Domingo, 8 de Agosto de 2010
Manuela DegerineCapítulo LXXIIDécima oitava etapa: de Barcelos a Ponte de Lima (conclusão)Tanta gentileza bastaria para nos dar alento mas, para além dela, também pudemos aliviar as costas, sentar-nos, comer, beber um chá quente... E eu, com a camisola seca e um blusão espesso, sinto agora um agradável conforto. Recomeçamos a caminhar com mais energia.
Encontramo-nos a vinte quilómetros de Ponte de Lima. O percurso continua variado. Passamos por igrejas e espigueiros, olivais, vinhas e culturas, eucaliptos e pinheiros... Voltamos a caminhar por debaixo de videiras suspensas em postes de granito. O piso varia ainda entre o pedregoso, o arenoso, o alcatrão, a calçada... O que mais solicita a nossa atenção é a alternância dos caminhos inundados com a lama escorregadia.
Quase tudo o que vejo me parece bonito. Embora esfumado... Lamento que, com a bruma no ar e a água nas lentes, não possa pormenorizar a paisagem.
Desde a saída de Barcelos ultrapassamos, de vez em quando, três raparigas holandesas e, mais adiante, somos por elas ultrapassados. A partir de Balugães entram na coreografia três alemães e três cães. O pai, um senhor elegante e já idoso, com o seu pequeno teckel preso por uma trela, a mãe, também elegante e ainda jovem, com o seu grande pastor preso por uma trela, o filho, com o seu cão de médio tamanho semelhantemente preso por uma trela. Como há neste pedaço do trajecto algumas capelas com telheiro, eles avançam, ultrapassam-nos e, mais adiante, quando se abrigam no telheiro da capela, nós ultrapassamo-los. (Em Paris tomo às vezes conta de um teckel, um bicho tímido e discreto, com esta expressão melancólica. Lembro-me do Rafeiro dos Olhos Amarelos... Qual não seria, em contrapartida, o seu entusiasmo, através deste caminho, cheio de poças e odores subtis?...)
Doem-me cada vez mais as costas. Diminui a intensidade da chuva, por isso podemos, de vez em quando, fazer uma pausa. Encontramos duas pedras, poisamos plásticos por cima – sentamo-nos durante cinco minutos.
Neste transe frio, chuvoso e lamacento, o meu companheiro de caminhada não fez, ao longo de todo dia, um gesto de enfado ou impaciência. (E, gentilmente, quando tiro a mochila, para mim muito pesada, ajuda-me a colocá-la outra vez às costas.) Replicará o leitor: protestar contra a chuva, uma vã perda de calorias, o tempo é o que é, as nuvens não ouvem alvitres. Adiro a esta sensatez. Porém, no de Santiago como noutros caminhos, tenho encontrado gente que, mesmo em situações menos difíceis, esborrata de mau humor a disposição dos outros.
Atravessamos Vitorino dos Piães, Facha, Leiras, seguimos na direcção de Seara, sucedem-se várias quintas, entre as quais a do Bom Gosto, seus muros sumptuosos de musgo, na Rua do Sobreiro, n°16... Seguem-se Paço, Pedrosa, Barros... Caminhamos numa ponte medieval, vemos mais uma capela, voltamos a passar debaixo de uma vinha, chegamos enfim à beira do rio Lima, onde encontramos o mercado, que ocupa a margem até à ponte famosa.
Precisamos de comprar comida; Gérard Rousse recomenda que nos aprovisionemos pois, durante a etapa de amanhã, não é certo encontrarmos o necessário. (Assinala uma mercearia em Revolta mas não ignoramos como funciona o comércio nas aldeias: estará ou não aberta quando passarmos; e, entre a viagem de Gérard Rousse em 2006 e o presente momento, pode até ter desaparecido.) Avistamos tendas com pães e queijos muito apetitosos, sentimo-nos porém esgotados, não nos resta força para as necessárias compras, de mochila às costas, se pararmos ali ficamos, por conseguinte atravessamos o mercado aos ziguezagues, atentos à sinalização, bastante camuflada, entre tendas e camionetas, tropeçando aqui e além, indo aos bordos, bêbedos de cansaço, alcançamos a ponte, ignorando onde fica o albergue, avistamos de longe um edifício de um belo cor-de-rosa, com janelas amarelas, duas cores que, dirão agora os leitores, não se entendem – pois, aqui, combinam muito bem. Diz Sérgio:
- É além o albergue.
