês, nos quais defendia uma nova filosofia, o «vertiginismo transcendente», que abrangia, entre outras coisas, a criação de uma nova religião e de uma nova ordem mundial – um «plano de salvação para o mundo», no seu dizer.

Era também um homem de grande educação e respeito pelas opções alheias e era figura habitual da «mesa do Buíça», no meio daquele grupo heteróclito, onde havia gente com muito talento, poetas e pintores, sobretudo, à mistura com cretinos praticantes, comunistas, marxistas da treta, gente de direita, anti-salazaristas quase todos ou mesmo todos. Muito antes do Maio parisiense já ali era «proibido proibir fosse o que fosse». E com estas palavras está feito o elogio do grupo enquanto tal.

O velho poeta e auto proclamado profeta mantinha-se muitas vezes silencioso e com uma expressão ausente, escutando atónito as barbaridades que, não raro, por ali se ouvia aos cretinos ou aos outros, quando bêbedos. Por vezes esboçava um tímido sorriso sem saber o que fazer ou dizer. Porém, se alguém tinha a nefanda ideia de lhe pedir que descrevesse a sua filosofia e religião, ele encetava um discurso longo, sempre igual, como se gravado. Era calvo e, um dos membros do grupo, por acaso um artista plástico, dos mais talentosos dos que dele faziam parte, e que se viria a suicidar, dizia que podíamos ver as veias do crânio a ser percorridas pelo violento fluxo daquelas ideias aparentemente, pelo menos, loucas, extravagantes, embora sustentadas por um forte aluvião de argumentos teológicos e filosóficos. Era uma figura carismática da tertúlia, sempre impecavelmente vestido e muito limpo, apesar da sua pobreza e total dependência económica da bondade do senhor Marinho que, em todo o caso, não deixava que nada de essencial lhe faltasse.

Entretanto a guerra começara, primeiro em Angola, estendendo-se depois à Guiné e a Moçambique e eu, tal como alguns outros membros do grupo e como acontecia à maioria dos jovens em idade militar, percorremos a via sacra que terminava quase inevitavelmente nas matas africanas – recruta, escola, formação de batalhão e expedição de barco ou avião para um dos três destinos mais comuns. Portanto, não assisti à história, ao modesto acontecimento, que serve de motivo a este texto. Ela foi-me contada após o meu regresso pelo Cortês, quando o velho poeta morrera mais de um ano antes.

Desde 1958, com o furacão Delgado, e depois com a perda do chamado Estado Português da Índia, com o assalto ao Santa Maria e com o deflagrar dos conflitos coloniais, o regime atravessava um período negro. As polícia política estava mais activa do que nunca, as prisões estavam cheias numa vã tentativa de deter aquilo a que, com ironia e adoptando com sentido inverso a expressão em voga internacionalmente, os intelectuais do regime chamavam «os ventos da História», ventos que, afirmavam, o salazarismo iria impedir de soprar neste país. Os boatos sucediam-se. Alguns rumores confirmavam-se, outros provinham da habitual confusão entre o que se deseja que aconteça e o que acontece realmente.

Assim, uma noite, o Cortês chegou ao café com uma notícia sensacional. Gago como era e nervoso como estava, demorou a conseguir que os outros percebessem – o velho poeta fora preso pela PIDE! Revolta, indignação, incompreensão: pois se o homem até nem era de esquerda e, em muitos aspectos, ultrapassava o salazarismo pela direita, se odiava a Rússia soviética e idolatrava os Estados Unidos, que motivos podiam eles ter para o prender? Até os mais medrosos protestavam. De facto, prender o velhote ultrapassava tudo o que era admissível.

Passado pouco tempo, um dia ou dois, chegou outra notícia: o poeta fora libertado! Suspiro colectivo de alívio. Um dos membros do grupo, não sei qual, teve a ideia de organizar um jantar de homenagem ao velho amigo e agora também mártir da polícia política. Marcou-se uma data, falou-se com o dono do café e combinou-se que o jantar teria lugar no primeiro andar, numa sala ampla que o proprietário disponibilizou. Na noite aprazada, apareceram, além do homenageado, bem vestido, sorridente e amparado pelo senhor Marinho, todos os elementos do grupo, mesmo aqueles menos habituais. Como era de esperar, vieram também uns senhores desconhecidos, de fato, gravata e óculos escuros. Houvera tal burburinho em torno do evento, falara-se dele em tantos locais e em voz tão alta, que a polícia política, com os seus ouvidos espalhados pelos locais públicos, fora informada e estava curiosa sobre o que ali se iria passar.

