Boaventura de Sousa Santos Um Discurso Sobre as Ciências (8)
(Continuação)
Acontecimentos simultâneos num sistema de referência não são simultâneos noutro sistema de referência. As leis da física e da geometria assentam em medições locais. “Os instrumentos de medida, sejam relógios ou metros, não têm magnitudes independentes, ajustam-se ao campo métrico do espaço, a estrutura do qual se manifesta mais claramente nos raios de luz" (24).
0 carácter local das medições e, portanto, do rigor do conhecimento que com base nelas se obtém, vai inspirar o surgimento da segunda condição teórica da crise do paradigma dominante, a mecânica quântica. Se Einstein relativizou o rigor das leis de Newton no domínio da astrofísica, a mecânica quântica fê-lo no domínio da microfísica. Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível observar ou medir um objecto sem interferir nele,
sem o alterar, e a tal ponto que o objecto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou.
Como ilustra Wigner, “a medição da curvatura do espaço causada por uma partícula não pode ser levada a cabo sem criar novos campos que são biliões de vezes maiores que o campo sob investigação” (25). A ideia de que
não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não conhecemos do real senão a nossa intervenção nele, está bem expressa no princípio da incertezade Heisenberg: não se podem reduzir simultaneamente os erros da medição da velocidade e da posição das partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das medições aumenta o erro da outra (26). Este princípio, e, portanto, a demonstração da interferência estrutural do sujeito no objecto observado, tem implicações de vulto. Por um lado, sendo estruturalmente limitado o rigor do nosso conhecimento, só podemos aspirar a resultados aproximados e por isso as leis da física são tão-só probabilísticas. Por outro lado, a hipótese do determinismo mecanicista é inviabilizada uma vez que a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que a dividimos para observar e medir. Por último, a distinção sujeito/objecto é muito mais complexa do que à primeira vista pode parecer. A distinção perde os seus contornos dicotómicos e assume a forma de um continuum.
0 rigor da medição posto em causa pela mecânica quântica será ainda mais profundamente abalado se se questionar o rigor do veículo formal em que a medição é expressa, ou seja, o rigor da matemática. É isso o que sucede com as investigações de Gödel e que por essa razão considero serem a terceira condição da crise do paradigma. O teorema da incompletude (ou do não completamento) e os teoremas sobre a impossibilidade, em
certas circunstâncias, de encontrar dentro de um dado sistema formal a prova da sua consistência vieram mostrar que, mesmo seguindo à risca as regras da lógica matemática, é possível formular proposições indecidíveis, proposições que se não podem demonstrar nem refutar, sendo que uma dessas proposições é precisamente a que postula o carácter não-contraditório do sistema (27). Se as leis da natureza fundamentam o seu rigor no rigor das formalizações matemáticas em que se expressam, as investigações de Gödel vêm demonstrar que o rigor da matemática carece ele próprio de fundamento. A partir daqui é possível não só questionar o rigor da matemática como também redefini-lo enquanto forma de rigor que se opõe a outras formas de rigor alternativo, uma forma de rigor cujas condições de êxito na ciência moderna não podem continuar a ser concebidas como naturais e óbvias. A própria filosofia da matemática, sobretudo a que incide sobre a experiência matemática, tem vindo a problematizar criativamente estes temas e reconhece hoje que o rigor matemático, como qualquer outra forma de rigor, assenta num critério de selectividade e que, como tal, tem um lado construtivo e um lado destrutivo.
A quarta condição teórica da crise do paradigma newtoniano é constituída pelos avanços do conhecimento nos domínios da microfísica, da química e da biologia nos últimos vinte anos.
24 H. Reichenbach, ob. cit.. p. 68.
25 E. Wigner, ob. cit.. p. 7.
26 W. Heisenberg, A Imagem da Natureza na Física Moderna. Lisboa, Livros do Brasil, s/d.; W. Heisenberg, Physics and Beyond. Londres, Allen and Unwin, 1971.