E é mesmo ali.
Sábado, 7 de Agosto de 2010
Manuela DegerineCapítulo LXXIDécima oitava etapa: de Barcelos a Ponte de Lima (continuação IV)Passamos Tamel, Portela, Aborim... Subimos, descemos, voltamos a subir.
Caminhamos por debaixo de vinha suspensa que, com este tempo e mesmo, nesta época, não faz sombra mas, no Verão, deve ser refrescante. O alcatrão e a calçada alternam com terra e areia. Atravessamos pontes por cima de riachos, atravessamos com água pelo cimo das botas, trepamos por taludes e até paredes para evitar charcos mais profundos... As varas de eucalipto revelam-se indispensáveis para sondar a água ou para nos equilibrarmos quando avançamos com um pé em suporte instável...
Entramos em Balugães. Passa do meio-dia e chove a cântaros. Com tal ritmo a que horas chegaremos a Ponte de Lima?... Percorremos treze quilómetros e meio com esta chuva – que nunca diminuiu. Não nos sentámos durante toda a manhã, não parámos sequer para comer, pois impor-se-ia poisar as mochilas, estando tudo inundado e cheio de lama. Doem-me as costas, sinto-me gelada. Por isso, vejo um portão aberto, chamo os donos da casa. Acorre uma senhora. Inquiro se podemos abrigar-nos.
- Só uns minutos... O meu marido chega daqui por um quarto de hora e, se os vir, ralha comigo. Sabe... Muitas pessoas têm sido assaltadas dentro de casa...
Prometemos que nos sentamos e, dali por dez minutos, nos vamos embora. Ela indica, por debaixo da varanda, uma mesa e duas cadeiras. Largamos as mochilas... Sentimo-nos logo melhor. Tiro o impermeável e descubro que tenho não só o cabelo mas até a camisola molhados. Ah... Por isso sentia tanto frio.
Chega a senhora. Aflige-se quando me vê de perto, vai buscar uma toalha para eu limpar o cabelo, quer fazer um café para nos aquecermos... Digo que basta água quente, pois trago sacos de chá. Ela põe de imediato água a aquecer e traz bolachas, amêndoas da Páscoa... Nós temos comida, é pesada, importa comê-la: sandes com queijo, leite com chocolate e fruta. Começamos a comer. Entretanto a senhora insiste para eu mudar de roupa. Prefiro ficar com a camisola molhada para poder, quando chegar a Ponte de Lima, vestir suficiente roupa seca: duas camisolas de algodão, uma por cima da outra, mais a de fibras complexas, a tal, tão leve e arejada – e que afinal não aquece nada.
A senhora quer dar-me uma camisola. Replico logo que não – um pouco envergonhada. Ela não se convence, vira costas, volta com várias, mais um blusão. Eram da filha. Trouxe-os para ela os oferecer a alguém que, por ali, precise deles, a senhora lavou as camisolas, mandou limpar o blusão... Ora, declara ela, nos dias de hoje, ninguém precisa de roupa – excepto eu, neste momento. Não é completamente falso... Tenho armários cheios mas, neste instante, não me aquecem nem arrefecem. Ela continua a teimar: se não quiser carregar com o blusão, que é pesado, abandono-o em Ponte de Lima mas, ao menos, chego lá sem uma pneumonia. Acabo por aceitar. Uma camisola. E o blusão, de couro, muito pesado, de facto – mas quente e impermeável.
Entretanto chega o marido, a quem explicamos a situação. O senhor não se zanga: revela um coração semelhante ao da esposa.
Conversamos durante alguns minutos. Nós explicamos o caminho de Santiago, eles contam a vida em Balugães. A D. Graziela foi modista e fez vestidos para todas a noivas da região: uma vida inteira a vestir os outros.
Acabamos por nos despedir. A D. Graziela oferece-nos, à força, o pacote de amêndoas.
- Não vos fazem mal: vocês precisam de força para caminhar!
Sendo impossível recusar, encarrego Sérgio de as transportar – e comer.