O Nunes, sempre exaltado e ainda por cima acicatado por repetidas incursões aos tasquinhos e bares das redondezas (que eram numerosos e de oferta diversificada - anis, ginjinha, piratas, eduardino, absinto, amêndoa amarga, aguardente de medronho...), preparara um discurso de arromba, um «improviso» apoiado por uma cábula que foi acrescentando nos intervalos das suas saídas libatórias. Os acrescentos iam sempre agravando o registo subversivo. Segundo o Cortês, que ia acompanhando as surtidas e a consequente evolução do texto, o discurso iria levar o Nunes directamente para a choça e (quem sabe?) talvez mesmo acompanhado por várias «ramonas» com todos os convivas. Mas o Cortês era um profissional do pessimismo e um timorato militante. E, finalmente, chegou a hora do grande acontecimento.

Sentados os amigos, com o poeta à cabeceira ostentando um ar confuso, mas satisfeito, com os polícias «discretamente» no cimo da escada que vinha do café, quando se fez silêncio, o Nunes iniciou o seu discurso. Invectivou os poderes constituídos que, não satisfeitos em impedir os povos irmãos de África de aceder à liberdade e os cidadãos Portugueses de viver em democracia, como todas as nações civilizadas, pareciam ter enlouquecido, pois prendiam e torturavam anciãos, intelectuais, escritores... por aí fora.

Nesta altura, vendo o perigoso rumo que o discurso tomava, discretamente, o senhor Marinho saiu do seu lugar e veio por detrás das cadeiras até junto do Nunes e segredou-lhe ao ouvido:

- Ó amigo Nunes, olhe que ele não foi preso por política... – o Nunes deixou a frase em suspenso, hesitando no modo de dar a explicação – ele foi preso... – prosseguiu o Marinho sussurrando – foi preso por estar a fazer um... por praticar... fellatio.

Na realidade, segundo se veio depois a esclarecer, o poeta fora apanhado em flagrante delito por uma brigada da polícia de costumes, à noite, na escada do prédio onde vivia com o Marinho, envolvido «em práticas sexuais ilícitas», salvo erro, com um jovem marinheiro e fora detido por esse motivo ou por «atentado ao pudor». O Marinho, mal soubera, acorrera ao Governo Civil e pagara a fiança, pelo que a prisão fora curta, embora humilhante, pois os guardas tinham-se divertido a chamar ao poeta tudo aquilo que facilmente se pode imaginar. Ele, porém, como um caranguejo-eremitão, refugiara-se na sua concha, invocara o Espírito Santo e conseguira esconjurar o Anticristo que ali lhe surgira sob a aparência de uma torpe manada de guardas boçais, supostamente cívicos.

Recebida a informação, o Nunes ficou sem pinga de sangue, tentando encontrar uma saída airosa para a situação. O silêncio foi prolongado. Mas lá se decidiu a terminar o discurso para uma assistência que, entretanto, durante a longa pausa feita pelo orador, cochichando, fora transmitindo de boca a orelha o relato verídico feito pelo Marinho ao Nunes e que vinha desfazer o equívoco:

- Acabo de saber que afinal foi fellatio, não foi política. Está bem. Mesmo assim. Não se prende um ancião, um poeta, um filósofo, um eminente homem de cultura, mesmo que ele esteja a fazer um... isso, fellatio a um elemento das nossas forças armadas. Meus amigos e queridos companheiros, vou terminar: Viva a Liberdade! Abaixo a ditadura!

Houve um enorme e entusiástico aplauso (os senhores dos óculos escuros também aplaudiram, embora sem grande vontade). Quando todos iam começar a comer, o poeta, que atribuíra a homenagem ao valor da sua obra e do seu verbo divino, ergueu-se tremulamente com a evidente intenção de discursar. As colheres da sopa voltaram a ser pousadas. A voz do profeta tremia, arquejava rouquejante, mas era forte, potente e, diz-se, ouvia-se no Rossio, onde alguns transeuntes mais curiosos paravam para escutar o estranho discurso. Começava mais ou menos assim:

-Na minha obra, virtualmente pronta e escrita em francês, La création de l’avenir – fusion absolue de toutes les idéologies, fusão de ideologias que se dá no campo religioso, filosófico, científico, artístico ou estético, político, jurídico, social, ético ou moral, oculto ou mágico, cuja revisão geral eu suspendi há anos por motivo da guerra e visto a primeira parte, l’Empire du néant, ser uma crítica vigorosa aos acontecimentos então correntes, que, modificando-se em poucos anos com uma rapidez fantástica qualquer crítica feita em livros, não podia acompanhar, tendo que ser constantemente actualizada, modificando-se igualmente, nessa obra, ia eu dizendo, do mesmo modo surge em todo o seu esplendor astral a civilização do futuro, a civilização paracletiana!...