27 O impacto dos teoremas de Gödel na filosofia da ciência tem sido diversamente avaliado. Cfr., por exemplo, J. Ladrière, “Les Limites de la Formalization", in J. Piaget (org.), Logique et Connaissance Scientifique. Paris, Gallimard, 1967, pp. 312 e ss; R. Jones, Physics as Metaphor. Nova Iorque, New American Library, 1982, p. 158; J. Parain-Vial, Philosophie des Sciences de la Nature. Tendances Nouvelles. Paris, Klincksieck, 1983, pp.52 e 55; R. Thom, Parábolas e Catástrofes. Lisboa, D.Quixote, 1985, p. 36; J. Briggs e F. D. Peat, Looking Glass Universe. The Emerging Science of Wholeness. Londres, Fontana, 1985, p.22.
(Continua)
Boaventura de Sousa Santos Um Discurso Sobre As Ciências (4)
(Continuação)
O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objecto são, por assim dizer,desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou. Já em Descartes uma dasregras do Método consiste precisamente em “dividir cada uma das dificuldades...em tantas parcelas quanto for possível e requerido para melhor as resolver"(11). A divisão primordial é a que distingue entre “condições iniciais” e “leis da natureza”. As condições iniciais são o reino da complicação, do acidente e onde é necessário seleccionar as que estabelecem as condições relevantes dos factos a observar; as leis da natureza são o reino da simplicidade e da regularidade onde é possível observar e medir com rigor. Esta distinção entre condições iniciais e leis da natureza nada tem de “natural”. Como bem observa Eugene Wigner, é mesmo completamente arbitrária(12). No entanto, é nela que assenta toda a ciência moderna.
A natureza teórica do conhecimento científico decorre dos pressupostos epistemológicos e das regras metodológicas já referidas. É um conhecimento causal que aspira a formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenómenos. A descoberta das leis da natureza assenta, por um lado, e como já se referiu, no isolamento das condições iniciais relevantes (por exemplo, no caso da queda dos corpos, a posição inicial e a velocidade do corpo em queda) e, por outro lado, no pressuposto de que o resultado se produzirá independentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condições iniciais. Por outras palavras, a descoberta das leis da natureza assenta no princípio de que a posição absoluta e o tempo absoluto nunca são condições iniciais relevantes. Este princípio é, segundo Wigner, o mais importante teorema da invariância na física clássica(13).
As leis, enquanto categorias de inteligibilidade, repousam num conceito de causalidade escolhido, não arbitrariamente, entre os oferecidos pela física aristotélica. Aristóteles distingue quatro tipos de causa: a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final. As leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como funciona das coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. É por esta via que o conhecimento científico rompe com o conhecimento do senso comum que, enquanto no senso comum, e portanto no conhecimento prático em que ele se traduz, a causa e a intenção convivem sem problemas, na ciência a determinação da causa formal obtém-se com a expulsão da intenção. É este tipo de causa formal que permite prever e, portanto, intervir no real e que, em última instância, permite à ciência moderna responder à pergunta sobre os fundamentos do seu rigor e da sua verdade com o elenco dos seus êxitos na manipulação e na transformação do real.
Um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto metateórico a ideia de ordem e de estabilidade do mundo, a ideia de que o passado se repete no futuro. Segundo a mecânica newtoniana, o
mundo da matéria é uma máquina cujas operações se podem determinar exactamente por meio de leis físicas e atemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua decomposição nos elementos que o constituem. Esta ideia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que se vai transformar na grande hipótese universal da época moderna, o mecanicismo. Pode parecer surpreendente e até paradoxal que uma forma de conhecimento, assente numa tal visão do mundo, tenha vindo a constituir um dos pilares da ideia de progresso que ganha corpo no pensamento europeu a partir do século XVIII e que é o grande sinal intelectual da ascensão da burguesia(14). Mas a verdade é que a ordem e a estabilidade do mundo são a pré-condição da transformação tecnológica do real.
11 Descartes, ob. cit..
p. 17.
12 E. Wigner, Symmetries and
Reflections. Scientific Essays. Cambridge, Cambridge University Press,
1970, p. 3.
13 E. Wigner, ob. cit.. p. 226.
14 Cfr., entre muitos, S. Pollard, The
Idea of Progress. Londres, Penguin,
1971, p. 39.
(Continua)
Texto enviado pela Ethel Feldman
Desmercadorizar é um imperativo incontornável na busca de uma sociedade melhor. Sobrepostas às crises financeira, económica e social que acompanham o capitalismo desde o seu início, as crises ecológica, energética e alimentar vieram conferir um grau de convicção maior a algumas constatações que até agora não tinham merecido a atenção do cidadão comum. Eis algumas dessas constatações.