Neste encontro houve um embaraço irresolúvel. É que, do princípio ao fim, a D. Graziela se referiu a Sérgio dizendo: o seu marido. Logo percebi que a circunstância de vir acompanhada com um homem tinha para ela implicações distintas das que lhe atribuo.
- O seu marido não é português, pois não?
- Não, não... O Sérgio é italiano.
- Pergunte ao seu marido se quer o chá com açúcar.
- Não, acho que não...
É certo que em Santiago de Compostela hei-de orar pela D. Graziela e pelo marido – eles crêem no Deus Todo-Poderoso. Que vivam muitos anos com alegria. Que nas silvas encontrem as amoras e nunca os espinhos. E que nenhuma criatura de má índole ultrapasse o limiar daquele n°32.
Sexta-feira, 6 de Agosto de 2010
Manuela DeerineCapítulo LXXDécima oitava etapa: de Barcelos a Ponte de Lima (continuação III)Passamos por casas, vinhas e hortas, ouvimos berrar ovelhas, vemos, de vez em quando, uma vedação com lajes verticais. A água intensifica as cores, dá às pedras um brilho luzidio, faz inchar o musgo, o sedum e todas as plantas que crescem em cima dos muros. Os campos são na maioria verdes, não raro amarelos, uma ou outra vez castanhos: algo semeado e não nascido. Sucedem-se os rectângulos com batatas, com favas, com ervilhas, com couves... Muitos lugares começam a cobrir-se com vinha suspensa em postes de granito.
Enganamo-nos no caminho, uma mulher corre pela rua abaixo, para se abrigar deste derrame atmosférico – avisa-nos. Não manifesta qualquer estranheza, sabe por que razão ali passamos.
Berro na direcção das nuvens.
- Está o caldo entornado!
Chega-me a réplica redobradamente líquida.
Sucedem-se as igrejas, as capelas e os calvários. A certa altura, entre uma igreja e uma capela, o caminho encontra-se, na faixa central, coberto de pétalas, formando desenhos diversamente coloridos: houve ontem uma festa religiosa. A procissão caminhou, de um e de outro lado, sem pisar as pétalas que, com esta humidade, se mantêm viçosas e intactas.
Há paredes com fetos, há muros magníficos, feitos de enormes blocos de granito, um lego de gigantes, há bancos e tanques de pedra, há pátios imensos, granjas com espigueiros, vastas casas de quinta... Apetece parar para encher os olhos com tanta beleza. Que pena estar a chover...
Quase me felicito por, neste transe tão húmido, não caminhar com Maria – que apodreceria a caminhada de mau-humor. Já bastam as reais dificuldades deste chapinhar tão prolongado. Estando tudo enlameado, não podemos, por exemplo, sentar-nos para descansar mas, tanto Sérgio como eu, tentamos suavizar a situação. Brincamos:
- Vejo uma aberta lá longe...
E eu, de vez em quando, repito esta evidência, que até, como ciclista, algumas vezes lembro:
- A chuva não é mais do que água!
Acabamos por nos rir. As nossas figuras, ele com a bossa da mochila, eu coberta com sacos de plástico, não deixam de ser cómicas.
Quarta-feira, 4 de Agosto de 2010
Manuela DegerineCapítulo LXIXDécima oitava etapa: de Barcelos a Ponte de Lima (continuação II)Sérgio tem um vasto impermeável que veste e, nas costas, lhe cobre igualmente a mochila. Todas as marcas propõem uma gama diversa e eu percorri, com método e pertinácia, os grandes supermercados que em Paris propõem este género de equipamentos, analisei dezenas de etiquetas sobre botas, mochilas, peúgas, camisolas, sacos-cama – e, claro, também, impermeáveis. Porém, havia pouco, eu atravessara a canícula até Santarém, achei estas gabardinas excessivas para o clima português, parecendo-me inconcebível que em Maio chovesse como anteontem: durante um dia inteiro. (Confesso este desespero meteorológico: quando me encontro atarantada de calor, parece-me milagroso – e portanto improvável – que volte a chover ou fazer frio.)
Tinha uma capa com capuz, que todavia hesitei em trazer, por a achar demasiado pesada; acrescentei-lhe um velho impermeável usado, durante dez anos, em dezenas de caminhadas. Verifico agora que o equipamento de Sérgio é mais prático do que o meu: basta vestir uma só peça por cima de tudo o resto. Ignoro aliás o que se passou no sábado: cheguei a Vilarinho molhada. Por onde entrou a água?
