Brasil, meu Brasil brasileiro Brasil, meu Brasil brasileiro Confundo a nossa mudança para Fortaleza com o golpe de 1964. A memória agarra os diálogos quase silenciosos dos meus pais. - O Fernando queimou os livros na banheira... Na cozinha, Nair colava os ouvidos à porta. O coração disparava e perguntava onde estava a festa da semana passada. O Júlio tinha sido preso. Outros seguiram o mesmo destino. O silêncio forçado calava no coração a esperança do povo. Meu pai abraçou-nos na despedida. Num DKW saía de São Paulo para Fortaleza. Nós seguiríamos depois. Beijou minha mãe, abraçou a baiana e pediu a ela que tomasse conta de nós. Não sei quantos dias depois recebemos um postal. Uma fotografia de um clube a beira-mar. Uma seta desenhada, sugeria nossa futura casa. A memória fez-me o favor de quase apagar a viagem de avião de São Paulo para Fortaleza. Na chegada meu pai, sempre bem disposto, sempre um pouco louco abraçava-nos. Uma casa em frente ao mar, sem forro no tecto, num bairro de pescadores. Antes da escola, um banho de mar. No regresso das aulas, uma corrida para praia puxar a rede junto com os pescadores. O Carequinha franzino, sorria envergonhado. Menino poeta, sabia de cor a canção do peixe enredado. Nas noites mornas, ao redor da mesa, com uma cachaça por companheira, meu pai gravava as canções dos homens do mar. O gravador portátil era uma invenção nova. A cachaça abraçava o calor que o corpo pedia. Um dia choveu. O povo na rua tirou a roupa, molhou o corpo. A terra sedenta bebeu toda água. A morte vai apagando a vida. Na terra o suor de uma colheita perdida. - Filhos já pari vinte… Será que o teu Maria, vai vingar? Nas ruas os porcos comem as promissórias vencidas. Matar o bicho, dar de comer a fome. Depois do peixe enredado o sol se despede. Nunca se atrasa. Nunca se antecipa. Os membros endurecidos anunciam o fim do dia. É hora de amar. <iframe title="YouTube video player" width="480" height="390" src="http://www.youtube.com/embed/bKRr2zKxKXs" frameborder="0" allowfullscreen></iframe>
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Quando viajamos num avião para longe, 12 h ou mais de viagem, quando chegamos a sensação é mesmo que estamos fora de casa. O ambiente é diferente, as casas são diferentes, as ruas, as pessoas, os carros...
Mas quando se chega ao Brasil isso não acontece, parece que só atravessamos a rua, as pessoas são iguais ao vizinho de cima que conheço há 30 anos, a língua é a mesma, as casas são iguais, as ruas, o ambiente.
No entanto, quando se sobrevoa o Brasil, vindo do sul da Argentina nós percebemos que estamos numa terra muito diferente, é uma terra jovem, um continente, com planícies a perder de vista, sem elevações, com imensos rios que se juntam em quantidades de agua impensáveis na Europa, florestas até onde a vista alcança. No Canada também é assim, uma terra jovem, a sensação é a mesma, mas na China, então aí não são só as pessoas e o ambiente que são diferentes, trata-se mesmo de uma civilização diferente da nossa, ocidental.
Se do alto do Cristo- rei, no Rio, fecharmos os olhos e "retirarmos" todos aqueles prédios e avenidas e "ficarmos" só com as elevações e as baías, o mar e as praias, percebemos que a natureza é ainda o elemento chave que tudo condiciona.
Na viagem do Rio para Petrópolis, terra onde viveu a família real portuguesa, atravessamos floresta que não deixa passar a luz, com árvores, flores e frutos únicos, de uma dimensão e côr que arrancam emoções que vão da estupefacção ao prazer.
O mesmo se diga na Amazónia, nas Quedas de Iguazú, que separa o Brasil da Argentina, o sítio mais bonito que vi em toda a minha vida, é exuberante, luxuriante, selvagem... milhões de borboletas "pintam" o ar de todas as cores (amarelo, azul, castanho...) e param na nossa mão por momentos, porque ainda não têm medo, livres como um passarinho da avenida Guerra Junqueiro que vem ao nosso prato roubar a comida ( na natureza nunca tinha visto o "passarito" não ter medo do homem...)
Nas ruas do Rio, percebe-se o medo, com as casas protegidas por grades de ferro que impedem os trânseuntes de se abeirarem das portas das residências; as pessoas saem de casa vestindo o menos possível (alpergatas, calções e t-shirt ) julgava eu que era do calor...e, esta, não é nada a cidade marvilhosa, os hoteis são muitos, os restaurantes também, mas não há vida cultural, não se vêm museus nem cinemas, e muito menos teatros, o que não quer dizer que não os haja...
Mas o Brasil é, realmente, muito português, o que não dá razão nenhuma aos que atribuem aos portugueses o atraso do Brasil. Basta olhar para as antigas colónias dos outros países europeus (Inglaterra, Holanda, Belgica...) .
Por ocasião da sua visita a Portugal, em artigo no jornal Público de 30 de Março, Dilma Rousseff, presidente do Brasil, escreveu:
Como países lusófonos, precisamos fortalecer a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, valioso instrumento de promoção da nossa língua como idioma global. Penso, sobretudo, na possibilidade de criarmos um canal internacional de notícias lusófonas, mecanismo essencial de comunicação, consulta e informação.
O romance do descobrimento do Brasil
12 de março
Olhando o horizonte sem fim me vem dentro do peito uma tristeza que não é pela navegação, disso tenho certeza. Mas não tenho certeza de onde venha minha tristeza. Grande é esse silêncio das águas, ainda que possa perceber quanto alvoroço vai por cada uma dessas naves. O ar fresco e sereno deixa que passeiem tantas vozes indistintas. Os sons inapercebidos se confundem com a intensa luz do mar, fazendo-se azul verde amarelo.
13 de março
Ah! aqui estão de novo as gaivotas! Pero Escolar me diz que estamos perto de terra e eu já vejo, não a que virá, mas a que ficou para trás.
14 de março, sábado
Finalmente terra! Ainda não serão as nove horas desse sábado tranqüilo e nos vemos entre as Canárias. Já os nossos velhos por aqui passaram e pousaram em tamanhos anos de conhecimentos. Esta Grã Canária que nos está diante dos olhos serenados muitas vezes acolheu os nossos em idas e vindas. Hoje nos acolhe, distante e estrangeira, na calmaria doce de seu mar. Grã Canária, Palma, Ferro, Gomera, Tenerife, Forteventura, Lançarote e tantas outras, quantas vezes falastes português? Sente-se um ar familiar, estando aqui. Sente-se que a costa não está longe.
15 de março
Quanto mais a viagem se adianta nos dias, mais difícil se faz para mim compreender o seu sentido profundo. Sei, claro, minha Maria, qual é a missão de Portugal; sei que El-Rei nosso Senhor, em nome da nossa Santa Fé, empenha-se com sabedoria para resgatar das sombras tantos homens e povos. É para isso que navegamos. Porém, quanto mais sinto o burburinho dessa grande gente fremente nas nossas treze naus, mais o meu esp¡rito se turba. Muitas são as vozes aqui, minha Maria, que esperam somente de chegar nessas longes terras para trocar, comerciar, enriquecer, encher as próprias arcas de riquezas. Não terão eles esquecido a verdadeira vontade de nosso Senhor, El-Rei? E esses fogosos soldados que sonham grandes encontros e lutas para a conquista de uma glória qua nada tem a que ver com os caminhos da nossa religião? Até mesmo alguns de nossos capitães deixam transparecer nos gestos o insaciável desejo de conquistas que trazem nos corações. Muitas vezes, minha doce Maria, me retiro na parte mais isolada da nossa nave para não escutar essas vozes. Porque sei que tudo isso, de todos esses desejos, pouca coisa poderá ser preservada.
16 de março
Isolado na proa de meu barco recordo a nossa casa, querida filha, e posso retomar aquele mesmo ar que sempre respirei no chão natal. É tanto mar o que me circunda, mas agora, neste instante, eu me liberto de toda idéia confusa e vejo claramente a nossa pátria familiar. O Porto me está sempre no coração e quanto mais navego mais me sinto ligado às suas ruas, estradas, praças, casas, ao Douro, à nossa gente. O som de suas falas ressoa nos meus ouvidos, vozes de amigos e companheiros. Sinto-me feliz neste recordar. Assim como sempre me senti livre no ar de liberdade de minha cidade, agora me sinto livre neste fresco ar de salsugem. Deixo que o vento salso acaricie meu rosto, os olhos entreabertos, e penso infinitamente em tudo quanto me enche a imaginação.
Estou quieto e inquieto, mas não infeliz.
17 de março, terça-feira
A navegação é sempre tranquila, minha Maria, até mesmo tranquila demais. O mar parece aquela estrada sem pedras, nem obstáculos. Caminha-se sempre; lá adiante, o horizonte que se fecha, mas não completamente jamais: um entreabrir-se constante de luz e calor. Olhando essas águas tranquilas, essas ondas, parece possível caminhar sobre elas, sem cansaços, longamente, superando prados e bosques, apenas distintos dos prados e dos bosques por esse baloiçar doce como um cantar materno e por esse sal que te traz à boca a sensação de uma mesa interminável, de onde não se levanta nunca. Em meio a esses prados e bosques salados é um jogo comer os frutos que sabem de todos os gostos, até mesmo daqueles mais distantes, vindos de uma infância que eu já julgara definitivamente perdida.
