Terça-feira, 6 de Julho de 2010

O triunfo dos porcos (a televisão é para estúpidos?)

Carlos Loures

Talvez que o mais evidente sinal de abertura dado pela chamada «primavera marcelista» de 1969 tenha sido o programa Zip-Zip transmitido pela RTP. A censura de Salazar não o teria autorizado e Marcelo que se converteu também em estrela de televisão com as suas «Conversas em família», quis dar um sinal de que os tempos tinham mudado. Como não me canso de repetir, mudou alguma coisa para que tudo ficasse na mesma. O Zip foi uma das pequenas mudanças – a Guerra Colonial, as prisões, a tortura, a repressão, a miséria, continuaram. Isto a par com uma crise económica que nada fica a dever à actual. Como Raul Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia disseram depois, a ideia foi mesmo essa – ajudar Caetano a democratizar, comprometê-lo com a democratização que prometera. Chegaram mesmo a convidá-lo para ir ao programa, convite que Marcelo Caetano declinou, embora agradecendo.

Naquelas 32 semanas que o Zip durou, passaram pelo palco do Teatro Villaret, onde o programa era gravado, escritores, actores, cantores, artistas plásticos, personalidades que o grande público conhecia mal ou mesmo desconhecia – um taxista referindo-se a Almada Negreiros, que foi o convidado do primeiro programa, dizia «Não sabia que havia pessoas tão importantes em Portugal.» Essa revelação de uma face do seu país que a maioria dos portugueses ignorava, foi uma das chaves do sucesso. Ás segundas-feiras à noite, quando o programa era transmitido, pode dizer-se que o país parava - «Que surpresa haverá hoje?» – perguntava-se. Como disse Adelino Gomes em «Zip-Zip: Os sete meses que marcaram a televisão em Portugal» (Público, de 25 de Setembro de 2009): «As ruas ficavam vazias. As casas de espectáculos sem público. Pela primeira vez, um programa de televisão marcava a agenda das conversas dos portugueses. Aconteceu durante o segundo semestre de 1969. Em plena “primavera marcelista”».  Acrescente-se que consta que um Conselho de ministros convocado por Marcelo para uma segunda-feira, teve de ser adiado porque a maioria dos ministros não abdicava de ver o Zip:



Um dia, vindo para casa, com o rádio do carro sintonizado na TSF, pois o presidente Sampaio ia fazer uma comunicação ao País, o programa que estava a ser transmitido, foi interrompido e o locutor anunciou que o Marco tinha dado um pontapé na Sónia. E aconselhava a ligarmos para a TVI. Intrigado, pois não fazia ideia de quem seriam tais pessoas, logo que cheguei a casa, foi a primeira coisa que fiz e passados momentos lá passaram a gravação do pontapé. Nunca tinha visto o «Big Brother» e, atónito, assisti durante uns minutos ao degradante espectáculo que já aqui mostrei, numa crónica anterior.

Este tipo de cenas foi ocorrendo quase diariamente, desde que entre 3 de Setembro e 31 de Dezembro de 2000 a TVI lançou o primeiro «Big Brother. Tal como mais de trinta anos antes perante o Zip, as pessoas interrogavam-se - «O que acontecerá hoje?» Judite de Sousa referiu-se num depoimento ao facto de a tabloidização da televisão corresponder a um gosto do público que «quer sobretudo mais emoção», preferindo conteúdos «que façam apelo à emoção», insistiu. Disse também que «a vida vai estar cada vez mais presente na televisão». Talvez se referisse ao facto de pessoas comuns, como o Zé Maria, a Susana, a Célia ou o Marco, se transformarem personalidades públicas. Mas será que a amostragem reflectia o conceito de «pessoas comuns» - os portugueses são de facto assim? Será que a vida no nosso país tem muito a ver com o que se passava na «casa»?

Porque comparo estes dois programas tão diferentes? Parece-me óbvio – porque ambos mudaram a televisão. Tal como acontecera com o Zip, depois do «Big Brother» a televisão mudou também, impondo em três dos canais generalistas a moda dos reality shows. ZIP-ZIP e «Big Brother» deram lugar a debates sociológicos, a estudos académicos. De notar que, de série para série, o concurso foi perdendo popularidade até que, à 4ª, a TVI suspendeu o programa. A única semelhança entre os dois programas é no nível de impacto produzido. Olhando estes exemplos e não levando em conta questões acessórias, circunstanciais, epocais, como o facto de a emissão ser a cores ou a preto e branco, as roupas, a linguagem, o que terá mudado na sociedade portuguesa para que em 31 anos o gosto do público tenha mudado de tal forma. Em 1969 o índice de analfabetismo era elevado. Hoje será residual. Nessa altura tínhamos cerca de 30 mil estudantes nas universidades – hoje, esse número mais do que decuplicou. O poder de compra subiu e o acesso aos bens culturais é mais fácil. E no entanto um programa como o Zip-Zip fazia parar o país, tal como trinta e um anos depois aconteceu com o «Big-Brother». É evidente que o poder da televisão era grande e que actualmente também o é. As circunstâncias históricas são diferentes, mas, apesar de tudo, são melhores, mais favoráveis, menos constrangedoras.