Chove cada vez mais. Tiro a mochila, poiso-a num muro, agarro o impermeável e a capa que, esta manhã, transbordando optimismo, arrumei no fundo, visto o impermeável, enfio a mochila, ponho – com a ajuda de Sérgio – a capa por cima da mochila.
Continua a chover com força. Prosseguimos o caminho. Eu, cegueta, com água a escorrer pelas lentes, lamentando não haver nos óculos um equivalente do limpa pára-brisas. (Eis uma ideia para os designers finlandeses.) Não pus as polainas, erro meu, má fortuna, pensei que a chuva abrandasse, porém muito pelo contrário, despejam-nos os tanques do céu pela cabeça abaixo, só falta caírem os peixes, perdoem os leitores a imagem, parecerá por desventura absurda, mas patinhamos dentro de um aquário, a água entra-me para dentro das botas, embora bem ajustadas ao tornozelo, não acho graça à brincadeira, contudo agora, afogada neste iguaçú, atolada neste pantanal, onde poisar a mochila... Continuamos a caminhar. Um quilómetro mais adiante, surge um recanto abrigado, aproveito para ajustar as polainas – e encontro, por debaixo da capa, a mochila toda molhada. Portanto a capa deixou de ser impermeável... Avisto um contentor verde, calha mesmo bem: molhada por molhada, vou assim mais leve. Porém, como proteger as bagagens? Uma mochila possui espumas que, se absorverem água, a tornam mais pesada. Trouxe dois grandes sacos de plástico: ponho um à volta da mochila e o outro por cima da bolsa.
Parece que todos os rios da terra desaguam por cima das nossas cabeças. Caminhamos tentando, em primeiro lugar, ver a sinalização, porém a visibilidade é curta e as imagens deformadas, avançamos de olhos encarquilhados, buscando ajustar a vista – pitosgas de todo. Subimos, descemos. Passamos à beira de uma linha de comboio. Atravessamos um pinhal. Chegamos a Lijó.
Os caminhos encontram-se inundados. Felicito-me por ter sido ao menos tão paciente, para além de todos os meus erros e defeitos, não comprei um impermeável satisfatório mas carreguei com as botas durante quatro pesados dias – de outra maneira seria agora impossível prosseguir. Estas botas são rígidas e pesadas mas oferecem uma impermeabilidade a toda a prova e propriedades antiderrapantes seja na lama, seja em pedras soltas, seja aliás onde for.
Coloquei o roteiro dentro de uma capa: tento ler através da água e do plástico. Costumo apontar elementos da paisagem num caderno – agora guardei-o na bolsa. E, debaixo desta catarata, não me atrevo a tirar a máquina do estojo protector e dos vários sacos em que a protegi: não guardarei imagens do dilúvio.
Terça-feira, 3 de Agosto de 2010
Manuela DegerineCapítulo LXVIIIDécima oitava etapa: de Barcelos a Ponte de LimaSaímos dos bombeiros antes das sete, atravessamos o largo da feira, encontramos a sinalização amarela, seguimos na direcção de Vila Boa. Começa então a chover. Na preparação da viagem, preveni-me do calor que, imaginava eu, me estragaria o mês de Maio...
O menos perspicaz dos meus leitores terá percebido que não morro de amores por este adversário do conforto, da estética e do espírito crítico portugueses. O calor é um mau momento que em Lisboa se prolonga por, no mínimo, três meses. O calor obriga-me a passar o Verão dentro de casa e de meia dúzia de outros espaços, como a Torre do Tombo ou a biblioteca nacional, onde encontro trabalho absorvente e um mínimo de frescura, impede-me de fazer, no tempo livre, aquilo que prefiro, isto é, andar pelas ruas, a pé ou de bicicleta, leva-me, por razões estritamente térmicas, a maiores despesas, pois faço compras em sítios nos quais, durante o Inverno, nunca ponho os pés. O calor desnuda os corpos e, ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, nem todos os corpos ganham em se desnudarem: os pêlos, as banhas, as varizes, as cicatrizes, as marrecas, as pernas cambas e as carnes flácidas expõem-se na glória estival e constituem, na Avenida Almirante Reis que, cada dia, subo e desço, um desfile de pesadelo. (Já nem falo das praias onde, durante o Verão, não arrisco os olhos.)