Primeiro, conceber o desenvolvimento como crescimento infinito assente na apropriação intensa da natureza é uma conceção que nos conduz ao desastre. A natureza está a dar múltiplos sinais de que os seus ciclos de regeneração vital têm vindo a ser violados muito para além do que é sustentável. A natureza aguenta bem o uso por parte dos humanos mas não o abuso. O planeta não é inesgotável. O estilo de vida nos países desenvolvidos é energívoro e submete as energias não renováveis a uma pressão insustentável.
Segundo, a redução do bem-estar ao bem-estar material, baseado no consumo de bens disponíveis no mercado, deixa de lado muitas dimensões da vida (a espiritualidade, o cuidado, a solidariedade, os valores éticos) essenciais ao florescimento humano. Tornam-se necessários outros indicadores de bem-estar.
Soa hoje menos absurda ou exótica a iniciativa de um pequeno país budista entalado nos Himalaias, Butão, que, em 1972, decidiu criar um índice de Felicidade Interna Bruta (por analogia com Produto Interno Bruto) para medir o desenvolvimento humano com base nos valores da sua cultura.
Terceiro, como qualquer outro fenómeno histórico, se o capitalismo teve um início, certamente terá um fim. Aliás, a crise ecológica está a mudar os termos dos desafios que enfrentamos: se o problema não for o de saber se o capitalismo sobreviverá, é certamente o de saber se sobreviveremos ao capitalismo.
Quarto, o capitalismo, por mais dominante, não conseguiu nunca erradicar totalmente outras lógicas de relações económicas que não passam nem pela acumulação infinita de riqueza nem pelo lucro a qualquer preço; essas lógicas (algumas existiam antes do capitalismo e sobreviveram, outras surgiram com o capitalismo e para lhe resistir) contêm um repertório de inovação social e económica que pode ser precioso num contexto em que se aprofundam as crises social, ecológica, alimentar e energética.
Refira-se, a título de exemplo, o conceito de "viver bem", Sumak Kawsay em quéchua, que os indígenas do Equador lograram transformar em imperativo constitucional, ao mesmo que atribuíram à natureza (Pachamama, a terra mãe) a titularidade de direitos próprios dela e não dos humanos.
Desmercadorizar significa impedir que a economia de mercado estenda o seu âmbito a tal ponto que transforme a sociedade no seu todo numa sociedade de mercado, numa sociedade onde tudo se compra e tudo se vende, inclusive os valores éticos e as opções políticas.
O imperativo de desmercadorizar envolve a promoção do mais amplo conjunto de iniciativas, muitas delas já testadas pelo tempo e pela capacidade de criar bem-estar para os que nelas participam. Com algumas adaptações, as propostas pela desfinanceirização da Europa estão hoje a ser avançadas a nível mundial.
Constituem um dos núcleos centrais do objetivo de desmercadorizar a vida pessoal, social, política, cultural.
Com o mesmo objetivo, muitas outras propostas e iniciativas têm vindo a ser apresentadas. Fazem parte da consciência antecipatória do mundo e vão esperando a hora da vontade política para as levar à prática. Entre muitíssimas outras, eis algumas.
- Promover formas de economia social tais como cooperativas, economia solidária, sistemas de entreajuda e de troca de tempo e de trabalho
- Submeter ao controlo público (não necessariamente estatal) democrático (não burocrático) a exploração e gestão de recursos e de serviços essenciais ou estratégicos
- Desmercadorizar a natureza na medida do possível - de que é bom exemplo o pacto internacional da água, há algum tempo em discussão - promovendo uma nova relação entre seres humanos e natureza assente na ideia de que os primeiros são parte da segunda (não existem à parte dela) e que por isso deverão respeitar os ciclos vitais de regeneração da natureza, sob pena de suicídio coletivo
- Definir uma nova geração de direitos fundamentais: os direitos da natureza, os direitos humanos à água, à terra, à biodiversidade e a consequente consagração de novos bens comuns insuscetíveis de serem privatizados
- Interditar a especulação financeira sobre a terra e os produtos alimentares a fim de evitar a concentração de terra (está em curso uma contrarreforma agrária) e a subida artificial dos preços dos alimentos
- Transformar a soberania alimentar em eixo de políticas agrárias para que os países deixem de ser, na medida do possível, dependentes da importação de alimentos
- Regular estritamente os agrocombustiveis pelo impacto que têm na segurança alimentar e na soberania alimentar. O impacto destes projectos na agricultura e na vida dos camponeses não é difícil de imaginar
- Aumentar a vida média dos produtos manufaturados. Um carro ou uma lâmpada podem durar muito mais tempo sem acréscimo de custos
-Tributar de forma agravada alguns produtos agrícolas que viajam mais de 1000 km entre o produtor e o consumidor, criando com a arrecadação um fundo para apoiar o desenvolvimento local dos países menos desenvolvidos
- Incluir a diminuição do tempo de trabalho entre as políticas de promoção de emprego
- Proibir o patenteamento de saberes tradicionais e reduzir drasticamente a vigência de direitos de propriedade intelectual na área dos produtos farmacêuticos e agrícolas
- Aproveitar ao máximo as potencialidades democráticas da revolução digital para promover uma cultura livre que recompense coletivamente a criatividade de artistas e investigadores, generalizando a inovadora experiência do movimento do Open Source Software, e da Wikipedia.