Embora estatisticamente o índice de literacia seja muito mais elevado, verifica-se que o gosto dos telespectadores se deteriorou. Não acreditando que as pessoas sejam hoje piores do que eram há 40 anos, interrogamo-nos - o que aconteceu? Já ouvi diversas explicações. Dizem-me que as pessoas pareciam mais educadas, porque eram obrigadas a ser mais contidas e que adoraram o Zip porque era diferente da programação-tipo dos dois canais então existentes - «uma pedrada no charco», como o classificou Mário Castrim, o mais conhecido dos críticos de televisão da altura, . Talvez todo isto seja verdade. E talvez mesmo que aquilo que eu mostro com a intenção de acentuar o abismo cultural entre duas maneiras de fazer televisão, se vire contra o meu argumento – o preto e branco face à cor, o ar formal dos apresentadores, a linguagem correcta em comparação com o paleio vulgar, ordinário, podem levar quem vê, a optar pela segunda amostra, achando-a mais «realista».

Para que não se pense que só em Portugal o programa tem um nível rasteiro, podem ter a certeza de que esse primarismo é semelhante em todos os países, em Espanha, em Itália, na Rússia... Vejam só este edificante exemplo da versão brasileira:



«Big-Brother» e programas do género, é altura de reflectir: são pedradas no charco ou o regresso ao charco?

 Que televisão queremos?
publicado por Carlos Loures às 12:00
link | favorito
Segunda-feira, 28 de Junho de 2010

Cultura e televisão (a televisão é para estúpidos?)

Carlos Loures



Cultura e televisão, será que ainda têm alguma coisa em comum? No começo da década de 90, Marlon Brando dizia numa entrevista que já não faltaria muito para que algum «génio criativo» se lembrasse de, num reality show, pôr pessoas a defecar perante as câmaras. Numa roda de amigos comentou-se na altura esta profecia do grande actor e, embora reconhecendo que a qualidade da televisão generalista baixava de ano para ano, pareceu-nos exagerada. Não havia ainda aqui a moda dos reality shows. Quando a inefável TVI lançou o Big Brother, alguns dos mesmos amigos recordaram a entrevista de Brando e começaram a perceber onde ele queria chegar. O nível cultural dos participantes era tão básico, o léxico e o universo conceptual utilizados tão rasteiros, que não exigia grande esforço imaginar qualquer deles a concretizar perante as câmaras a profecia de Marlon, caso tal lhes fosse pedido pela «realização».

Um dia em que, conversando com Mr. Hugh House, director do departamento de cursos de inglês da BBC, me queixava da má qualidade dos programas televisivos em Portugal ele respondeu-me: - Então você não sabe que a principal função da televisão é ser de má qualidade? Estávamos nos anos 80 e eu ainda acreditava que a televisão, meio ao qual me prende um vínculo afectivo, como terei oportunidade de explicar, poderia cumprir uma importante função pedagógica na efectiva criação de uma mentalidade democrática.



Quando, ainda a propósito da entrevista de Marlon Brando e falando dos programas actuais, alegou-se como desculpa a falta de cultura dos portugueses, o baixo índice médio de escolaridade. Alguém disse - «Mas o conceito do Big Brother não é português». E outro recordou - «Há trinta anos, com um índice de escolaridade mais baixo, as ruas das cidades ficavam desertas nas segundas-feiras à noite, pois estava quase toda a gente a ver o Zip-Zip, um programa que, apesar do bom nível do conteúdo era apreciado por uma larga faixa da população. Hoje em dia, as audiências aumentam na razão directa do número de telenovelas que um canal apresenta. Se às telenovelas, geralmente más, se somarem os tais reality shows e uns concursos idiotas, os índices de audiência sobem em flecha. A televisão generalista percorre uma espiral descendente – os canais na sua fúria de competirem na guerra das audiências, procuram colocar-se ao nível da incultura geral e, nesse esforço de «chegar às massas», com telenovelas tontas, talk shows inqualificáveis, concursos de pseudo cultura-geral, contribuem para o défice cultural dos telespectadores que terão tendência cada vez a preferir programações mais pobres. É sempre a descer.

Sobre este tema, encontramos palavras esclarecedoras num pequeno livro de Karl Popper, um grande filósofo britânico de origem austríaca (1902-1994) – Televisão Um Perigo Para a Democracia: "Por ocasião de uma conferência que dei há alguns anos na Alemanha tive o ensejo de conhecer o responsável de uma cadeia (de TV) que se deslocara para me ouvir juntamente com alguns colaboradores. (...) . Durante a nossa discussão fez afirmações inauditas, que se lhe afiguravam naturalmente indiscutíveis. «Devemos oferecer às pessoas o que elas esperam», afirmava, por exemplo, como se fosse possível saber o que as pessoas pretendem recorrendo simplesmente aos índices de audiência.