O prazer do calor tornou-se em Portugal um lugar-comum. A palma da doxa preguiçosa, do cavaco estereotipado e portanto da vulgar brotoeja pertence com justiça aos locutores da Antena 1 que, cada dia, a meio da manhã ou da tarde, vos dão os pêsames logo que passa uma nuvem no céu.
Uma amiga francesa, vinda em Julho a Lisboa, diz-me um dia, prostrada pela canícula:
- Fico admirada com os portugueses... Ainda há pouco, na rua, olhava para as pessoas: manifestam um estoicismo espantoso, parece que nem sofrem com tanto calor...
Explico que o fenómeno resulta da auto-sugestão. Os portugueses ouvem dizer que nada existe de mais agradável que o calor, sinónimo de sol, areia e escaldões, tudo supinamente agradável, tudo supostamente saudável, por conseguinte, mesmo quando sofrem, no meio das ovelhas termófilas, para não chamar a atenção, conseguem convencer-se do contrário. O sol provoca o cancro da pele – que importa? O calor reduz a capacidade de acção e até, com frequência, mata – porém os portugueses comportam-se como se delicioso lhes parecesse e passam férias no Brasil quando, se buscassem bem-estar, prefeririam a Serra da Estrela. A maioria das pessoas tem medo de manifestar gostos, opções e opiniões singulares, esconde-se atrás dos outros e, por a Antena 1 dizer que, havendo nuvens, deve ficar “tristinha” – fica de imediato “tristinha”.
Eu rejeito os diminutivos e o conformismo.
Segunda-feira, 2 de Agosto de 2010
Manuela Degerine Capítulo LXVIIDécima sétima etapa: de Vilarinho a Barcelos (conclusão)Chegamos a Góios, depois a Pereira, onde por fim deixamos a N306, voltamos ao campo, atravessamos aldeias, caminhando até, durante alguns metros, debaixo de uma latada.
Vemo-nos por fim nos arredores de Barcelos. Gérard Rousse despacha os últimos quilómetros com duas frases; é uma constante em cada fim de etapa. Explico isto a Sérgio.
- O Gérard já vai cansado...
Passamos por uma rotunda, debaixo de uma via rápida, ao lado do cemitério. Doem-me os pés e as costas cada vez mais e começo a tropeçar de vez em quando; apoio-me na vara de eucalipto. Vinte e cinco quilómetros deve ser, com uma pesada mochila às costas, a medida da minha energia: para além desta distância, perco um pouco os reflexos.
Em Barcelinhos, pensando estar em Barcelos, procuramos os bombeiros. Estes informam-nos que não acolhem peregrinos – há que atravessar o rio Cávado. Telefonei, no princípio da tarde, para Barcelos; onde, de facto, somos bem acolhidos: há até um dormitório. No duche encontro uma alemã toda nua e assustada com a temperatura da água; explico que cumpre esperar um pouco. Entretanto lavo a roupa do dia, que depois penduro nas grades da cama.
E não é ilusão: os meus pés calcorrearam vinte e oito quilómetros sem sofrerem novas bolhas.
Mais tarde passeamos por Barcelos e encontramos arcos enfeitados, um de cada freguesia, expostos num terreiro. Admiramos, muito em particular, os Santiagos.
Descansamos, já de noite, sentados num banco de jardim, passam carros a apitar e gente a agitar cachecóis.
- O que é aquilo?
- O fim do campeonato da zona Norte.
Digo eu a brincar. Ignoro se tal campeonato jamais existiu. O meu primeiro gesto, quando compro o Público, é rasgar as páginas de desporto e, se a Antena 1 fala de futebol, mudo logo para a rádio Amália. Mais tarde durmo mas parece-me que continuam a apitar pela noite fora. Quando pergunto, no dia seguinte, qual o evento histórico, revelam-me que o Benfica ganhou o campeonato. Ah?...
- Aqueles ontem eram benfiquistas?!...