E prosseguiu durante mais de uma hora, com um vigor insuspeitado, expondo a sua teoria estranhamente sincrética, como se propunha fundir o comunismo, o anarquismo, o capitalismo, o Espírito Santo, o Divino Paracleto, num projecto salvador do mundo onde os Estados Unidos teriam um papel preponderante, com uma missão de grande protagonismo e relevância, nomeadamente na Europa. Quando se sentou, ajudado pelo senhor Marinho, os aplausos foram vibrantes de entusiasmo admirativo e também de alívio. Os senhores de óculos escuros foram-se embora, mais baralhados do que nunca nas suas vidas de agentes, pois se houvera elogios ao comunismo, houvera também anátemas contra o bolchevismo ateu e o anticristo e amplos louvores ao divino Espírito Santo, aos Estados Unidos, salvadores da humanidade. Foram até à António Maria Cardoso sem saber bem como se haviam de arranjar para fazer aquele relatório.

O jantar teve então início. A sopa estava fria, mas marchou mesmo assim, pois a fome era muita. A festa foi animada, sucedendo-se os discursos à medida que as garrafas de vinho iam sendo levadas vazias e devidamente renovadas, e prosseguiu até altas horas com grande elevação cultural, ardor ideológico e, sobretudo, com muita alegria.

Foi um sucesso.



(Excerto de A Vida é um Desporto Violento)
publicado por Carlos Loures às 16:00
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Quinta-feira, 9 de Setembro de 2010

Manuel de Castro

Carlos Loures

Como sendo um eco da “Maratona Poética” que às 24 horas de ontem terminou e que tanto interesse suscitou, provocando um acentuado acréscimo no número de visitas e no de leituras, balanço de que daremos conta proximamente, vou continuar por estes dias a falar de poetas que conheci e que já não estão entre nós. Hoje será a vez do Manuel de Castro.

Conheci o Manuel de Castro no café Gelo, em 1958. Tinha um feitio difícil, passando facilmente de uma extrema afabilidade para uma agressividade também excessiva (ou vice-versa). Se fosse hoje, dir-se-ia que sofria de bipolaridade. Na época atribuíam-se estas coisas a razões mais prosaicas – ao excesso de álcool, por exemplo. Porque Manuel de Castro foi um grande poeta, era uma excelente pessoa, mas abstémio não era. À medida que o íamos conhecendo, ia dissolvendo-se a sua carapaça de formalismo ou de grande animosidade, e aparecia o verdadeiro Manuel – cordial, bem humorado, irónico, com grande capacidade de encaixe para aceitar críticas. Ria-se em prolongadas casquinadas que lhe faziam estremecer os ombros.

Eu não valorizaria nem a eventual bipolaridade, nem o real alcoolismo – diria que Manuel de Castro era uma pessoa tímida e sem jeito para o convívio. Não fazia concessões nem fretes – se lhe liam um poema e se ele não gostava, dizia-o logo de forma brutal e demolidora ou de maneira delicada, mas consistente, consoante estava em dia sim ou em dia não. Tinha uma personalidade vincada e, sobretudo, era um grande poeta a quem nunca foi dado o merecido valor.

Éramos muito amigos. Uma vez até andámos à porrada (e há lá melhor maneira de selar uma amizade!). Uma piada envenenada que ele disse sobre a «Pirâmide» e que eu levei a mal. Felizmente que estávamos ambos com os copos e, diz quem assistiu à cena, que a maioria dos murros acertou no vácuo. Ele tinha uma direita potente e aleijou os dedos nos azulejos da parede. Talvez mais sóbrio, esquivei-me a tempo e o Manuel andou com a mão ligada nos dias seguintes. Se me tem acertado, partia-me ao meio. Foi na festa de despedida do Café Royal, salvo erro, no fim de 1960 ou no princípio de 1961. Passou a ser um banco.

