Assistimos cada vez mais a situações em que as pessoas parecem agir como se fossem apenas uma parte daquilo que são e o resto ficou noutro lado. Diz-se uma coisa e faz-se outra. Tudo é verdade como o seu oposto. Terá a palavra o valor de uma insignificante casca de ovo? Acabaram-se os cavalheiros?
Ainda não há muito tempo, o que tinha palavra era considerado um cavalheiro. Isso era mais importante do que ter muito dinheiro ou uma conta elevada no Banco. Fazia os negócios que queria. Palavra era palavra. Era uma espécie de pedra tocada, pedra jogada no xadrez.
Não era preciso ter carisma, poder de convicção, ou pôr entusiasmo no discurso. O que era preciso era cumprir o combinado.
Como as coisas mudaram. Os meios de comunicação puseram a nu a charlatanice, as tramas, as intrigas, dos que têm responsabilidades de dirigir. Dá-se o dito pelo não dito, sem qualquer receio do ridículo. Uns fazem-no com todos os pormenores, outro com vastas generalizações, o curioso de tudo isto é que há responsáveis que afirmam que quem é fiel à palavra, não vai longe. É impressionante esta constatação de que quem se quiser assumir por inteiro terá grandes dificuldades.
Esta situação reflecte-se no trabalho e no dia a dia e reclama normas, autoridade. No tempo dos cavalheiros as normas e a autoridade eram dispensadas, porque quando os costumes fazem quase tudo, aquelas só atrapalham.
A situação actual conduz à irracionalidade, ao erro, ao esquecimento de quem se é, de onde se vem. Quando se passará a apreciar os que se dão ao trabalho de ser decentes?
As notícias que se publicam sobre processos em segredo de Justiça, não são mais que o desejo de alguem dentro do MP de não deixar que o assunto morra. Nunca se encontra a fonte e, no entanto, todos sabemos que muito poucos têm acesso ao processo.
O recente relatório sobre o caso Freeport, não é mais que o grito de alguem que, obrigado a proceder de determinada maneira, contorna a hierarquia publicando as perguntas que não foram feitas ao Primeiro Ministro. No caso das escutas ao Primeiro Ministro, o que se passou no triângulo, magistrados de Aveiro, PGR e Presidente do Supremo,vindo a público as diversas perpectivas, não é mais que mostrar que a tese que prevaleceu deixa dúvidas a muita gente.
Há muito que há uma guerra latente e que se trava nos "intestinos" do Ministério Público, entre poderes e pseudo poderes e que vêm a público por quem perde no terreno ou por quem quer fragilizar os adversários cuja opinião prevalece. Desengane-se quem julga que é inoperância!
O Estado de Direito é todos os dias ameaçado por quem devia ser o seu guardião, pois não há maior ameaça que a perda de credibilidade junto da opinião pública. Já aparecem os barões da advocacia a tomarem partido estando eles tão interessados no resultado da contenda.Feridas de multiplas guerras nos tribunais e fora deles sangram novamente.Cheira a golpe de Estado, assim o país não estivesse integrado na UE!
O Presidente da República não diz nada, tem como horizonte as eleições, não quer desagradar a ninguem, ou então sabe que em guerras intestinas, o que sobra é merda, e guarda a prudente distância.
Entretanto, jornalistas e cidadãos assistentes nos processos, todos os dias, enchem a opinião pública de mais dúvidas e de revelações usando um direito que lhes assiste.
Perante este cenário, há o perigo de quem se queira fechar numa concha, de cortar direitos, mas o caminho é exactamente o contrário. Fortalece-se o Estado de Direito com mais Democracia!
Terminei a crónica anterior deixando em suspenso a questão das manipulações (políticas, económicas, culturais…) que a televisão veicula. Foi tema muito falado há pouco mais de um ano, em Maio de 2009, quando Manuela Moura Guedes entrevistou no “Jornal Nacional” da TVI o bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto, No seu habitual estilo truculento, o bastonário disse à pivô verdades duras como punhos, daquelas que muito raramente se escutam em televisão. Vamos recordar esse momento.
De facto, a «informação» que naquela estação (e não só) se praticava, e pratica, deixa muito a desejar, misturando-se de maneira avulsa, opiniões com factos e não se fazendo a destrinça do que é uma e outra coisa. Isto, como muito bem disse Marinho Pinto não é jornalismo; são sim «julgamentos sumários disfarçados de jornalismo».