Estas são algumas imagens da consciência antecipatória do mundo.
Dir-se-á que são utópicas ou eivadas de romantismo. Sem dúvida.
Mas devemos ter em conta algumas cautelas ao estigmatizar a utopia.
Muitas destas propostas, quando detalhadas tecnicamente, dispõem de medidas de transição e são susceptíveis de aplicações parciais.
Acresce que uma ideia inovadora é sempre utópica antes de se transformar em realidade. Finalmente, porque muitos dos nossos sonhos foram reduzidos ao que existe e o que existe é muitas vezes um pesadelo, ser utópico é a maneira mais consistente de ser realista no início do século XXI.
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O livro Portugal - Ensaio contra a autoflagelação, com 154 páginas, divide-se em sete capítulos. Desde o primeiro, com "breves precisões conceituais sobre as crises e suas soluções", até ao último, com o título "Outro mundo é possível" (palavra de ordem do Forum Social Mundial, de que Boaventura de Sousa Santos é um principais dirigentes ou teorizadores), o autor analisa a situação atual, seus problemas e desafios, e faz propostas. O trecho que publicamos é o final desse último capítulo, sobre o que considera ser, criando um novo termo, o terceiro "imperativo" - depois de "democratizar" e "descolonizar" - para "sair da crise com dignidade e esperança". Boaventura carateriza a autoflagelação como "a má consciência da passividade", considerando não ser "fácil superá-la num contexto em que a passividade, quando não é querida, é imposta".(Paulo Borges)
Nos próximos tempos, as elites conservadoras europeias, tanto políticas como culturais, vão ter um choque: os europeus são gente comum e, quando sujeitos às mesmas provações ou às mesmas frustrações por que têm passado outros povos noutras regiões do mundo, em vez de reagir à europeia, reagem como eles. Para essas elites, reagir à europeia é acreditar nas instituições e agir sempre nos limites que elas impõem. Um bom cidadão é um cidadão bem-comportado, e este é o que vive entre as comportas das instituições.
Dado o desigual desenvolvimento do mundo, não é de prever que os europeus venham a ser sujeitos, nos tempos mais próximos, às mesmas provações a que têm sido sujeitos os africanos, os latino-americanos ou os asiáticos. Mas tudo indica que possam vir a ser sujeitos às mesmas frustrações. Formulado de modos muito diversos, o desejo de uma sociedade mais democrática e mais justa é hoje um bem comum da humanidade. O papel das instituições é regular as expectativas dos cidadãos de modo a evitar que o abismo entre esse desejo e a sua realização não seja tão grande que a frustração atinja níveis perturbadores.
Ora é observável um pouco por toda a parte que as instituições existentes estão a desempenhar pior o seu papel, sendo-lhes cada vez mais difícil conter a frustração dos cidadãos. Se as instituições existentes não servem, é necessário reformá-las ou criar outras. Enquanto tal não ocorre, é legítimo e democrático atuar à margem delas, pacificamente, nas ruas e nas praças. Estamos a entrar num período pós-institucional.