Sinto-me na verdade perplexa. A circunstância de andar por atalhos, aldeias e ginásios cria uma ilusão de afastamento do mundo trivial. Nada mais ilusório: o mundo trivial não se afastou. Eu não vejo televisão mas os habitantes das aldeias – tanto em Bagunte como em Fonte Coberta, para só citar estas duas – não fazem outra coisa durante o serão. Talvez não suspeitem que o Sr. Socras sabia quando disse que não sabia do negócio PT-TVI, isto são claras batidas em castelo, que nunca chegam a dar suspiros, porém sobre o FCP e o Benfica têm mais do que suspeitas. Então... Caminhei tantos quilómetros para ouvir benfiquistas a buzinar? Há quem chame ao fenómeno a mesmice do mundo.
Admito que esta mesmice seja afinal necessária no mundo. Serve para nos unir e tranquilizar. (Tal como o futebol, concluirá o leitor...)
Domingo, 1 de Agosto de 2010
Manuela Degerine Capítulo LXVI
Décima sétima etapa: de Vilarinho a Barcelos (continuação II)
O italiano chama-se Sérgio. Para esconjurar mal-entendidos, aviso, sem precauções oratórias, apenas se aproxima, não só sou lenta, também gosto de parar, de olhar, de conversar, não vim aqui fazer ginástica, perder quilos, mortificar o corpo, passear o tédio, mas ver, ouvir e apreciar, por conseguinte, se lhe apetece devorar quilómetros, avante e boa viagem, voltaremos a encontrar-nos, se tal for o nosso fado. Ele replica, algo surpreendido, que não tem pressa: apanhou o avião para andar a pé.
Começamos então a conversa. Sérgio faz o esforço de compreender o francês – uma língua que estudou durante apenas dois anos. De vez em quando, vamos perguntando:
- Como é em italiano?
- Como é em português?
Falamos de viagens, desta e doutras. E de leituras. Por isso evoco – uma vez mais – Viagem de uma parisiense a Lhassa. Alexandra David-Néel atravessou o Tibete em pleno Inverno, passando cumes acima dos cinco mil metros, a pé e disfarçada de mendiga, por o país estar interdito aos estrangeiros. Sérgio não conhece Alexandra David-Néel. Vou-lha apresentando, de maneira breve: o romanesco desta biografia encanta-me. Nasce em 1868, morre em 1969 – com quase cento e dois anos. As carreiras de jornalista e cantora de ópera. O feminismo. O anarquismo. O orientalismo. A primeira viagem ao Oriente. O casamento em 1904 com um engenheiro residente na Tunísia: Philippe Néel. As depressões até à segunda partida para o Oriente em 1911. A adopção de Yongden. As experiências nos Himalaias. A teoria e a prática das filosofias orientais. As caminhadas. A escrita. A correspondência com o marido. O regresso à Europa, em 1925, passados catorze anos. A terceira partida para o Oriente e as sucessivas guerras que lhe vão impedindo os movimentos. Os últimos decénios em Digne-les-Bains.
A conversa não nos distrai do hic et nunc. No percurso de hoje as aldeias são pequenas, as casas de pedra e o ambiente rural. Há bosques. Há prados. Há vinha. Há campos cultivados e para cultivar, castanhos os já semeados, outros muito verdes ou, de vez em quando, amarelos de malmequeres. Vemos giestas floridas, digitálias cor-de-rosa, grandes pedras à beira do caminho, passamos por muros enfeitados com rosas ou folhas de vinha, avistamos um espigueiro, atravessamos uma ponte medieval...
Compramos bananas num cruzamento onde, por ser domingo, vendem fruta e produtos regionais.
Fazemos uma paragem em S. Pedro de Rates. Entramos na igreja românica, vemos as capelas do largo, prosseguimos a caminhada.
Mais à frente, numa mata, Sérgio escolhe duas varas: uma para ele, a outra para mim. Imobilizamo-nos para ouvir o silêncio, os pássaros, a água corrente...
À beira do caminho, deparamos com um insólito altar a Santiago dentro de uma barrica de vinho. Conversamos com o artista, o Sr. Messias da Courela, que nas obras reutiliza os materiais da vida quotidiana.