Com um outro amigo que apenas me lembro chamar-se Toninho, fomos uma vez acampar para o Zambujal, perto de Bucelas. Foi uma épica semana de copos e aventuras várias. Houve também, no Verão de 61, um agradável almoço em minha casa, perto de Carcavelos, com o Renato Ribeiro e a Fernanda, o Benjamim Marques e a companheira, de cujo nome não me lembro, do Manuel e a Natália, sua mulher, eu e a Helena, que tínhamos acabado de casar.

Depois saí de Lisboa. Poucas cartas escrevemos, pois não éramos de grandes epistolografias. Quando vinha a Lisboa, víamo-nos e pude ir apercebendo-me de que a doença iria levar a melhor (o Luiz Pacheco afirmava que foi uma espécie de suicídio, continuando a beber depois de saber que isso lhe seria fatal). Com 37 anos, morreu. Um amigo e um grande poeta que desapareceu.

Mas não da minha memória.

Manuel de Castro, nasceu em 17 de Novembro de 1934 em Lisboa e faleceu, também em Lisboa em 12 de Setembro de 1971. Viveu os primeiros anos em Goa, onde o seu pai era encarregado do Governo e depois na antiga Lourenço Marques. Regressado a Lisboa e tendo perdido a mãe aos 6 anos, o pai enviou-o aos 8 anos para o Seminário dos Padres da Consolata. Sem vocação sacerdotal, fugiu do seminário. Autodidacta, interessou-se por diversos ramos do conhecimento – a literatura, a poesia, a filosofia, as línguas. Sabia sete idiomas para além do português., incluindo o alemão e o dialecto de Heidenheim, cidade em que viveu cerca de 4 anos e em que foi interprete da polícia e dos tribunais, face a quantidade de emigrantes ali existentes das mais diversas nacionalidades.

Em 1958 saiu o seu primeiro livro de poesia – «A Zona». Mais tarde publicou «Paralelo W» com capa de João Vieira, e «Estrela Rutilante». Colaborou na revista Pirâmide, com Alfredo Margarido, Ángel Crespo, Edmundo Bettencourt e outros grandes nomes da cultura portuguesa e internacional, nos Cadernos do Meio Dia, na Poesia 71, na Colóquio, na Árvore, na & ETC, na Contraponto…Foi incluído na Antologia do Surrealismo e o Abjeccionismo. Foi também integrado nas duas antologias da Novíssima Poesia Portuguesa da responsabilidade dos escritores Mello e Castro e Maria Alberta Menéres e ainda na do Humor Português que abrange escritores dos séculos XVIII a fins do século XX. Numa bienal de Paris entre 1963-66 foi considerado, com Carlos Drummond de Andrade, um dos melhores poetas da língua portuguesa. Do número 2 da Pirâmide, seleccionei um poema. Ei-lo:

Poema

A noite está líquida oclusa vegetal
é um corpo longilíneo e desmembrado
flui como um rio de si mesmo alheio
flui e envolve pressagiando cárceres
a noite tem hoje uma altitude especial
com aves negrejando lentamente
neste desintegrar-se de memória
e eu sou uma alucinação rítmica
com um tempo corpóreo a devorar
um mar excessivamente quieto na cabeça
excessivamente muscular e lúcido
a noite distribui pedaços de lua
aos farrapos na inconsciência dos prédios
sobre a cidade a cidade a cidade louca
que desvairou nas minhas mãos nos dedos
possuída de um candelabro antigo a partir-se
um lampadário cristalino e rutilante
a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora
viajo nitidamente pelo passado
na organização de um jogo de perigo:
o meu amor é a aquisição de uma técnica
um processo de transformação dos corpos
a prospecção dramática dos ritos
uma queda livre e vertical
um olhar imóvel sobre o mar
a oferta do tempo sem comércio nem ódio
fibra a fibra
do tempo crivado de buracos baleado
assassinado corrupto perdido
o meu amor é correcta magia dos sons
a ultrapassagem da noite
fulminante e arrebatada num círculo de fogo
coberta de engenhos de destruição
correndo extensamente sem peso
o meu amor é uma trovoada nas margens da noite
uma proposta veiculada a sangue
patrocinada pelos mortos deambulantes
e é ainda a carcaça húmida dos barcos
destroçados n’areia
a noite é um coral magnífico na noite
publicado por Carlos Loures às 12:00
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