18 de março
Esta noite o ar estava muito quente. Certamente vinha da costa que não está distante um vento sutil de caldura que me expulsava da minha cabine para o ar livre da nau-capitânea. O lenho deslisa indolente nas águas, como se sentisse como nós o calor impregnante da noite. São muitas as estrelas neste céu. Com Pero Escolar, delas já muito falamos, reconhecendo cada uma, indagando as muita belezas irradiadas em desenhos luminosos conforme o ondejar das águas, o correr das correntes e o passar das nuvens movidas pelo vento. Indagamos também de seus possíveis benefícios e malefícios. Pero Escolar ama muito as estrelas desses céus e as conhece como as linhas de sua mão. E nelas lê, como tu agora estás lendo, minha querida, o cismar sem método de teu velho pai. Admirando as estrelas, sem desejo algum de desvendá-las, vendo esta noite densa e quente - as naves que projetam aqui e ali sombras vivas - me sinto como se estivesse na capelinha de Santa Maria de Belém e estou sempre partindo. Para uma longa viagem em busca de margens que não conheço e não consigo distinguir.
19 de março, quinta-feira
Viajar, minha doce Maria, é saber quanto desejas o que está adiante e quanto amas o que desejas esquecer pelo novo. Aqui, comigo, mas escondido na lembrança perdida, está este lugar que não mais quero e sempre amo. Sabê-lo, mas ilusoriamente esquecendo-o, é como flutuar num sonho onde tudo se sabe e tudo se esquece. Lá, nas margens distantes e desconhecidas, está o lugar do sonho, para onde quero ir. Para lá vou, inquieto e feliz, com o só repouso das lembranças que procuro esquecer na caminhada para a nova margem desejada. Minha doce Maria, és a minha única lembrança clara neste navegar de sonhos.
20 de março
Aonde estão as gaivotas que desde muito não vejo? Onde estão os calores da terra que elas trazem misteriosamente na pureza do vôo? Este mar é triste e solitário sem os vôos brancos das gaivotas, seus gritos, seus jogos de arabescos na trilha das naves. Olho as velas da nau-capitânea, pançudas de tanto vento benéfico, e elas me parecem gigantescas gaivotas com novas de uma terra já vizinha.
21 de março
Aqui estão de novo as gaivotas! Sabes, querida Maria, vê-las de novo que chegam, primeiro um pequeno grupo, depois mais e mais, vozeantes, alegres, me faz aquele bem que se sente quando se caminha pelas estradas conhecidas à luz de um céu brilhante de estrelas. Parece absurdo, mas diante do desconhecido pequenos conhecimentos, como o vôo dos pássaros, se transformam em certeza de vida e conforto para o coração. Navegamos sempre. As águas são tranqüilas, as naus formam desenhos geométricos na formação que nem vento nem correntes marítimas alteram. Brevemente veremos terra, é o que nos dizem as gaivotas.
22 de março, domingo
Terra, terra! Nesta manhã de sol de domingo, mais ou menos pelas dez horas, avistamos as ilhas do Cabo Verde. Estamos diante do grupo de ilhas a ocidente de Barlavento, em verdade diante da ilha de São Nicolau. Festeja-se em todas as naves, se ouve. Pero Escolar me esclarece tudo sobre o arquipélago, mostrando-me as outras ilhas que com São Nicolau compõem a parte ocidental do mesmo: Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, Branco e Raso. A oriente de Barlavento, me informa, estão as ilhas de Sal e Boa Vista; de Sotavento, o terceiro grupo formado por Maio, Santiago, Fogo, Brava e pelos ilhéus Secos.
Nota-se improvisamente um movimento insólito entre as naves. A armada de Álvares Cabral faz movimentos particulares, movimentos de comunicação entre as diversas unidades, como se este atual fosse o ponto central do longo caminhar. Lentamente todas as naus convergem para o ponto onde se encontra a nau-capitânea, uma a uma tomando posição de abordagem. Logo chega a nave de Sancho de Tovar, e o vice-comandante passa a bordo da capitânea. Logo depois o mesmo acontece com Gonçalo Coelho e sucessivamente com Bartolomeu Dias, Simão Miranda, Aires Correa, Diogo Dias, Aires Gomes, Gaspar de Lemos, Nuno Leitão da Cunha, Pero de Ataíde, Luís Pires, Simão de Pina. O último a subir a bordo ‚ Vasco de Ataíde.
Os doze capitães se reúnem com Pedro Álvares Cabral. O Comandante está sentado numa cadeira de braços, à cabeceira da grande mesa retangular que hospeda, seis de cada lado, os capitães. Todos vestidos como para os grandes momentos. Aires Gomes traz atacada à capa uma pedra bazar, cingida por anéis de filigranas de ouro que se entrecruzam. Diante de cada capitão está uma caneca com tampa. O Comandante fala longamente com os seus capitães; estes, ao seu tempo, lhe respondem ou trocam idéias com o companheiro ao lado ou defronte. A assembléia tem a calma que constantemente se vê nos gestos e falas do Comandante. Pressente-se que a partir de hoje a navegação toma um novo rumo, desconhecido mas desejado. É o que se lê de longe nos gestos e movimentos dos treze capitães de Portugal. Para longe se vai. Para onde levam as certezas das vontades que não conhecem limites nem temor.
O romance do descobrimento do Brasil
A minha terra era longe dali, no restante do mundo.
João Guimarães Rosa
Navegar, minha amada e infeliz filha, é poder num só momento viver tantos momentos; estar presente ao que se assiste e às lembranças; sentir e pressentir, chegar e esperar. O mar é este gentil caminho que nos leva em todas as direções e nos envolve como um manto. Navegar é estar sozinho sem solidão. Por isso te recordo, minha Maria, neste mar e nesta terra nova, e quero contar-te todas as andanças que me acompanham. Sei que te sentes sempre triste com a tua existência incompreendida, e quero alegrar-te um pouco e estar contigo em nossa casa. Então, pensei, escreverei para minha Maria todas as comoções das minhas viagens e as revelações delas. Para ela falarei de tudo que vivo e descubro, assim mesmo como farei para o meu Rei e meu Senhor. Já lá se vão tantos dias de minha partida, mas começarei hoje, como me ordenou meu Comandante. Quando daqui a dias a nave de Gaspar de Lemos retornar a Lisboa e nós continuaremos para as Índias, junto com a carta para El-Rei, irá também este diário para Maria. Nele, Maria, te contarei tudo. Começo hoje. Mas parto daquele primeiro dia em Belém. Assim, muitas coisas que te direi serão puras lembranças. Outras, verdades.
9 de março de 1500
Tu bem sabes, Maria, quanto esperei por este dia. Sim, grande era a dor por separar-me de ti e deixar a nossa casa. Mas eu quis esta viagem para Calicute. Com ela, pelo prestígio que El-Rei nosso Senhor tão bondosamente se dignou conceder-me com os honrosos encargos a que vou encontro, espero mais que pela minha glória encontrar forças e poderes para suavizar a tua dor de esposa infeliz, minha Maria. Assim hoje, daqui de Belém, parto. A manhã é bela e ensolarada. As nossas treze potentes naves parecem ansiosas, enquanto balançam as suas velas no movimento constante da brisa do Tejo. Lá está Caparica com o seu baluarte. Neste ancoradouro do Restelo desde cedo o povo é muito. Manhã cedinho me aproveitei do recolhimento da capelinha de Santa Maria para pedir ao Nosso Senhor proteção para todos nós. Agora a festa da viagem começará . O Restelo revive o alvoroço da partida - já lá se vão três caravelas em busca do caminho das Índias. Quando há apenas um ano a vela de Gonçalo Coelho - que hoje parte de novo - entrou no Tejo, antecipando a chegada do Gama com as novas do mundo que Portugal abrira para o conhecimento de todas as gentes, mesmo então o Restelo não recolhia tanta malta como vejo hoje daqui de minha postação. Baila-se, canta-se, é toda uma alegria. No cais, o nosso Comandante está com os outros doze capitães na espera de El-Rei. Nas treze naus fervilha o movimento da multidão de mil e trezentos homens que cedo partirão para confirmar nas Índias o poder de nossa terra. Mil e trezentos homens são eles, minha querida filha. Marinheiros, soldados, nobres cavalheiros, religiosos, físicos, cronistas, intérpretes, comerciantes, mestres, aprendizes, degredados, aventureiros, e até mesmo viajantes sem qualquer missão. Os treze pilotos conduzem as naus para posições melhores de embarques e partidas. O Tejo resplandece na luz dessa manhã e caminha direto para o mar, indicando caminho. A nossa é uma viagem difícil. Deve não descobrir, o que é possível, mas confirmar; o que tantas vezes supera o poder do Homem. É o que vejo agora no rosto e nos olhos do muito honrado Pedro Álvares Cabral. O Comandante como sempre está sereno, ao lado de seus doze capitães. Mas seus olhos contemplam muito além da malta alegre que baila e canta sem cansaços. Seus olhos já percorrem os mares que virão e serão desvendados. Bartolomeu Dias agora lhe fala, mas eu não escuto as palavras ditas. Posso seguir somente o profundo olhar do meu Comandante em busca de tudo aquilo que nós ainda não sabemos. Chega El-Rei nosso Senhor. O séquito do Comandante e seus doze capitães, mais, acompanhados por frei Henrique de Coimbra e seus religiosos franciscanos, vai encontro a D. Manuel. El-Rei nosso Senhor conduz o séquito para a tribuna colocada no centro do cais. Alas de soldados armados de espadas, com elmetes abertos protegendo-lhes as cabeças, contêm a malta festosa, enquanto o real cortejo atinge a tribuna. Ali, El-Rei nosso Senhor faz sentar-se ao seu lado o Comandante desta que é a maior armada jamais reunida por um Rei cristão. O nobre Pedro Álvares Cabral assiste às festas ao lado de seu Rei. Cessadas essas, El-Rei nosso Senhor se alevanta, dirige-se na direção do Comandante e coloca-lhe na cabeça um barrete bento mandado de Roma pelo Santo Papa. Em seguida, entrega-lhe as armas reais e a cruz da Ordem de Cristo. O olhar do Comandante vê, distante, esta cruz fincada numa nova terra.