Voltamos a encontrar a N306 (quilómetro 60) em Pedra Furada. Fazemos uma pausa junto da capela, enchemos as garrafas na fonte, compartilhamos as vitualhas. Grazie, molto gentile... Vou aprendendo palavras italianas. Reencontro, no contacto com Sérgio, a cumplicidade de Maria, porém ela é instável, espalhafatosa, impulsiva, o que a torna aliás tão divertida, enquanto ele se mostra calmo, discreto, reflectido: um agradável companheiro de caminhada.
Volta a surpreender-me esta facilidade com que, no primeiro encontro, se instala uma comum apreciação do que vemos e vivemos, ajustamos os gostos, as manias e as experiências, da comida às leituras, passando pela ética e pela estética, tudo assuntos de tratamento delicado: a Europa surge nesta harmonia. Claro que somos indivíduos, há portanto também dissonâncias, decorrentes de meandros biográficos: falo a Sérgio de um realizador italiano, Ettore Scola, que ele conhece de maneira vaga, cito-lhe Caro Diario, de Nanni Moretti, que ele não viu. Sérgio fala-me de filmes americanos – sou avessa a quase todo o cinema ianque.
Descalço as botas, tiro as meias. Doem-me os pés mas não há novas bolhas. Aguentarei a caminhada até Barcelos?... Seria uma boa surpresa. Em contrapartida, embora mais vazia, a mochila parece-me pesada: doem-me também as costas.
No céu aparecem buracos azuis. Talvez não chova. Cheia de confiança, até ponho o chapéu.
Sábado, 31 de Julho de 2010
Manuela DegerineCapítulo LXV
Décima sétima etapa: de Vilarinho a Barcelos (continuação)
Sigo pela N306, quilómetro 78 e seguintes. A beira da estrada é verde com algumas flores amarelas, há uma barreira íngreme, também verde, identifico feto, musgo, sedum e, lá em cima, de um e do outro lado, uma mata de eucaliptos. O temporal espalhou pernadas pelo meio da estrada; puxo as maiores para a valeta. Chego à ponte que atravessa o rio Ave. Não a ponte romana, de que o roteiro fala; esta é moderna. Paro para olhar: de um lado, eucaliptos, do outro, ao longe, terrenos cultivados, um pouco de vinha, talvez outras culturas, das quais só distingo os rectângulos e as diferentes tonalidades de verde.
Chego à Junqueira quando – de repente – reparo: não trouxe o bordão! As finlandesas camuflaram-no por debaixo de oito varas e suspenderam vinte impermeáveis por cima. Com tamanha barafunda naquela divisão e, para mais, não acendendo as luzes, para não as incomodar... Não admira que o não visse.
Que fazer? Caminhei cinco quilómetros. Voltar atrás? Juntar dez quilómetros de caminhada aos vinte e oito da etapa? Pedir boleia? Passam raros carros... As finlandesas terão saído, encontrarei o abrigo fechado, idem para a farmácia, por ser domingo, a farmacêutica estará ou não em casa... Prefiro não arriscar.
O bordão evitou-me decerto algumas quedas. Daqui em diante, quando tropeçar, como me equilibro?
Ocorre-me a história de Gandhi: tendo partido o espelho, barbeou-se sem ele, sentindo-se mais livre. É a versão indiana da peripécia grega... Diógenes, vendo uma criança beber nas mãos, também abandonou a supérflua tijela. Sou menos filósofa do que Gandhi e Diógenes: lamento a perda do bordão. Porém... O que não tem remédio, remediado está: comprarei outro, logo que possa. Como uma barra, para me consolar – e prossigo o caminho.
Quando atravesso Bagunte, chuvisca um pouco. Tiro o impermeável da mochila? Prevendo a chuva, arrumei-o no cimo. Entro no café para beber um copo de leite e adiar a operação, compro uma bola, demasiado branca – não há outra variedade. Apesar de se sentirem pouco confortáveis, talvez os meus pés não tenham bolhas; prefiro prosseguir sem mais pormenores.
Deixou entretanto de chuvinhar, embora pareça que, levantando os braços, me penduro na borracha cinzenta que tapa todo o céu. As quedas de água da madrugada não esvaziaram os aéreos depósitos...
Desço um trilho inclinado, pelo qual a chuva terá, durante a noite, corrido em enxurrada, transformando-o em ribeiro, atenta para não escorregar, entre pedras e lama, quando aparece o peregrino italiano.