Os jovens acampados no Rossio e nas praças de Espanha são os primeiros sinais da emergência de um novo espaço público - a rua e a praça - onde se discute o sequestro das atuais democracias pelos interesses de minorias poderosas e se apontam os caminhos da construção de democracias mais robustas, mais capazes de salvaguardar os interesses das maiorias. A importância da sua luta mede-se pela ira com que investem contra eles as forças conservadoras. Os acampados não têm de ser impecáveis nas suas análises, exaustivos nas suas denúncias ou rigorosos nas suas propostas. Basta-lhes ser clarividentes na urgência em ampliar a agenda política e o horizonte de possibilidades democráticas, e genuínos na aspiração a uma vida digna, social e ecologicamente mais justa.
Para contextualizar a luta das acampadas e dos acampados, são oportunas duas observações. A primeira é que, ao contrário dos jovens (anarquistas e outros) das ruas de Londres, Paris e Moscovo no início do século XX, os acampados não lançam bombas nem atentam contra a vida dos dirigentes políticos. Manifestam-se pacificamente e a favor de mais democracia. É um avanço histórico notável que só a miopia das ideologias e a estreiteza dos interesses não permite ver. Apesar de todas as armadilhas do liberalismo, a democracia entrou no imaginário das grandes maiorias como um ideal libertador, o ideal da democracia verdadeira ou real. É um ideal que, se levado a sério, constitui uma ameaça fatal para aqueles cujo dinheiro ou posição social lhes tem permitido manipular impunemente o jogo democrático.
A segunda observação é que os momentos mais criativos da democracia raramente ocorreram nas salas dos parlamentos. Ocorreram nas ruas, onde os cidadãos revoltados forçaram as mudanças de regime ou a ampliação das agendas políticas. Entre muitas outras demandas, os acampados exigem a resistência às imposições da troika para que a vida dos cidadãos tenha prioridade sobre os lucros dos banqueiros e especuladores; a recusa ou a renegociação da dívida; um modelo de desenvolvimento social e ecologicamente justo; o fim da discriminação sexual e racial e da xenofobia contra os imigrantes; a não privatização de bens comuns da humanidade, como a água, ou de bens públicos, como os correios; a reforma do sistema político para o tornar mais participativo, mais transparente e imune à corrupção.
A pensar nas eleições acabei por não falar das eleições. Não falei?
É hoje consensual que o capitalismo necessita de adversários credíveis que actuem como correctivos da sua tendência para a irracionalidade e para a auto-destruição, a qual lhe advém da pulsão para funcionalizar ou destruir tudo o que pode interpor-se no seu inexorável caminho para a acumulação infinita de riqueza, por mais anti-sociais e injustas que sejam as consequências. Durante o século XX esse correctivo foi a ameaça do comunismo e foi a partir dela que, na Europa, se construiu a social-democracia (o modelo social europeu e o direito laboral). Extinta essa ameaça, não foi até hoje possível construir outro adversário credível a nível global. Nos últimos trinta anos, o FMI, o Banco Mundial, as agências de rating e a desregulação dos mercados financeiros têm sido as manifestações mais agressivas da pulsão irracional do capitalismo. Têm surgido adversários credíveis a nível nacional (muitos países da América Latina) e, sempre que isso ocorre, o capitalismo recua, retoma alguma racionalidade e reorienta a sua pulsão irracional para outros espaços. Na Europa, a social-democracia começou a ruir no dia em que caiu o Muro de Berlim. Como não foi até agora possível reinventá-la, o FMI intervém hoje na Europa como em casa própria.
Poderá surgir em Portugal algum adversário credível capaz de impedir que o país seja levado à bancarrota pela irracionalidade das agências de rating apostadas em produzir a realidade que serve os interesses dos especuladores financeiros que as controlam com o objectivo de pilhar a nossa riqueza e devastar as bases da coesão social? É possível imaginar duas vias por onde pode surgir um tal adversário. A primeira é a via institucional: líderes democraticamente eleitos reúnem o consenso das classes populares (contra os media conservadores e os economistas encartados) para praticar um acto de desobediência civil contra os credores e o FMI, aguentam a turbulência criada e relançam a economia do país com maior inclusão social. Foi isto que fez Nestor Kirchner, Presidente da Argentina, em 2003. Recusou-se a aceitar as condições de austeridade impostas pelo FMI, dispôs-se a pagar aos credores apenas um terço da dívida nominal, obteve um financiamento de três biliões de dólares da Venezuela e lançou o país num processo de crescimento anual de 8% até 2008. Foi considerado um pária pelo FMI e seus agentes. Quando morreu, em 2010, o mesmo FMI, com inaudita hipocrisia, elogiou-o pela coragem com que assumira os interesses do país e relançara a economia. Em Portugal, um país integrado na UE e com líderes treinados na ortodoxia neoliberal, não é crível que o adversário credível possa surgir por via institucional. O correctivo terá de ser europeu e Portugal perdeu a esperança de esperar por ele no momento em que o PSD, de maneira irresponsável, pôs os interesses partidários acima dos interesses do país.