10 de março
O mar é tudo, minha doce Maria. Caminhamos sempre por essas águas e caminhamos, caminhamos. Já não vejo nada mais que céu e mar. Da terra, da minha terra reconheço somente este vento que nos movimenta num marulhar constante e o voo assíduo das gaivotas. Lentamente, e com tristeza, vejo que as gaivotas começam a rarear sempre e mais com o passar das horas. Já não são tantas como há algumas horas neste entardecer triste e sereno do nosso segundo dia de navegação. Hoje é uma terça-feira; é preciso que não me esqueça. A nau-capitânea corre segura sobre as águas e eu falo muito com Pero Escolar, nosso piloto. As outras doze caravelas aqui estão, ao largo, defronte e ...s costas da nau-capitânea. Avante caminha a nau de Sancho de Tovar, nosso vice-comandante. Sancho de Tovar e Álvares Cabral estão sempre em contato, mesmo na navegação. Ali vai, muito protegida, a nave dos mantimentos de Gaspar de Lemos, assistida à vista pela vigilância das velas de Gonçalo Coelho e Bartolomeu Dias. Sabes, Maria, as naves, umas são muito grandes e poderosas com grandes bocas de fogo, como esta capitânea e a de Sancho de Tovar; outras são menores, de árvores que parecem pequenos pinheiros em comparação com os grandes mastros das maiores. As naves menores muitas vezes indicam o caminho. Lá vão as de Nuno Leitão da Cunha, Pero de Ataíde, Luís Pires, Simão de Pina. As grandes velas de Diogo Dias, Simão de Miranda, Aires Correa, Aires Gomes, observam atentas a lenta navegação. No fundo do azul que entardece caminha a nau do infeliz Vasco de Ataíde. E agora, para onde irão as gaivotas? Quem sabe, talvez retornem para subir o Tejo e contar-te, Maria, como vamos e como caminhamos.
11 de março, quarta-feira
Hoje, mais do que nunca, minha querida filha, matutava sobre o teu casamento e tuas desgraças. Sabes quanto sofro com a tua desventura. Desde que o teu marido desgraçadamente foi degredado, não posso suportar de ver a dor por que passas e que sempre procuras esconder aos nossos olhos. O meu genro Jorge de Osório, teu marido, já mereceu uma vez da graça do nosso Senhor. Espero que a soberana bondade não conheça limites e conceda ainda uma vez perdão ao meu genro. Tudo isso será bom lenitivo não somente para ti, doce minha Maria, mas igualmente para mim, pois que não suporto ver nos teus olhos a dor que te está consumindo lentamente. Também para isso navego, quero que o saibas.
Luis Moreira
Lula da Silva foi, a todos os títulos, um Presidente excepcional. Os resultados conseguidos em que se deve realçar os 40 milhões de pessoas que saíram da pobreza (com a criação de postos de trabalho); os apoios sociais do estado, os milhões de jovens com acesso à educação. O desenvolvimento de uma poderosa economia, com a cereja no alto do bolo das extensas manchas de petróleo encontradas no off shore que representam uma riqueza incalculável; a luta sem treguas à corrupção e à bandidagem; a reputação do Brasil que é hoje considerado um país do futuro integrando os BRIC.
Julgo que ninguém duvida desse trabalho e desses resultados, mas também é verdade que muito foi feito pelo Presidente Henrique Cardoso, que foi um Presidente que lançou as bases de um Estado de Direito, que se manteve acima dos partidos e, que, partiu muita "pedra" no caminho seguro de um país mais justo e mais rico. Há cerca de um ano e meio que estive no Brasil e tive curiosidade de falar sobre este assunto com gente que encontrava, mas que não conhecia, nos hoteis e nos restaurantes nas sortidas nocturnas. Há um grande consenso quanto ao carinho que nutrem por Lula, mas muitas dessas pessoas não deixaram de me chamar a atenção para o trabalho de "sapa" de Fernando Henrique Cardoso.
Há também um grande orgulho pela reputação que Lula grangeou em todo o mundo, e por sua vez procuravam saber qual era a nossa opinião enquanto europeus. Disse-lhes que era também com grande orgulho que reconhecíamos um político de nível mundial, a falar a mesma língua.
No entanto, encontrei uma Iraniana, brasileira de segunda geração, com as maçãs do rosto salientes de mulher do Oriente e olhos verdes da miscigenação com alemães que nem queria ouvir falar de Lula. Pessoa que falava diversas línguas e que tinha uma Agência de Viagens, que se apressou a dizer-me que trabalhava como guia (segundo emprego) para manter a filha única num dos melhores colégios do Rio. Para ela, a classe "média-alta" a que ela pertencia, não deviam nada a Lula.
É, preciso algum distanciamento, mas os resultados, com um país mais rico, mais equitativo não enganam, Lula é mesmo um grande político e foi um grande Presidente. Não se obtêm os resultados que conseguiu por pura sorte ou porque se acredita na Senhora da Caravagio. Só com muito trabalho e muito saber se obtêm resultados!
Veja aqui este vídeo com um discurso memorável de Lula.
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Da esquerda para a direita Abel Manta, Aquilino Ribeiro, Gualdino Gomes e Júlio da Costa Pinto à porta da Havaneza de Lisboa em 1938.
Percurso Esgotado
(continuação)
Durante longos doze dias a presença constante de amigos nunca deixou só D. Carminda, dia e noite a seu lado falando-lhe baixinho na esperança de o despertar do estado de coma. Botto sofre, luta contra a morte lá no fundo do seu alheamento, mas Caronte e a sua barca esperam-no na Baía de Guanabara. Há uma luz cristalina que lhe abre um caminho infinito por um túnel de cânticos. É a luz de Lisboa a abençoá-lo com as pequenas casas de Alfama a descreverem um desenho suave sobre o rio. Há varinas na rua gritando o peixe, ardinas correndo a vender jornais, amoladores de facas e navalhas anunciando-se ao som estridente da flauta. Olha o Fernando no Martinho da Arcada, o Pacheko a pintar cenários para revistas, a Amália a cantar no Luso, a Beatriz Costa a fazer uma rábula no Variedades! À porta da Bertrand está o Aquilino Ribeiro e o seu grupo e o Gualdino Gomes, esse crítico arrasador, continua a frequentar o Café Chiado onde se encontram agora os neo-realistas. Nas avenidas passam Buicks, Chevrolets, Studbakers. Vem ali o Villaret a declamar a Julieta do Beco das Cruzes e o Filipe Pinto a cantar um fado meu. Raul Leal diz-me que me esperas e tu, António Ferro, também. Já vou, já vou aí!
Talvez nunca se tenha sentido tão tranquilo, tão seguro de si, tão suavemente humano como neste dia 16 de Março de 1959. Não há dúvidas nem certezas, tampouco vaidades e egoísmos. Está tudo finalmente concluído e cumprido. Um silêncio de luzes mortas ilumina-lhe a estrada para além. Carminda toma-lhe as mãos e sobre elas repousa as lágrimas de uma vida. Enche-se o quarto da generosidade daquela mulher, do seu amor indimensionável. Há pessoas assim capazes de sacrifícios pelos outros. Nos limites de uma consciência para além do coma mortal reconhece na rapidez de um segundo que não tem mais o direito de a sacrificar à sua fama nem ao exibicionismo do seu talento. Fugazes sombras convidam-no como musas inspiradoras a conhecer outro território sublime. Quebra a ténue lâmina de fogo que o separa desse destino infinito e, soerguendo-se do leito, deixa-se ficar humildemente debruçado nos braços da morte a repousar da tragédia.
Após autópsia o corpo do poeta é transferido, pelas 11 horas da manhã do dia 17, para as instalações da Beneficência Portuguesa onde permanece em câmara ardente. Ali comparecem um representante do Presidente da República do Brasil e outro da embaixada de Portugal além de outras instituições. Às 17 horas desse mesmo dia, depois do «esquife [ter sido] retirado da Beneficência Portuguesa pelos representantes diplomáticos de Portugal, Associações Portuguesa e amigos» o funeral segue para o cemitério de S. João Batista com a urna envolta numa bandeira de Portugal, conforme pedido de D. Carminda. Astério de Campos faz o elogio fúnebre do poeta diante do túmulo, a sepultura nº 771. José Maria Rodrigues, que escreveu a este propósito uma reportagem emocionante, acentua que o funeral foi «vazio de gente». Em contrapartida O Globo informa que ao funeral «compareceu grande número de intelectuais, poetas, jornalistas, representantes do Sindicato dos Jornalistas, presidente da Associação Brasileira de Imprensa e populares». Celebrado, popularizado, vendido, traduzido, reconhecido no Brasil como só dois ou três escritores portugueses vivos o seriam naquele tempo; morria pobre, esquecido da pátria, desprezado pelos editores, esta figura dramática que fora essencialmente um provocador, agora morto, enterrado, sossegado e em paz.
Pura ilusão! Passado muito pouco tempo já se especulava sobre as posições da embaixada de Portugal em ter criado dificuldades para a transladação do corpo para Portugal, conforme a vontade de D. Carminda, tornando o acto inviável. Afirmava-se também que a embaixada não teria dado a merecida atenção à morte do poeta, notícias que obrigaram a embaixada a publicar nos jornais um esclarecimento sobre a forma como actuou não faltando com a sua presença e colaboração no acto fúnebre e pagando todas as despesas com o funeral. Na verdade, o cônsul português no Rio de Janeiro terá explicado à viúva que a transladação dependeria do consentimento das autoridades de Lisboa (jornal A Voz de Portugal) o que demoraria imenso tempo. Por cá, isto é, em Lisboa, dizia-se que as autoridades, ou melhor a autoridade Salazar é que não concedera licença para tal.