Tudo o que é possível recolher, eventualmente, são indicações sobre as preferências dos telespectadores face aos programas que lhes são oferecidos. Esses números não nos dizem o que devemos ou podemos propor, e esse director de cadeia também não podia saber que escolhas fariam os telespectadores perante outras propostas. De facto, ele estava convencido de que a escolha só seria possível no quadro do que era oferecido e não perspectivava qualquer alternativa. Tivemos uma discussão realmente incrível. A sua posição afigurava- se-lhe conforme aos «princípios da democracia» e pensava dever seguir a única direcção compreensível para ele, a que considerava «a mais popular». Ora, em democracia nada justifica a tese deste director de cadeia (de TV), para quem o facto de apresentar programas cada vez mais medíocres corresponde aos princípios da democracia porque é o que as pessoas esperam. Nessas circunstâncias, só nos resta ir para o inferno!» Um inferno ao qual vamos descendo, abandonando toda a esperança, como preconizava Dante, sempre que accionamos o comando. Um inferno onde vale meter todo o lixo.

Já para não falar nas manipulações…

__________________
Nota: Tendo mostrado um momento alto do Big Brother português, preparava-me para ilustrar este texto com um outro vídeo da 9ª edição do Big Brother italiano - Grande Fratello - que foi emitida em 2009. Um concorrente ameaça defecar em frente das câmaras (“Allora io adesso mi metto a cagare e pisciare qui in giardino, va bene? ” ). O vídeo não pode ser reproduzido, mas está disponível no You Tube. A profecia de Marlon Brando, não era, afinal, tão exagerada quanto parecia.

publicado por Carlos Loures às 12:00
link | favorito
Terça-feira, 8 de Junho de 2010

1984, de Georges Orwell

Carlos Loures

Nineteen Eighty-Four, de George Orwell, teve a sua primeira edição em 8 de Junho de 1949, faz hoje 61 anos. Reproduz-se a capa dessa edição da Secker and Warburg, de Londres. O livro surgiu numa Inglaterra que sangrava ainda das feridas da Segunda Guerra. O romance marcou indelevelmente a literatura do século XX e descreve o quotidiano de um regime totalitário, mostrando como uma sociedade oligárquica e repressivamente colectivista pode destruir quem a ela se oponha. Orwell narra com brilhantismo  um futuro de pesadelo baseado nos absurdos do presente. Escrito em 1948, diz-se que por pressão dos editores, os dois últimos dígitos foram invertidos, dando lugar a 1984.


A história é contada por Winston Smith, um homem insignificante, funcionário do Ministério da Verdade, que executa a tarefa de refazer diariamente a história do regime através da falsificação de documentos públicos e da literatura a fim de que o Partido e o governo do «Grande Irmão» estejam sempre certos e tenham sempre razão. Os problemas de Winston começam quando começa a questionar a opressão que o Partido exerce  sobre os cidadãos. Pensar de modo diferente, era cometer crimideia (crime cometido em pensamento, segundo a novilíngua) e quem incorresse nesse crime era preso pela Polícia do Pensamento. Rapidamente, desaparecia, era vaporizado. como se nunca tivesse existido.

Obviamente inspirado na opressão dos regimes totalitários que, naquele final dos anos 40 ainda estava bem presente na memória de todos, o romance de Orwell critica o fascismo e o estalinismo, mas também todo e qualquer processo de controlo do indivíduo em nome dos supremos interesses da sociedade. Mas houve quem visse no romance o que queria ver, sendo considerado por muitos, quando da sua publicação, uma crítica ao socialismo e ao Partido Trabalhista. Numa carta escrita meses antes da morte, Orwell esclareceu que era um socialista convicto (combatera pela República, na Guerra Civil de Espanha, sendo ferido). Avisava que o totalitarismo, venha de onde vier, da direita ou da esquerda, «se não for combatido, pode triunfar em qualquer sitio». No ensaio Why I Write (Por que escrevo), auto-designou-se como «socialista-democrático».

Muitas das palavras inventadas por Orwell perduram ainda seis décadas depois - big brother, duplipensar, novilíngua, por exemplo, são expressões usadas por pessoas que nunca leram o romance. Orwelliano" é  um termo usado comummente para referir invasões da privacidade e de usurpação dos direitos dos cidadãos ocorridas na vida real ou na ficção.

1984 é, sem dúvida, uma das obras mais marcantes e impressivas do século XX.
publicado por Carlos Loures às 12:00
link | favorito

.Páginas

Página inicial
Editorial

.Carta aberta de Júlio Marques Mota aos líderes parlamentares

Carta aberta

.Dia de Lisboa - 24 horas inteiramente dedicadas à cidade de Lisboa

Dia de Lisboa

.Contacte-nos

estrolabio(at)gmail.com

.últ. comentários

Transcrevi este artigo n'A Viagem dos Argonautas, ...
Sou natural duma aldeia muito perto de sta Maria d...
tudo treta...nem cristovao,nem europeu nenhum desc...
Boa tarde Marcos CruzQuantos números foram editado...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Conheci hackers profissionais além da imaginação h...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Esses grupos de CYBER GURUS ajudaram minha família...
Eles são um conjunto sofisticado e irrestrito de h...
Esse grupo de gurus cibernéticos ajudou minha famí...

.Livros


sugestão: revista arqa #84/85

.arquivos

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

.links