A segunda via é extra-institucional e consiste na rebelião dos cidadãos inconformados com o sequestro da democracia por parte dos mercados financeiros e com a queda na miséria de quem já é pobre e na pobreza de quem era remediado. A rebelião ocorre na rua mas visa pressionar as instituições a devolver a democracia aos cidadãos. É isto que está a ocorrer na Islândia. Inconformados com a transformação da dívida de bancos privados em dívida soberana (o que aconteceu entre nós com o escandaloso resgate do BPN), os islandeses mobilizaram-se nas ruas, exigiram uma nova Constituição para defender o país contra aventureiros financeiros e convocaram um referendo em que 93% se manifestaram contra o pagamento da dívida. O parlamento procurou retomar a iniciativa política, adoçando as condições de pagamento mas os cidadãos resolveram voltar a organizar novo referendo, o qual terá lugar a 9 de Abril. Para forçar os islandeses a pagar o que não devem as agências de rating estão a usar contra eles as mesmas técnicas de terror que usam contra os portugueses. No nosso caso é um terror preventivo dado que os portugueses ainda não se revoltaram. Alguma vez o farão?
Publicado na revista Visão em 7 de Abril de 2011
Vivemos o mais sombrio 25 de Abril depois daquele que há 37 anos, qual milagre profano, nos interpelou: levantai-vos e caminhai.
Assim fizemos aos trancos e barrancos, vencendo desafi os, caindo em armadilhas, até chegarmos a estes dias em que um deus estranho, porque trinitário mas sem graça, nos ordena: ajoelhai-vos e rastejai. É também um imperativo estranho, ainda que não inédito na nossa história, porque nos oferece a salvação a troco de perdermos a alma.
Estamos assistir ao desenvolvimento do subdesenvolvimento do nosso país e aparentemente assistimos passivamente. Como se isso nos abalasse tanto quanto o recente maremoto do Japão. Como se o país fosse um lugar distante, habitado por gente que conhecemos mal, por quem não temos especial estima e que certamente merece o fardo que lhe cabe carregar.
Ouvindo ou lendo alguns comentadores, dá a impressão de que são alemães no seu próprio país. Dissecam a realidade nacional como se fossem médicos-legistas, esquartejando o cadáver, como se não fossem parte dele. Outros, super-ricos, a quem o dinheiro dá direito à sabedoria encartada, declaram-se revoltados com a pobreza e as pensões de miséria, como se a pobreza fosse um pecado de que a sua riqueza está inocente. E quase todos fl agelam o país, como se as causas da nossa crise fi nanceira não fossem sistémicas e, portanto, em parte, estranhas à nossa acção, por mais desastrada que tenha sido.
A autoflagelação é a má consciência da passividade e não é fácil superá-la num contexto em que a passividade, quando não é querida, é imposta. A chegada a Lisboa da trindade UEBCE-FMI constitui simbolicamente um activismo de alta intensidade que contrasta com a nossa incapacidade de agir. Estamos a ser agidos.
Nosso é apenas o nome em nome do qual outros agem para o bem que só é nosso se for também deles. Para agirmos, temos de desviar os olhos desta paisagem e caminhar no escuro por alguns momentos até chegarmos às suas traseiras para ver os andaimes que a sustentam, observar a azáfama que por lá vai e identifi car os lanços vazios à espera da nossa acção. Não precisamos de capitães, mas precisamos da lucidez e da coragem que alguns deles tiveram, há 37 anos, para agir sem temer as reacções dos mercados ou as notas das agências de rating. Eis alguns desses lanços.
O institucional e o extra-institucional. Se alguém vai passar por um stress test nos próximos tempos é a nossa democracia.