Sexta-feira, 30 de Julho de 2010
Manuela Degerine
Capítulo LXIV
Décima sétima etapa: de Vilarinho a Barcelos
Após o dilúvio da madrugada, os caminhos continuam alagados. Portanto, novidade do dia: arrumei os crocs. Impossibilitada de usar este imaterial calçado, interroguei-me, algo inquieta, enquanto redobrava o nó dos atacadores, que parte dos vinte e oito quilómetros caminharia com as botas. Talvez poucos metros...
Se não as aguentar, abandono a caminhada, pois será insensato, com feridas nos pés, enfiá-los em lama e águas sujas. No entanto, uma vez saída de Vilarinho, até a desistência se complica, por não haver transportes públicos. Restar-me-á pedir boleia – um recurso do qual, por razões de segurança, não convém abusar.
Sempre que, excepcionalmente, recorri a esta solução, conheci pessoas com as quais, de outra maneira, nunca teria contactado. Quase todos dispomos, mesmo vivendo numa capital, de um círculo de relações homogéneo e eu, tanto em Lisboa, como em Paris, convivo com pintores, escritores, doutores, seres únicos e preciosos – os meus amigos. No entanto também me interessa ouvir os outros, aqueles cujos trabalhos eu não imaginava de maneira concreta: transportar – e descarregar – papel para reciclagem, desenhar barras sinaléticas nas estradas, levar água às vacas nos prados... Estes condutores, capazes de parar, de levar uma desconhecida, contaram-me, nos limites de um trajecto, as suas ocupações e preocupações, as suas vidas familiares, os seus sonhados projectos; tais conversas, algumas muito curtas, outras de uma ou duas horas, representam contributos decisivos para o que hoje sou – e ensinaram-me mais do que a maioria dos professores na Faculdade de Letras de Lisboa. (E no entanto tive boa formação universitária.)
Consciente dos riscos de um mau encontro, reservo contudo a boleia para circunstâncias excepcionais. Na verdade... Uma mulher prudente não partiria agora para Bagunte.
Estou a vê-la... Entra no café e, embora pareça só, o dono não se surpreende, por cada dia atender, às mesmas horas, gente com mochila e bizarros costumes. Todavia esta mulher encomenda em português um galão e inquire a que horas passa a camioneta de Vila do Conde. Aqui ele mira-a com mais atenção: de manhã os estrangeiros costumam prosseguir a pé e só à tarde, quando o abrigo se enche, buscam meios de transporte colectivo.
- É portuguesa...
- Sou.
- Não vai para Santiago?
- Ia... Mas tenho várias bolhas, não posso calçar as botas, mais vale regressar a casa.
- Vem a pé de onde?
- Do Porto.
A Mulher Prudente não pode vir de Lisboa. Se vem de Lisboa, abandone ou não a caminhada em Vilarinho, sem ser imprudente, opta todavia por – em certas circunstâncias – correr alguns riscos. Já o leitor tirou as lógicas conclusões: não sou esta mulher. Por isso – agora parto. (Descubro-me como oximoro ambulante: a ousada prudência e a cautela aventurosa são a minha especialidade.)
É domingo. Seis e meia da manhã. Vejo um céu carregado de cinzento – convém aproveitar enquanto as nuvens hesitam. Sem dúvida, em alguns lugares, a tromba de água arrastou pedras, criou torrentes... Será possível prosseguir? E se de súbito algum temporal transformar em ribeira o trilho onde me encontro? Ocorrem-me imagens de telejornal, pontes derruídas, carros arrastados, casas demolidas, ravinas derrocadas, árvores arrancadas, em plena Europa, alguns em Portugal, até em lugares por onde passo: perto de Queluz, morreu uma mulher, dentro de um carro, levada pelas águas, num percurso quotidiano.
O meu roteiro indica um atalho através da mata. Desta vez, por causa da lama e destes receios, prefiro caminhar à beira da estrada – agora não há carros.
É de manhã, levo as botas calçadas: sinto a mochila leve e caminho com gosto. Devoro uma sandes. Depois, sentindo ainda fome, vou trincando nozes, uma barra, uma banana... Conservo um apetite de ogre. Bom sinal.
Cai-me, ora na cara, ora nas mãos, de vez em quando, uma gota de chuva.