A tua saga, António, estava ainda longe de terminar mesmo depois de morto. Mas isso que importava se o melhor elogio à tua pessoa, se assim o quisermos entender, seria publicado no mês de Abril, no nº. 22 da revista Leitura–a revista dos melhores escritores, na secção “Os dias, os factos, os homens”: «pediu [António Botto], antes de morrer, para ser enterrado em Portugal. Dificuldades de ordem burocrática negaram ao poeta o seu último desejo. (…) Assim, como Portugal não reclamou o seu Poeta, nós o guardaremos até o dia em que poetas portugueses mortos em exílio voltem a ter lugar no coração da pátria.», o que só viria a acontecer seis anos depois.
Apesar de tudo o Brasil foi teu amigo.
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História Breve de Uma Boneca de Trapos
Era uma vez uma boneca
Com meio metro de altura.
Insinuante, bonita,
Mas. Pobremente vestida.
Um ar triste – uma amargura
Diluída no olhar …
- Grandes olhos de safira,
E um sorriso combalido
Como flor que vai murchar.
Quase a meio da vitrine
Lá daquela capelista
Essa boneca de trapos
A ninguém dava na vista!
Ninguém via o seu sorriso!
Ninguém sequer perguntava:
Quanto vale a «marafona»?
Quanto querem pla «Princesa»? …
Passaram anos – Com eles,
Foi a minha mocidade
E cresce a minha tristeza.
Quem é que dá pla Boneca
Que os meus olhos descobriram
Lá naquela capelista
Quase à esquina do jardim? …
- Quem dá por ela? Ninguém.
E quantas almas assim!
(In “Canções – Intervalo” – pag. 179 – ed. Círculo de Leitores – Lx. 1978)
Percurso Esgotado
(continuação)
Mês e meio separa-o da morte, um tempo que não posso reconstituir por ausência de acontecimentos relevantes para António Botto. Tudo vulgar, tudo normal, como se um vazio se tivesse abatido sobre o poeta durante esse curto período. Modesta a vida do casal, sem aquelas peripécias de incumprimento de dívidas e até a saúde tinha estabilizado na sua fragilidade. Estava sereno como raras vezes estivera nos últimos anos pois não andava aos tombos, mais por mercê dos amigos que visitava, diga-se em abono da verdade, que por sua iniciativa de trabalho. Paulo Rabello era assíduo mártir das suas investidas, Pedro Bloch – seu médico dedicado – dava-lhe consultas graciosas, Danton Jobim e Saldanha Coelho ajudavam-no muitas vezes segundo o diz Alberto da Costa e Silva no seu livro Invenção do Desenho. As noites, senão todas muitas delas, eram ocupadas no restaurante “O Corridinho”, casa típica portuguesa onde costumava dizer poesia para ganhar uns cobres. Dias antes de ser atropelado concede uma entrevista que virá a ser publicada já depois da sua morte no jornal A Voz de Portugal, na página de espectáculo Esta Semana Aconteceu, dirigida por José Maria Rodrigues também correspondente da revista portuguesa O Século Ilustrado. A entrevista acompanha uma emocionada e comovedora reportagem sobre a morte do poeta e terá sido a última que ele deu antes de falecer. Ocupa meia página com duas fotos onde podemos ver além de António Botto, o proprietário António Mestre e Ivone Ruth, o cronista Marcos André, o editor António Pedro Rodrigues e o citado jornalista a quem o escritor responde que vão aparecer novas obras suas as quais «foram batizadas com estes nomes que [lhe] parecem bastante sugestivos: Ainda não se escreveu, primeiro volume de 500 páginas [tinha que ser coisa em grande], Os Mastros do meu Navio, O Livro da Revolta Mundial» e vai por aí fora com mais cinco títulos e um estudo sobre Fernando Pessoa. Longe das tais quinhentas páginas só apareceu postumamente o primeiro título, os outros correspondem a projectos ou trabalhos em esboço como seria o caso de O Verdadeiro Fernando Pessoa (BNL – espólio de AB – cota E12/198) em que Botto evoca a sua amizade com o poeta de Ode Marítima, as conversas no Martinho da Arcada e os conselhos que lhe dava como se fosse o seu guia. «A sua obra não era obra, não nos deixou obra alguma; deixou dispersos desarrumados em prosa e verso», escreve sobre o homem que morre, efectivamente, com os «dispersos desarrumados» e quase desconhecido, mesmo no seu país, classificando as Odes de Ricardo Reis um «jogo gongórico» em que teria procurado imitar-lhe as Canções. Mesmo sendo um texto que não teve publicação a indesmentível amizade de Fernando Pessoa, este sim verdadeiro amigo e impulsionador da sua obra, merecia mais sensatez.
Deambulava na noite do Rio, escrevi na primeira edição (António Botto, Real e Imaginário – edição Livros do Brasil - Lisboa 1997) quando foi atropelado na Avenida Copacabana, em frente ao Lido, em 4 de Março de 1959. O verbo deambular transmite a ideia de que António Botto andaria por ali à deriva o que não era o caso. Hoje sabe-se que teria decidido ir ter com o seu amigo Paulo Rabello pelo que saiu de casa (ali perto), com vestimenta ligeira e sem documentação. Nessa altura já bastante surdo, ao atravessar a movimentada avenida o poeta é atropelado por um veículo do governo brasileiro (automóvel da aeronáutica informam uns jornais, um camião noticia outro), cujo motorista põe-se em fuga mas sendo a matrícula registada por transeuntes é depois participado às autoridades. Entretanto, Botto fica imobilizado no asfalto com fractura de crânio até ser posteriormente conduzido para um hospital. A ausência do poeta ao encontro com Rabello leva o advogado e D. Carminda a contactarem amigos, polícia e hospitais onde será localizado na madrugada do dia cinco em estado de coma.
Quando a imprensa começa a noticiar o acidente damos conta de várias versões sobre o hospital em que a vitima terá dado entrada, seja no Hospital do Pronto-Socorro, no Miguel do Couto ou no Sousa Aguiar, onde na verdade veio a falecer. A questão da transferência para outro hospital enquanto vivo (também falada para o Gomes Lopes), não se terá verificado por oposição dos médicos Guilherme Romano e Herbert Moses, que o assistiam, dada a gravidade do seu estado (Voz de Portugal, 22.03.1959). Transferência houve, sim, mas para um quarto particular por ordem do secretário da saúde do Rio de Janeiro.
Logo que o poeta foi identificado apresentaram-se no hospital representantes da prefeitura da cidade, das associações portuguesa e brasileira de imprensa e da brasileira de escritores. O embaixador português, Dr. Manuel Rocheta, que se encontrava fora da embaixada, providenciou para que o cônsul geral visitasse o sinistrado e providenciasse no que fosse preciso. Em Portugal a imprensa escreve que António Botto deu entrada no hospital como indigente, fazendo assim acreditar que ele encontrava-se num estado de extrema pobreza. De facto, como indigente o registaram por ser um sinistrado desconhecido e indocumentado que após ter sido identificado nada lhe faltou.
Apesar do comportamento muitas vezes criticável, das frequentes confusões em que se metia, dos permanentes empréstimos que pedia, das mentiras com que alimentava a sua personalidade, Botto jamais foi escorraçado ou abandonado nos piores momentos. O Brasil que o acolheu em glória também o respeitou na modéstia da sua condição de escritor em decadência não deixando sequer de dar uma larga cobertura jornalística aos acontecimentos dos seus últimos dias.
(continua)
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As Canções de António Botto
Toda a Vida – poema 1
Pág. 319 – ed. Livraria Bertrand – Lx. 1956
Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo, - a luz do dia.
Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração da minha fantasia.
Se fosses flor
Serias o perfume, concentrado e divino,
Que perturba o sentir de que nasce para amar.
Se desejo o teu corpo
Para nele poder todas as noites pernoitar
É porque tenho, dentro de mim, -
A sede e a vibração de te abraçar,
Sabendo, de antemão, que vais gostar
De eu o saber atravessar, nessa nudez
Em que podemos, ambos, tudo sentir
Sem nos cansar, -
E adormecer, E repetir.
Se fosses água, música da terra,
Serias água pura e sempre calma.
Mas de tudo que possas, ainda, ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma.
João Machado
Várias pessoas me remeteram separadamente o vídeo que acima coloquei, e que na realidade tem grande interesse. Lula da Silva, ao invés de muitos dos seus colegas governantes (julgo que não seria exagerado dizer: ao invés da grande maioria dos seus colegas governantes) defende o Wikileaks, e põe a questão: será que ao perseguir os seus responsáveis não se está a perseguir a liberdade de expressão? O presidente brasileiro cessante chama a atenção para o facto evidente de os responsáveis pelos escândalos revelados serem os autores das mensagens e não quem as trouxe ao conhecimento do público.
É óbvio que Lula, ao fazer aquelas afirmações sobre o Wikileaks, não conquistou muitas simpatias entre a classe política. E não vemos Tony Blair, Bill Clinton, muito menos Aznar ou Georges Bush, a fazer declarações semelhantes. E Mário Soares ou Freitas do Amaral? Ignoro se se pronunciaram sobre o assunto. Mas suspeito que também não terão concordado. Talvez o sentido das suas declarações variasse, conforme estivessem no poder ou na oposição. Também os agentes políticos (diplomatas, espiões, que também são agentes políticos, e de que maneira, assessores, etc.) não devem ter gostado de que lhes chamassem a atenção para o dever que têm de procurar ser mais rigorosos e empenhados no exercício das suas funções. Mas Lula ao pronunciar as suas declarações não foi com certeza ingénuo ou descuidado. Quem o observa percebe que não é uma coisa nem outra. Privilegiou a defesa da transparência e da democracia (não existe uma sem a outra) em vez de dar prioridade às vantagens pessoais que resultam de uma reforma tranquila, sem controvérsias.