A suposta falta de imaginação europeia, ao não permitir que o “resgate” fi nanceiro respeite a democracia portuguesa, é o segundo acto do sequestro da democracia portuguesa. O primeiro ocorreu com os ataques especulativos à dívida soberana do país liderados pelas agências de rating, ante a passividade das autoridades europeias. Este duplo sequestro desvaloriza a União Europeia, e pode ter o efeito de submeter as instituições democráticas portuguesas a alguma turbulência, abrindo caminho para iniciativas democráticas extra-institucionais (acções de rua, protestos, petições).
É muito difícil definir o patamar de asfi xia ou de indignação social acima do qual pode haver perturbação social. O espaço público da rua pode ser utilizado para exigir das instituições políticas comportamentos inovadores que salvaguardem melhor os interesses da grande maioria dos portugueses. Se as instituições se ajoelharem e rastejarem, é possível que a emergência do extra-institucional possa infl uenciar a constituição dos governos e propiciar decisões de desobediência fi nanceira.
Uma maioria de esquerda? Não penso que um governo de direita ou de centro-direita crie condições para a nossa democracia passar com êxito o stress test. Estamos perante uma situação sem precedentes, que compromete as aspirações de progresso e justiça social de toda uma geração. Perante uma situação nova, há que tentar soluções novas. A República fundada pelo 25 de Abril de 1974 não tem primado pela estabilidade governativa. Em busca dela, multiplicaram-se as coligações partidárias que tiveram em comum o facto de serem coligações de direita ou de centro-direita. Não se experimentou até agora uma coligação de esquerda, envolvendo o PS, o PCP e o BE. Não basta um governo de esquerda; é necessário um programa de esquerda que proponha medidas que extravasem da ortodoxia fi nanceira da UE e do FMI.
Nos próximos anos, esta vai ser a linha divisória entre a esquerda e a direita em Portugal.
A desobediência fi nanceira. Qualquer governo saído das eleições tem legitimidade democrática para exigir a renegociação da dívida, e esta exigência só não será tida em conta se Portugal entretanto se tiver convertido numa colónia informal da UE. A reestruturação da dívida visa eliminar as dívidas consideradas ilegais ou ilegítimas à luz de critérios internacionalmente reconhecidos. Um deles é a proibição de juros usurários, sobretudo se politicamente motivados para atingir uma população.
Não restam dúvidas de que os montantes dos juros da dívida soberana de Portugal a partir do momento da queda do actual Governo foram usurários. Possivelmente foram também manipulados para forçar uma solução política em Portugal e na Europa. Na sua reunião da Primavera deste ano, o FMI voltou a reiterar que as dívidas com taxas de juro acima de 7% são insustentáveis (ou seja, não podem ser pagas), num momento em que as taxas de juro da nossa dívida soberana atingiam os 10%. A reestruturação da dívida exige uma auditoria transparente e internacionalmente credível que permita defi nir o seu valor real, o valor que os portugueses devem assumir como obrigação sua. Não é uma solução milagrosa e tem custos que só podem ser assumidos com largo consenso nacional.
Há momentos na história dos países democráticos em que a democracia só pode ser resgatada por via referendária. Isso ocorre quando convergem duas condições: a distância entre representantes e representados atinge proporções muito elevadas e o que está em jogo põe em perigo o bem-estar colectivo muito para além das divisões partidárias. Penso que estas duas condições estão presentes na actual situação política do país.
As medidas de austeridade e o modo como foram impostas criaram um fosso de credibilidade muito profundo entre os cidadãos e o PS. Mas, ao contrário do que se pode supor, criaram-no também em relação ao PSD pois este, não só esteve de acordo até há bem pouco tempo com as medidas, como não apresenta (e os portugueses sabem que não pode apresentar) nenhuma alternativa real.
Os portugueses estão chocados não apenas com as medidas de austeridade como sobretudo com o facto de as decisões nacionais terem sido sequestradas por uma Europa, que bem na lógica neoliberal, considera que os países pobres são pobres por culpa própria e não porque foram empobrecidos num sistema de relações sistémicas que lhes foram desfavoráveis. Neste contexto, as eleições são irrelevantes e até podem ser prejudiciais quando se aprofundam as contradições da política europeia e se abre um espaço de manobra que só um governo em plenas funções pode explorar eficazmente a favor do país. Não admira que nem empresários nem trabalhadores estejam interessados em eleições.