A televisão tem este poder de eliminar factos e de criar factos, de manipular a realidade e de a apresentar conforme melhor for servida a necrofagia e o sensacionalismo que parecem ter tomado conta do jornalismo em geral e os interesses, políticos, económicos, dos grupos a que o canal seja afecto.
Sobre o poder da televisão, dizia Karl Popper na sua obra já citada, que, nos nossos dias a, a televisão assumiu um poder colossal, potencialmente o maior de todos, «como se tivesse substituído a voz de Deus». Afirma ainda que em democracia não pode haver poderes incontrolados, pois a essência da democracia consiste precisamente em submeter o poder político a um controlo.
O poder da televisão constitui, pois, um grave perigo para a democracia e esse perigo agudizar-se-á se não conseguirmos pôr cobro aos abusos dos canais televisivos - «Nenhuma democracia pode sobreviver se não controlarmos esta omnipotência», dizendo ainda: «A democracia, como expliquei algures, não é mais do que um sistema de protecção contra a ditadura, e nada no seio da democracia proíbe as pessoas mais instruídas de comunicarem o seu saber às que o são menos. Pelo contrário, a democracia sempre procurou elevar o nível de educação; é essa a sua autêntica aspiração. As ideias deste director de uma cadeia televisiva não correspondem em nada ao espírito democrático, que sempre foi o de oferecer a todos as melhores oportunidades. Inversamente, os seus princípios conduzem a propor aos telespectadores emissões cada vez piores, que o público aceita desde que se lhes acrescente violência, sexo e sensacionalismo"."(Popper refere-se ao director de um canal de televisão que conheceu na Alemanha no decurso de uma conferência, que afirmava axiomaticamente que “Devemos oferecer às pessoas o que elas esperam”).
Não sei se Popper tem razão quando diz que a democracia «não é mais do que um sistema de protecção contra a ditadura». Esta definição parece-me redutora. Mas isso seria entrar numa outra discussão. Todavia, quanto a mim, Popper tem toda a razão quando nos alerta para os perigos de um meio que, tendo o poder de substituir a informação pela manipulação, pode destruir a democracia, instaurando em seu nome a ditadura dos media, por sua vez ao serviço de interesses políticos e económicos que nada têm de democrático.
Os governantes, os actuais e os anteriores, só se preocupam com as manipulações quando elas os atingem, como fez Sócrates na entrevista de 21 de Abril de 2009, na RTP, concedida a José Alberto Carvalho e Judite de Sousa, em que denunciou o mesmo Jornal Nacional da TVI e aquilo que naquele canal passa por ser um serviço informativo, dizendo que o que ali se faz não é jornalismo, mas sim «caça ao homem» e que se trata de um «telejornal travestido». Isto, porque foi atacado a propósito do caso Freeport. E quando, ali e noutros espaços «informativos», outras pessoas, a verdade e a Democracia são atacados? Acrescente-se que Moura Guedes contra-ataca e pôs agora uma acção ao primeiro-ministro devido aquelas declarações. Todos sabemos que nenhum governo da «democracia» que temos, exercerá uma acção pedagógica, profilática e terapêutica sobre os órgãos de informação. Não estou a falar de censura política, de repressão ou de limitações impostas à liberdade de imprensa (como em resposta a Sócrates o então director da TVI, vitimizando-se, se apressou a vir denunciar o que lhe parecia subjacente às palavras do primeiro-ministro). Estou a falar do inverso: impedir que a comunicação social se transforme ela mesma num odioso instrumento de repressão. O que começa a acontecer.
A liberdade de imprensa exige por parte dos profissionais um grande sentido de responsabilidade, o que raramente se verifica. Estou a falar de um cotejo sistemático e permanente entre o código deontológico que rege a profissão de jornalista e a prática exercida pelos respectivos profissionais. Aquilo de que falava Marinho Pinto.
Nunca esquecendo que, a maior parte das vezes, muito bons jornalistas, submetidos a direcções ligadas a grupos político-económicos e não só, são obrigados a escolher entre a honestidade e o emprego, entre o pão e a verdade. Para se extirpar este tumor que não cessa de aumentar, tem de se ir bem fundo na incisão e não ficar pela solução fácil de punir ou diabolizar jornalistas corruptos, por certo ao serviço de interesses obscuros, mas que apesar da sua desonestidade mais não são do que as pontas visíveis e emergentes de gigantescos icebergues submersos.