José Carlos de Vasconcelos, na Visão de 6 de Janeiro de 2011, na sua coluna de opinião Portugal Comentário, sob o título O exemplo de Lula, faz um resumo do que foi a evolução de Brasil com Lula da Silva, e remata concluindo que as características pessoais de Lula, para além das suas opções políticas, contribuíram para o êxito dos seus governos. Êxito esse sem dúvida parcial, na medida em que o Brasil continua a ser um país de grandes contrastes. E Lula terá deixado grandes problemas por resolver, como a corrupção, o problema ambiental, a reforma agrária e, apesar de grandes melhorias, grande pobreza, com os seus fenómenos correlativos (crime violenta, número enorme de crianças e jovens desvalidos, doença). Contudo são inegáveis a melhoria de condições de vida de muitos, a maneira como o Brasil resistiu à crise financeira mantendo-se na via do progresso económico, e o papel cada vez mais importante que vem desempenhando na cena internacional. José Carlos de Vasconcelos realça a sabedoria, a experiência de vida, a visão política, o amor e fidelidade ao povo e outras qualidades que fizeram de Lula o líder mais indicado para dirigir o país, na sua opinião.
Sem dúvida que essas qualidades foram muito importantes para os sucessos dos governos de Lula, nacional e internacionalmente. Por mim acho que Lula poderia e deveria ter ido mais longe em vários sectores. Lula pertence a uma ala esquerda moderada (não terá sido sempre assim) que recusa as fracturas que são necessárias para corrigir as grandes disfunções sociais. José Carlos de Vasconcelos relembra que fez "pactos com Deus e com o Diabo" para garantir a estabilidade governativa. Mas pessoalmente acho que Lula, nascido no Pernambuco, emigrante dentro do Brasil, que engraxou sapatos, se tornou operário e sindicalista, com poucos estudos se lançou na política, se candidatou várias vezes à presidência do seu país (só foi eleito à quarta), é um caso raro num político que chegou tão longe. Porque manteve uma grande ligação com o seu povo, ao contrário dos que já acima referi (será que alguma vez a tiveram, essa ligação?), e de muitos outros. Dos políticos que conheço (dos que tenho uma ideia sobre as suas vidas e do que são como pessoas), por esse mundo, só talvez os cabo-verdianos Aristides Pereira e Pedro Pires tenham algumas parecenças com Lula da Silva. E Cabo Verde e o Brasil são tão diferentes. De qualquer modo, foram as qualidades pessoais de Lula da Silva que emergiram quando falou do Wikileaks. Julgo que isso deve ficar para a história.
Os Últimos Anos de Infortúnio
(continuação)
Após ser obrigado a abandonar a residência da Almirante Alexandrino o casal aloja-se numa casa má na Rua Joaquim Murtinho, nº 549, ainda no bairro de Santa Teresa. Este terá sido um tempo negro como se depreende pela carta endereçada ao seu grande amigo e advogado Paulo Rabello a quem confessa que se tem privado de tudo: «Vendi tudo de valor quanto tinha. A última derradeira jóia que vendi foi um relógio de pulso Patek, todo em ouro». Data deste período o único desabafo que encontramos acerca da mulher: «Não gosta de se desfazer dos vestidos, sapatos, chapéus, jóias, mesmo que precise de pão para a boca». Mesmo estas considerações revelam exagero como se falasse de um moderno guarda-roupa, que não era o caso visto ambos vestirem modestamente segundo as observações de diversos dos seus amigos.
Mal instalado, sobrevive da colaboração em jornais, dos direitos de autor que vai recebendo, do auxílio dos amigos. Declama poesia num restaurante típico português ganhando, mal, o sustento diário: «Comemos arroz, café, chá, um resto de queijo e pão», escreve num dos seus dolorosos apontamentos da segunda metade de 1958. Para o médico de Carminda pede 1000 cruzeiros emprestados a uma portuguesa com venda de ovos e galinhas na Avenida Princesa Isabel, mas no dia seguinte a mulher não leva a primeira injecção «porque não havia dinheiro para o pavio, quanto mais para a vela».
A Portugal chegam ecos desta situação e um articulista do jornal O Século escreve, por altura do falecimento do poeta, na secção “Últimas Notícias” (19 de Março de 1959), algumas linhas trágicas a encerrar uma breve nota biográfica: «Um dia, após anos de silêncio, soube-se aqui que o cantor das quentes noites lisboetas estava num asilo de indigentes, para onde o remetera a caridade alheia. Fora preso por vadiagem na grande metrópole projectada para o céu em gritos de cimento, quando abordava transeuntes e lhes sussurrava: - Sou o António Boto. Vinte cruzeiros por um poema». Esta fantasia, derivada certamente do processo de internamento hospitalar na Santa Casa da Misericórdia, ajuda-nos a compreender os exageros que envolveram a vida e a carreira literária do autor de Dandismo porque no Brasil, como em Portugal, o dinheiro entrava-lhe nos bolsos e saía deles com grande facilidade. O próprio Botto regista que Samuel Ribeiro «honrado santista, e cultura aprimorada», ofereceu-lhe trezentos mil cruzeiros, «como lembrança de um lial admirador de toda a minha obra» (sic). Concluo que boa parte das dificuldades financeiras com que sempre lutou deveram-se à sua total ausência de economia.
Paulo da Cunha Rabello é advogado, director-gerente da Sociedade de Incorporações e Realizações, Lda., intelectual e poeta, amigo e admirador de António Botto a quem este recorre e mais abertamente se confessa nos momentos de maior dificuldade. A partir de Niterói Paulo Rabello torna-se uma espécie de anjo da guarda do nosso compatriota pois não só o defende nas questões jurídicas como lhe facilita a resolução dos problemas que delas resultam. Em Junho de 1958 o advogado recebe do tribunal a ordem de despejo da Av. Almirante Alexandrino e apesar de Botto se alojar na Rua Joaquim Murtinho não deixa de procurar, com a colaboração do amigo, outro local onde possa viver com dignidade e respirar com esperança. Inicia então uma batida por Copacabana em jornadas exaustivas e desanimadoras pois o que vê é «tudo caro e mau». São dias tristes, angustiantes, dolorosos, que o poeta regista no seu diário. Em 13 de Outubro o casal passa pelo escritório de Paulo Rabello onde a par da informação sobre a jornada falam da peça A Raposa e as Uvas, de Guilherme de Figueiredo, em cena no Teatro Copacabana. Antes de regressarem a Santa Teresa «debaixo de uma chuva horrível, peganhenta, em que a cidade velha, escura, desmantelada, nos comunica o frio da desgraça e da morte», procuram um pouco de conforto e calor humano com esse amigo de todas as horas, conversando sobre poesia, sobre acontecimentos correntes como seja o aniversário da Elbi (?) com quem Botto diz ter dançado duas vezes. Depois a noite cai, o dramaturgo de Alfama retoma a realidade para regressar a casa e ao deixar o “bonde” atravessa a Joaquim Murtinho cruzando-se com «ratos, ratazanas e baratas» que passavam diante de si. Nessa casa gélida, pobre, «miserável» como lhe chama, posso imaginar que todos os dias, mesmo nos de sol, acorda com «o céu pesado, da cor dos cemitérios», conferindo ao drama do casal a dimensão da tragédia não fora a intervenção de Paulo Rabello em conseguir um «apartamento salvador». Nesse Dezembro de 58 faz no notário um contrato de locação com o Dr. Firmino Von Doellinger da Graça, representado por sua esposa na escritura do apartamento 902, situado no 9º andar do edifício Granada, Rua Belfort Roxo, nº 169, Bairro de Copacabana. O contrato estabelece uma renda de 1000 cruzeiros por mês, ficando Cunha Rabello como fiador e responsável contratual o que só comprova que António Botto tinha, de facto, amigos. O desafortunado ano de 1958 acabava a flutuar entre a tranquilidade e a esperança de uma paz que tardava em chegar. Apesar do tempo lhes ir fugindo os seus corações estremeciam na fé de que ainda teriam direito ao seu pequeno naco de felicidade.
Tomado pela consciência do íntimo silêncio de si próprio, onde fenece a chama criativa dos anos vinte e trinta, pouco fala do que escreve. Toca-lhe a dor e o desespero que caracterizam os versos do seu drama mas falta-lhe a voz da sedução e a capacidade em provocar emoções violentas e profundas como fora o caso da “Polémica das Canções” que arrebatou a intelectualidade lisboeta nos idos anos vinte. Todavia, de 1958 data uma introdução ao livro Mastros do meu Navio, que não chegou a publicar, aproveitando-a em Ainda não se Escreveu, obra póstuma cujo original enviou para as Edições Ática, em Lisboa, pouco tempo antes de falecer e onde acabará por ser editada. «Depois de onze anos ausente da minha Pátria, sem publicar, sequer, uma única obra inédita, apareço finalmente. A mim, meteram-me numa cova rasa, e puseram este letreiro para quem passasse e olhasse: - morreu de vez. Porém ressuscitei, não ao terceiro dia, como o Deus que nos faltava, mas ao cabo de onze anos (..)». Mais valia que não tivesse ressuscitado este escritor a quem a doença foi minando o talento, fragmentando o tempo e o verso sem epopeia e sem arte. Na mente do poeta interceptam-se segmentos rápidos de memórias, esfumam-se no espaço rostos de amigos, lides literárias, tertúlias, conferências, bastidores de teatros, dislates de conservadores e provocações que criaram escândalos. Anjos anunciadores de recordações passam acenando-lhe gestos simples de amor e amizade. Muito embora António Botto sinta nos seus amigos brasileiros carinho e manifesto calor humano percebe que a sua realidade se tornou fugidia como uma pena levada pela maré nos mares de Iemanjá.