Não é preciso ser sociólogo para prever que se se fizesse um referendo hoje, a esmagadora maioria dos portugueses seria contra a realização de eleições. Porque se vão então realizar? Primeiro, porque, na impossibilidade da realização do referendo, competiria ao Presidente da Republica assumir a vontade do país e chamar os partidos à razão. Mas, infelizmente, Cavaco Silva é mais parte do problema do que da solução. Segundo, porque uma pequena fracção da classe política, dentro do PSD, pretende não perder a oportunidade de chegar ao poder, não por mérito próprio, mas pela exploração da fragilidade e desorientação dos portugueses.
Que o possa fazer impunemente e até com êxito é a prova da baixa intensidade da nossa democracia. Sempre centrada nos seus próprios interesses e com total desprezo pelos dos portugueses, esta fracção tem a seu favor os seguintes argumentos. O PS é um deserto ideológico e por isso a vulnerabilidade do líder significa a vulnerabilidade do “projecto”. É um partido sem condições para discutir a sua rendição e só a lógica do voto útil o salvará de uma catástrofe. O CDS é um catador de migalhas políticas e estará disponível para tudo, diga o que disserem os seus dirigentes. O Bloco de Esquerda cometeu o erro histórico de pensar que havia em Portugal espaço para mais um partido catalizador do voto de protesto e do ressentimento. De facto, só há espaço para um partido e esse é o PCP, que, aliás, o tem ocupado de modo exemplar. Não foi totalmente por culpa do PS que se perdeu a oportunidade histórica de criar uma verdadeira alternativa de esquerda com vocação de poder.
Os portugueses vão passar por um período em que vão ser objectos da política. Mas, como já sugerido pelas manifestações de 12 de Março, não tardará que venham a reivindicar ser, de novo, sujeitos da política.
Boaventura de Sousa Santos in Público em 22-03-2011
Portugal é um pequeno barco num mar agitado. Exigem-se bons timoneiros mas se o mar for excessivamente agitado não há barco que resista, mesmo num país que séculos atrás andou à descoberta do mundo em cascas de noz. A diferença entre então e agora é que o Adamastor era um capricho da natureza, depois da borrasca era certa a bonança e só isso tornava “realista” o grito de confiança nacionalista, do “Aqui ao leme sou mais que eu…”. Hoje, o Adamastor é um sistema financeiro global, controlado por um punhado de grandes investidores institucionais e instituições satélites (Banco Mundial, FMI, agências de notação) que têm o poder de distribuir as borrascas e as bonanças a seu bel-prazer, ou seja, borrascas para a grande maioria da população do mundo, bonanças para eles próprios. Só isso explica que os 500 indivíduos mais ricos do mundo tenham uma riqueza igual à da dos 40 países mais pobres do mundo, com uma população de 416 milhões de habitantes. Depois de décadas de “ajuda ao desenvolvimento” por parte do BM e do FMI, um sexto da população mundial vive com menos de 77 cêntimos por dia.
Devemos prestar atenção aos comentadores nacionais, quanto mais não seja para identificar o que eles não discutem e as agendas pessoais que se escondem sob pretensas análises desassombradas. Sobretudo os que foram membros de governos nos últimos vinte anos são de uma transparência desarmante e duvido de que consigam iludir muita gente. Mas são irrelevantes sobretudo quando comparados com os outros comentadores, os comentadores financeiros internacionais (CFI) que em blogues e outros media vão propondo análises e dando sugestões que estão na base
de muitas das decisões sobre o nosso país, obviamente tomadas à margem do nosso controle democrático. Dessa floresta de comentários selecciono dois que me parecem ser mais pertinentes para compreendermos o que vai sendo decidido nas nossas costas.
Sobre o mandato das eleições. Os CFI pouco se interessam sobre as personalidades dos líderes políticos. Interessa-lhes saber qual é o verdadeiro mandato ou objectivo das eleições. Se se trata apenas de decidir como cumprir o plano de austeridade e definir os termos da ajuda externa, a evolução/ /manipulação das taxas de juro vai ser importante para orientar as intenções de voto. Se, pelo contrário, está no horizonte a possibilidade de resistir à austeridade e de reestruturar a economia para voltar ao crescimento, as taxas de juro só por si não serão suficientes para influenciar os eleitores.
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