(continua)
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As Canções de António Botto
Dandismo
(Poema nº 16 – pag. 123 – nova edição Livraria Bertrand 1956)
Anda um ai na minha vida
Que me lembra a cada passo
A distância que separa
O que eu digo do que eu faço
Quem mo deu
- Partiu! …
Deixou-me na agrura
Interminável e fria
De ter de o guardar
Como único recurso
De poder viver ainda …
Anda um ai na minha vida,
Como lágrima que passa,
Que passa, - mas que não finda.
Dizê-lo? – nada lucrava.
Guardá-lo? – morro a senti-lo,
Anda um ai na minha vida
Que me lembra a cada passo
A distância que separa
O que eu digo do que eu faço.
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Os Últimos Anos de Infortúnio
(continuação)
O Brasil que lhe ofereceu glórias não lhe poupou desgraças. Humanamente o poeta esquece as primeiras e enreda-se na malha das segundas. Na sua psique fragilizada acumulam-se recalcamentos que alivia em apontamentos escritos sobre o país escolhido para emigrar. No diário, entre 13 de Outubro e 23 de Novembro de 1958, talvez num dos mais tristes momentos da sua vida, António Botto não poupa comentários críticos e depreciativos em impressões avulsas, na maioria telegráficas, indicando pessoas, marcas, coisas, observações da vida corrente, estabelecendo o contraponto entre a nação rica e «a miséria [que] é o pão de cada dia». A sua realidade conjugada com um envolvimento social difícil deprime a ponto de proclamar a revolta interior de forma algo violenta: «Levanta-te Rei D. João VI, e vem presenciar este novo campo de concentração para os que trabalham. Os outros, os magnates, esses arrastam correntes de ouro pelas ruas da capital desprezada, cheia de lixo e covas onde se podem enterrar os pobres» (BNL- espólio de AB – cota E 12/63).
Botto foi sempre um homem sensível à miséria social, provavelmente pela vincada memória das suas origens sobre as quais podia mentir mas não se podia furtar. Em muitos dos seus poemas e outros textos encontramos solidariedade com a dor e infelicidade alheias. Creio que foi sincero no desgosto perante o drama dos outros onde integrava também o seu. A realidade dos que labutavam no charco da ignorância e da pobreza entristecia-o, pelo que não deixou de se emocionar com o destino daqueles que viviam no limbo do sacrifício. Daqui deriva, certamente, a imagem de um Brasil «árido [onde], a hostilidade é o brazão sem nobreza deste país condenado pela política» (BNL-espólio de AB-cota E 12/163). Não obstante ser política qualquer crítica social (mesmo a sua), o lusitano poeta declarava-se «visceralmente anti-política», pois dizia: «…De resto não sou um político: sou um poeta» (Revista da Semana), o que não o impediu de escrever, provavelmente em 1954, durante o levantamento popular na Hungria, o Poema aos Estados Unidos da América sem Política Nenhuma (inédito dactilografado no espólio), de gosto duvidoso mas suficiente para concluir que o seu autor era manifestamente anti-estalinista e anti-comunista. E não serão por acaso políticas as duas cartas escritas a Salazar? Remetida a primeira, ainda em 1958, da Almirante Alexandrino, felicitas o ditador pelo aniversário que ocorrerá em 27 de Abril, informando-o que o teu maior desejo seria estar em Lisboa nessa data para poderes «apertar a sua mão comovido e feliz».Um caso de idolatria, para não dizer bajulação, a repetir-se na segunda, datada de 2 de Fevereiro de 1959, em que manifestas a tua veneração de sempre para com o ditador, «Agora que esse caso deploravelmente lamentável do sr. General Humberto Delgado deixou de andar nas notícias de jornais, todos os dias, como oposição que foi (…)». Para quem era «visceralmente anti-política» tornava-se evidente que a política não te era de todo indiferente, ou pelo menos um certo tipo de personalidades políticas, como se deduz pela desconfortável leitura das duas cartas carregadas de elogios. Estes serão, contudo, pecados menores ditados pelo exagero que punhas nas palavras e atitudes como se representasses em palco a figura de António Botto por ti próprio. Este exercício de um salazarismo servil, jamais manifestado enquanto viveste em Portugal, só encontra explicação no desejo secreto que acalentavas de regressar à pátria. Salazar nunca te respondeu. Salazar não gostava de ti.
O caso da tua exoneração compulsiva da função pública foi disso significativo embora o inquérito oficial tenha englobado sete funcionários, entre os quais três senhoras. Na altura (1942) eras 1º escriturário de 2ª classe do Arquivo Geral do Registo Criminal e Policial e foste acusado de “Não manter na repartição a devida compostura e aprumo, dirigindo galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega, denunciando tendências condenadas pela moral social; Fazer versos e recitá-los durante as horas regulamentares do funcionamento da repartição (…)”. Publicado o resultado do processo no Diário do Governo Botto vem para a rua e passou a vangloriar-se publicamente de ser o primeiro pederasta português com direito a reconhecimento oficial, chegando a mandar imprimir cartões de visita com tal classificação. A sobranceria sarcástica do autor de Ciúme acerca da deliberação que o atinge esconde um presumível ressentimento sobre a decisão pública, a qual terá efeito devastador na sua vida. A nova ordem jesuítica do salazarismo nunca lhe perdoou a personalidade arrevesada e provocatória atacada por muitos mas também defendida como forma de salvar o poeta e a sua obra da onde de hipocrisia moralista.
Na prática colegas de letras afastaram-se, ou cortaram relações, com António Botto devido ao seu homossexualismo e feitio maledicente origem de sérios dissabores de que o período do Brasil não foi excepção. Queixava-se, por isso, de ser esquecido pelos amigos, não ser acarinhado como sentia merecer, do infortúnio que o atingia ao ponto de considerar que «a perseguição [entrara consigo] no barco». A estiagem da sua carreira literária e a arquitectura de fantasias roubam-lhe lucidez pois classifica-se figura ilustre à qual a Colónia Portuguesa não presta homenagem, antes lhe torpedeia os lugares que tem nos jornais Mundo Português, Voz de Portugal e Globo. Na realidade todos são culpados das suas desgraças e ele o único inocente, como podemos ler em registo inédito: «Acabo este livro de impressões sobre o Brasil, pedindo uma indemnização ao Império da Banana porque vim iludido com as falsas reportagens de tanto cretino comprado para as fazer. Indemnização pela neurastenia., pela perda da saúde, pelos aborrecimentos, pela perda da vontade pela vida, e pela soma de infâmias que pretenderam com a semente da inveja manchar o meu nome limpo de artista, de Homem e de Poeta» (sic) (BNL-espólio da AB- cota E12/174).
Estes desabafos fortemente ditados pela amargura de situações desesperadas não correspondem literalmente à verdade. António Botto sentia prazer em lamentar-se pelas desatenções de que era vítima esquecendo-se que imensas vezes as motivava. Não obstante, são incontroversas as provas de constante e verdadeira amizade de muitos portugueses e brasileiros ali radicados. Rodearam-no de atenções, proporcionaram-lhe oportunidades, ajudaram-no moral e materialmente impedindo a sua queda total. Mesmo nos piores momentos, apesar de Botto nada de relevante ter acrescentado à sua obra publicada em Portugal, desfrutou de condigna posição entre a intelectualidade brasileira e destaque na imprensa como se verifica no noticiário do seu internamento na Beneficência Portuguesa e depois nas circunstâncias da sua morte.
(continua)
Em cima: Retrato de António Botto por Almada Negreiros
Damos hoje início a uma pequena antologia de poemas de António Botto:
Canção Mutilada
A tarde cai amaciando a terra,
E enchendo-a de miragens tentadoras
Enquanto o sol,
Nos últimos alentos,
Se prende aos galhos de um arbusto
Que, ressequido, à beira de uma ermida,
Parece o próprio símbolo da vida.
De enxada ao ombro, alguns trabalhadores,
Pisam o pó e as pedras dos caminhos
- Como bandeiras humanas
Movidas pelo infortúnio,
Sem alegria, sórdidos, curvados,
Mas enormes no seu frémito de luta!
Ah!, nem a Morte quer os homens
Quando eles são desgraçados!
As estrelas lá, no alto,
Riscam cintilantes brilhos.
E em bandos –
Os maltrapilhos,
Silenciosos e ateus,
Zombam do Amor
E até de Deus!
A miséria
Quando atola
O homem nos seus negros labirintos,
Dá-lhe, também, a loucura
Dos mais trágicos instintos …
Agora, neste momento,
A noite –
É uma imensa realidade …
E eu julgo ver a Justiça
Afundar-se na penumbra
Da sua inútil verdade.
NOTA - Este poema de A. Botto é datado de 1936 e vem incluído no livro “Imagens do Alentejo”, da colecção “Amanhã”, que era dirigida por Henrique Zarco e o livro de sua autoria. A obra foi editada em 1936 e Botto foi convidado a fazer o poema.
Últimos Anos de Infortúnio
(continuação)
O regresso ao Rio de Janeiro é rápido, o trajecto é curto e os bens do casal são apenas restos esfarrapados da triste estadia em Niteroi. Não há jornalistas à espera do poeta mas ainda tem amigos que o aplaudem numa visita à Academia Brasileira de Letras, em Julho de 1955, recebido pelos académicos e pelo presidente Paulo de Medeyros, em sessão especial onde declama com a inconfundível classe do seu talento. Fazia praticamente um ano que a vida política sofrera o forte abalo do suicídio de Getúlio Vargas a quem sucede João Café Filho, impotente político para proceder à limpeza do «mar de lama do Catete», como dizia. Mas também António Botto não irá ter tempos fáceis, como eu sei, mas ele desconhece, que se encontra suspenso num ângulo da vida definitivo e dramático. Infelizmente jamais retornará à sua poesia da amargura da transitoriedade da beleza e do amor, duas coisas nele associadas. Mais do que a qualquer outro ter-lhe-á sido difícil suportar a carga dos anos e a decadência do corpo a quem rendera o culto da beleza. Entre outros dramas este não terá sido o menor no último quartel da vida.
João Café Filho
Tem-se escrito que na última fase do período brasileiro António Botto terá percorrido no Rio de Janeiro os caminhos da miséria a ponto de vender poemas seus, à porta dos botequins, a vinte cruzeiros para seu sustento e da mulher. Os dramas de um poeta dão sempre jeito a fim de ajudarem a construir o mito. Neste caso nada prova que Botto tenha sido um mártir, o próprio chega a desmentir e repudiar qualquer situação de indigência mesmo temporária. Beatriz Costa declara, vagamente, que «andou por lá mal» (revista “Marie Claire”, Lisboa 1993) e o jornalista Miranda Mendes afirma, a propósito, que «por ali andou aos tombos (“Um Poeta na Vida” – Diário de Notícias, Página Literária, Lisboa 23.03.1959). Impecável no seu casaco de linho modestíssimo, na camisa muito branca - sempre os mesmos, porque não tinha outros -, cheio de fome e a disfarçá-la com uma dignidade altiva e triste, recitava há anos no Rio de Janeiro, terra da sua aventura e desventura, alguns dos melhores versos que jamais se fizeram em língua portuguesa” (idem, idem). É óbvio o toque literário do texto de Miranda Mendes, aliás justificado pelo momento em que foi escrito (1959). No entanto, será bom lembrar, foi exactamente no ano de 1955 que António Botto fez uma nova edição do seu livro Fátima, Poema do Mundo, gravada com a chancela de D. Manuel Gonçalves Cerejeira num gesto de amizade que o Cardeal Patriarca de Lisboa já tivera para com O Livro das Crianças.
Fátima foi um êxito, de modo algum revelador de qualidade literária. Quanto a mim, a pior obra de toda a bibliografia do poeta. No quadro da sua poesia representa um livro de oportunidade embora aliado ao seu sincero espírito religioso. António escreveu a primeira versão logo em 1917, ano das aparições, vinte folhas bem diferentes do trabalho publicado. Encontramos em 1945 uma outra versão com notas para a tipografia, mas só em 27 de Junho de 1946 obtém o imprimatur cardinalício, ano em que regista a primeira edição do poema em livro, com foto em preto e branco da imagem de Nossa Senhora de Fátima e a seguinte inscrição na folha de frontispício: «Primeira edição extraordinária de quarenta mil volumes numerada e assinada pelo autor a fim de solenizar a entrega de uma cópia da imagem de Nossa Senhora do Rosário às autoridades eclesiásticas do Rio de Janeiro por ocasião do 30º Congresso Eucarístico do Rio de Janeiro» (sic). No verso da página, além da assinatura do autor e número do exemplar, imprimiu-se a data de 13 de Maio de 1946, Lisboa, Portugal, o que não exclui a hipótese da edição ter sido realizada exclusivamente para o Brasil. Onze anos mais tarde, com nova capa, agora para o 36º Congresso Eucarístico de 1955, o autor junta o seu poema Cântico da Alma Brasileira, explicando: «Neste volume publica-se este poema inédito a pedido de milhares de pessoas que o ouviram recitado pelo seu autor, em programas realizados nas estações de Rádio Bandeirante, Cultura e Recorde de São Paulo». A publicação desta nova edição de Fátima, Poema do Mundo, naquele momento, leva-me a admitir que foram as circunstâncias e dificuldades a imporem um “desfuncionamento” que justifica a reedição de versos como estes: [pergunta Nossa Senhora aos pastorinhos] - «Carinhas abençoadas, / Na doçura de me ouvirem, / Que até parece que são feitas / Do mel saboroso que há no figo, / Compreendeis o que vos digo?». Ou ainda outro passo: «Pastorinho és meu amigo? / Dizes-me que sim, abanando / Afirmativamente, / Essa redondinha cabecinha, / E as faces ficam a corar / De envergonhadinho, não?». O tema, o momento e o prestígio do autor terão ajudado a vender os 40.000 exemplares da primeira edição e outros tantos da segunda, proporcionando certamente um razoável nível de direitos. A leitura deste livro torna-se penosa, constrangedora e triste tal é o malogro artístico e poético daquele que fora o autor de Canções. Chegamos ao fim aflitos e angustiados pelo rudimentar exercício de inferior qualidade a que fomos submetidos e que de certo modo vinha ao encontro das críticas negativas que ele já tivera à sua poesia nos tempos de Lisboa.
(Continua)
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Ouçamos agora os "Penicos de Ouro", interpretando uma canção com letra de António Botto. (João Lima: guitarra portuguesa e voz; André Louro: composição, guitarra e voz;Catarina Santana: ukulélé e voz;Eduardo Jordão: contrabaixo e voz).
As Espessas Nuvens de Niteroi
(continuação)
O ano de 1954 será de profunda mudança na vida do autor de Nove de Abril, começando com a carta que o consulado de Portugal no Rio de Janeiro, ainda lhe envia para a morada de Vila Violeta, em Niterói, a convocá-lo para comparecer na sede da chancelaria (Rua Teófilo Otini, nº 4 -2º), no dia 21 de Março de 1954, «a fim de tratar da sua repatriação e de D. Carminda conforme solicitou». A questão estaria oficialmente bem encaminhada se o casal tivesse dinheiro para regressar, mas não tinha, pelo que é feita uma subscrição com o objectivo de reunir fundos. Contrariamente ao que o poeta diz num documento, a subscrição não foi oficial tendo partido da iniciativa particular do vice-cônsul João José Diniz. Várias pessoas e instituições contribuíram pois no espólio há um registo de nomes e quantias (que desconheço se é a totalidade), perfazendo insuficientes 37.000 cruzeiros. Uma coisa é certa, o poeta não regressou e do dinheiro não se regista caminho levado. Esta situação falhada e o penoso capítulo de Vila Violeta, acabam por empurrar o casal a abandonar a Casa Três, o tal “palácio” que o poeta elogiara, regressando ao roteiro dos hotéis manhosos, agora o Greogotá, instalado num edifício degradado, será vítima de uma derrocada parcial provocada pela chuva. Em Setembro de 1954 o casal regressa definitivamente ao Rio de Janeiro, pois em Dezembro uma carta de João Sassetti, sobre os direitos de autor das canções de Gado Bravo, já é endereçada para aquela cidade (o problema das canções de “Gado Bravo” já vinha em discussão desde Lisboa devido a adulteração de letras sem autorização do autor. Só nesta altura, 1954, acabou por ficar resolvido).
O salto a Niterói, que começara envolvido em esperança, chegava ao fim marcado pelo desalento e pela pobreza.
Após a falhada tentativa de regresso a Portugal a hipótese foi colocada definitivamente de parte. Em termos literários e sociais tem a consciência de que Portugal já lhe dera o que podia. Se alguma dívida se mantém em aberto são as honras do país para consigo. O poeta jamais se interrogou sobre a queda do seu prestígio, isso seria admitir o princípio de uma humildade de que era desprovido. Toma conta dos poucos haveres e volta novamente ao Rio para representar o último acto num palco literário onde, qual Fénix, Botto renascerá das cinzas a acreditar nas notícias encumeásticas do Jornal do Comércio, em Janeiro de 1953: «É, o sr. António Botto o maior poeta português contemporâneo (...). O seu génio pertence a uma obra vasta de genialidade, de ritmos poderosos que são apenas seus. Ilumina a inteligência do leitor. Cativa-o, surpreende, encanta e fica na lembrança inesquecível de quantos o sabem compreender e sentir».
Desconheço se Fernando Pessoa levantou a tua carta do céu, mas sendo amigo admito-o, explicando-te que o sol marcava o horóscopo no signo de Leão visto teres nascido em 17 de Agosto de 1897. Não era o que dizias pois sempre roubavas dois ou quatro anos lançando a confusão nos espíritos. Mas foi a 17 às oito horas da manhã, meu poeta, com bons aspectos indiciando capacidade criativa, sucesso literário, auto-afirmação. Porém, Pessoa, não terá deixado de advertir para aspectos desfavoráveis de narcisismo, ego desmesurado, mitomania e exibicionismo. Uma “doença” a agravar-se desde Lisboa nos anos trinta, obrigando-te a viver acorrentado à idolatria de ti próprio, incapaz de aceitar os limites literários de um percurso com a atitude de quem, embora reconhecendo o seu talento, não consegue evitar que este o devore pela vaidade, mas não só…
Os estigmas colam-se ao corpo, agarram-se à imagem e perseguem-na através do tempo fazendo, por vezes, de um sujeito vulgar uma personalidade destacada e outras exactamente o inverso. A tua homossexualidade assumida, versejada, afirmada, literariamente enriquecida, foi uma manifestação de carácter não só socialmente imperdoável como, por isso mesmo, “condenável”. Ficou-te colada à pele, ao nome e à obra de tal modo que ainda hoje, apesar da evolução, não te conseguiste divorciar dessa marca quando se fala de ti. Pela tua parte, não é menos certo, praticaste a possível ostentação. Não escondias nem disfarçavas, antes assumias, e dessa postura acabaste vítima de estórias anedóticas e cruéis como a que Ricardo de Araújo Pereira transcreve (JL – Jornal de Artes Letras e Ideias – “No Rasto do Poeta”, nº 699,pág.21, 30.07.97), segundo relato de Moitinho de Almeida: «O Pessoa era um gozão. Contava, por exemplo, que um dia, um amigo do Botto, encontrando-o de braço dado com um marinheiro, numa Sexta-Feira Santa, disse-lhe: “António, parece impossível. Comer carne na Sexta-Feira Santa!” Ao que Botto respondeu (e aqui Pessoa aflautava a voz): “Mas não é carne. É peixe.”». Passe a caricatura, uma entre muitas e algumas conhecias, este foi um comportamento que não ocultaste nem mesmo a Carminda quando ela desejou viver em tua companhia. Foste sério, corajoso, leal, varreste a hipocrisia. Todavia não foi só isso o que te perseguiu, talvez mais do que isso o teu carácter, essa personalidade faminta de sucesso, esse drama interior de glória impeditivo da paz de espírito ajudou a criar à tua volta certo ambiente hostil.
À medida que te venho acompanhando compreendo melhor toda a tua complexidade, ou seja, as tuas fraquezas como as tuas forças escondidas sob o folclore exterior da frivolidade. Sei que te comoveste com a dor alheia, que cultivaste a amizade, que na solidão do infortúnio procuraste minorar o desespero da tua mulher. Agora que o capítulo de Niteroi, que começou radiante, chega ao fim marcado pelo desalento e pela pobreza, verifico quanto é vulnerável o nosso destino. O teu António, na minha visão, acaba por ser o de uma personagem de romance que procura na tragédia o sentido da vida.
(Continua)
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Hoje vamos ouvir um ensaio de Blandino & Sara Luz . É uma versão muito diferente da mesma "Canção 6" que ouvimos a Mariza sob o título "Os
anéis do meu cabelo".
(Continuação)
As Espessas Nuvens de Niteroi
Botto dedica-se, mais pragmaticamente, a equilibrar a situação financeira ou mesmo a revertê-la com solidez, pelo que em Agosto de 1953 o poeta está envolvido num negócio de barcos, segundo carta datada de Niterói, endereçada ao «grande industrial» Adão Pacheco Polónia para a Avenida Serpa Pinto em Matosinhos. Na realidade Polónia seria proprietário de dois barcos de pesca que pretendia vender para o Brasil através da intermediação de António Botto que trabalhou, de facto, para que o objectivo se concretizasse. Na correspondência que trava com o industrial chega a informá-lo também da iniciativa literária de altas figuras que estariam a organizar um recital em sua homenagem, para Outubro de 1953, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Indica os nomes de Pedro Calmon (reitor da Universidade do Rio de Janeiro), Martinho Nobre de Mello (embaixador de Portugal), Henriette Marineau, Maria Sampaio, Beatriz Costa, Dulcina de Morais e João Villaret. O negócio dos barcos não deixa de prosseguir e o poeta, transformado em agente comercial, desdobra-se em contactos e diligências pois a serem vendidos os barcos a comissão dar-lhe-ia, certamente, para vida de nababo durante um tempo. Infelizmente teve azar. Adão Polónia, que chegou a deslocar-se ao Rio de Janeiro, acabou por não concretizar o negócio visto que os brasileiros queriam os barcos mas também o proprietário a fim de trabalhar com eles.
Na Vila Violeta agudizam-se as más relações num processo de desgaste que irá arrastar-se por mais de um ano. Circunstâncias não totalmente esclarecidas dão conta que provocações e insultos que se repetem amiúde, chegando à agressão. A vida torna-se infernal e a saúde do poeta começa a dar sinais de perturbação. Carminda suporta com paciência e espírito de sacrifício representado pela sua imagem de mulher franzina permanentemente envolta em pobres roupas negras. Botto, pelo contrário, não está disposto a suportar ostensivos desmandos dos vizinhos sobre a sua pessoa pelo que apresenta queixas na polícia sem qualquer resultado prático. Os dias tornam-se amargos, mas aguentam-se dado que no fim do ano de 1952 um jornal ainda mandava a correspondência para a Casa Três de Vila Violeta.
O alojamento no Brasil foi sempre fonte de múltiplos problemas, obrigando o poeta a uma vida de nómada de hotel em hotel, casa em casa, fosse por razões de rendas em atraso ou conflitos com vizinhos e senhorios. Casos de comprovada culpa sua, outros nem tanto. Os relatos deixados, queixas, lamentações, permitem admitir que António Botto também foi vítima de descriminação homossexual correndo a via de um calvário que contribuiu para o agravamento da sua saúde.
Desgastado por todos estes desatinos em Abril de 1954 dá entrada no Hospital Municipal António Pedro. Os crónicos problemas de garganta tornam-se graves, forte hipertensão e também queixas renais. Efectivamente fica internado, mas no dia 26 de Abril pede alta a fim de ir receber 28.000 cruzeiros que o Instituto Nacional do Livro lhe devia há treze meses. O médico assistente, Dr. Almerindo Lisboa, com relutância concede-lhe a alta por duas ou três semanas. Contacta o director do instituto, Augusto Meyer, que só consegue obter 9.000 cruzeiros prometendo o resto uma semana depois sem resultado. Regressa a casa, entretanto assaltada, e vê-se confrontado com uma ordem de despejo pelo que o hospital fica para melhor oportunidade. «Em casa à 1.30 da madrugada. Extropiado e sem dinheiro, deitámo-nos para morrer de aborrecimento por tanta falta de humanidade»(sic), é um apontamento que ilustra como a situação se tornara de tal modo angustiante que admite regressar a Portugal.
O poeta está sofrido e dorido. Sente-se maltratado, injustiçado, resistindo a dificuldades que transformam os dias num tormento. O dinheiro evapora-se nas suas mãos como mais tarde viria a reconhecer num desabafo: «Muito dinheiro me tem aparecido depois que vim para o Brasil, ganho com o meu trabalho, mas como vem desaparece». «Neste três anos devo apenas uns trezentos mil cruzeiros porque passámos muita fome» (20.05.1954). Se considerarmos o trabalho desempenhado, as diversas oportunidades criadas, a indemnização ganha em tribunal bem como a parte jornalística, reconhecemos que, pelo menos, terá ganho dinheiro suficiente para uma vida bastante satisfatória. Todavia, a sua relação distante e desinteressada com o dinheiro, a que não terá sido alheia a homossexualidade, fazia-o desperdiçado à nascença. Desde as condições de saúde às financeiras; das literárias onde não encontra bálsamo às humanas, Botto começa a acumular frustrações e tristezas d’alma. O pensamento em voltar à pátria torna-se natural como é natural, em muitos dos seus apontamentos e registos soltos, que o Brasil saia mal no retrato. Embora mostre estima e gratidão pelas pessoas que o ajudaram (e que o irão ajudar na sua dolorosa descida às amarguras de um triste destino), o vinco colectivo que nos deixa dos brasileiros é o da amizade fácil mas falsa, isto é, prometem, mostram-se prestáveis, mas não fazem nada na hora da prova real.
(Continua)
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"Se me deixares, eu digo", um poema de António Botto, musicado e interpretado pelos «Xicara» que vemos e ouvimos aqui numa sessão de gravação.
(Continuação)
A vida brasileira de António Botto é pouco conhecida. Melhor dizendo, era praticamente desconhecida até à colocação do seu espólio à consulta pública na Biblioteca Nacional de Lisboa, no final dos anos noventa. A partir de São Paulo perdia-se bastante o rasto tanto pessoal como intelectual. Sabia-se, e confirma-se, que não foi fácil e algumas vezes recorreu a amigos para a sua subsistência. A Beatriz Costa, o doutor Neves Fontoura, o advogado Paulo da Cunha Rabello e outros auxiliaram com empréstimos que Botto nem sempre pagava porque entendia ser uma distinção. No dizer de Beatriz Costa, «Botto era um homem estranho. Achava que o que ele pedia era dar-nos uma honra, não nos ficava a dever nada». Este espírito de príncipe associado a uma postura com tanto de generosa como mexeriqueira, permitiu que se afirmasse sobre o seu carácter e temperamento as maiores barbaridades criando a imagem de um indivíduo incapaz de um relacionamento saudável com os outros, estigma que perdura sobre a vida brasileira do poeta mesmo desconhecendo-se os pormenores. Hoje, felizmente, podemos reconstituir muitos dos seus amargos passos a partir de São Paulo.
No seu regresso ao Rio de Janeiro, em 1951, onde em Julho vamos encontrá-lo com Carminda hospedados no Hotel Atalaia, na Avenida de Copacabana, nº 256, ocupando o quarto 45 e depois o 54, procura refazer a vida retomando contactos e colaborações jornalísticas, lançando mão de diversos trabalhos de desenho para construções a coberto da sua auto designada condição de engenheiro-arquitecto que lhe confere a autoria de uma moradia do tipo “casa popular”, para “madame” Lucy Teixeira da Silva Schopke, conforme escreve aquele que deduzi ser o empreiteiro da obra, Isaías João Costa, quando assina um vale de 4.000 cruzeiros «por conta do encontro nos lucros de 50%».
Efectivamente, o desenho foi uma das faculdades que desenvolveu permitindo-lhe a realização de exposições e a realização de projectos de moradias e outros. Vendo bem, acabou por ser o desenho que esteve na origem de uma mudança profunda na sua vida. Será aquela profissão “desencartada” (engenheiro-arquitecto), e não a de poeta “encartado”, a determinar uma viragem inesperada ao ser contratado, com documento assinado e reconhecido no tabelião, para trabalhar em Niterói como supervisor de construções da Companhia Territorial Itaipu. No final de 1951, ou logo no início de 1952, assenta residência naquela cidade que lhe reservava um período agitado, ou seja, o verdadeiro começo infeliz da experiência brasileira.
O novo estatuto profissional não impede a actividade literária. Logo que chega a Niteroi trata de se apresentar nos jornais da cidade, em visitas de cumprimentos, acompanhado por dois influentes amigos e pela sua fidelíssima mulher que o segue para todo o lado sem que isso o incomode. Assim, passa a garantir colaboração efectiva e remunerada na imprensa a par das récitas, sessões de autógrafos e conferências sobre escritores, ou a organização de um festival de poesia no Teatro Municipal João Caetano.
Hoje, vamos ouvir Carlos Mendes cantar "Não me Peças", poema de António Botto musicado pelo cantor:
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